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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCXXX - A Medicina na Guerra do Paraguai Parte II


Cap Antonio Antunes da Luz - Gente de Opinião
Cap Antonio Antunes da Luz

Bagé, 25.08.2023


A MEDICINA NA GUERRA DO PARAGUAI

(Mato Grosso)

LUIZ DE CASTRO SOUZA

Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da Medicina.

II

O MARTIROLÓGIO DO

DR. ANTÔNIO ANTUNES DA LUZ


No aprisionamento do vapor Marquês de Olinda – navio pertencente à “Companhia Brasileira de Navegação do Alto Paraguai” ‒ a 12.11.1864, quando navegava pacificamente em demanda de Corumbá [MT] encontrava-se entre os seus passageiros, o Capitão 1° Cirurgião do Exército Brasileiro, Doutor Antônio Antunes da Luz. Este médico era natural da cidade do Salvador, capital da então Província da Bahia, nascido a 19.10.1818 e filho de Francisco Antônio da Luz. Em 1847, perante a Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, primaz do Brasil, defendia tese de doutoramento, conforme consta no Livro de Termos de Exames de 1847 a 1856, folhas 18 e verso, do Arquivo da referida Faculdade, cujo teor é o seguinte:

Ata do Exame de sustentação de Tese para obter o grau de Doutor em Medicina ‒ Aos 04.12.1847, compareceu o estudante do 6° ano Antônio Antunes da Luz para sustentar a sua tese a fim, de obter o grau de Doutor em Medicina, pela forma que se acha no projeto de Estatutos apresentado à Assembleia Geral Legislativa adotado pela mesma Faculdade; e sendo arguido pelos Doutores Manuel Maurício Rebouças, Vicente Ferreira de Magalhães, Malaquias Álvares dos Santos, Salustiano Ferreira Souto [à margem consta: Também foi arguente o Dr. Sampaio] sob a presidência do Dr. Jônatas Abbott e corrido o escrutínio, foi aprovado unanimemente; em consequência do que a Faculdade conferiu-lhe o grau de Doutor em Medicina com as formalidades do costume. Do que para constar, eu, Prudêncio José de Souza Brito Cotegipe, Secretário, lavrei este termo, que assinei com os Lentes presentes. Seguem-se as assinaturas de: João Francisco de Almeida, Diretor; Dr. Jônatas Abbott, Vicente Ferreira de Magalhães, Manuel Maurício Rebouças, Manuel Ladisláu Aranha Dantas, Salustiano Ferreira Souto, Antônio José Osório, Elias José Pedrosa, Malaquias Álvares dos Santos, Matias Moreira Sampaio, José Vieira de Faria Aragão Ataliba, Prudêncio José de Souza Brito Cotegipe.

Quanto ao assunto versado na tese, não nos foi possível conhecer, apesar das pesquisas realizadas. Sabemos, entretanto, que decorrido dez anos de sua colação de grau, ocorrida em 04.12.1847, o Doutor Antônio Antunes da Luz retirava seu diploma, isto é, a 18.12.1857 ([1]). Ingressando no Corpo de Saúde do Exército como Alferes-Ajudante, pelo decreto de 18.03.1848, é designado para servir no 6° Batalhão de Fuzileiros. Atinge o posto de Tenente 1° Cirurgião, a 03.03.1853 e, finalmente, Capitão 1° Cirurgião em 23.09.1857.

Doutor Antônio Antunes da Luz era veterano da Campanha contra Oribe e Rosas [1851-1852], e encontrava-se em trânsito para ocupar o cargo de Primeiro Cirurgião do Hospital Militar de Cuiabá, quando se efetivou o traiçoeiro atentado à soberania brasileira. Doutor Antunes da Luz ([2]) foi encarcerado em terra com os demais companheiros de viagem, dando-se início à dolorosa peregrinação pelos acampamentos e prisões do Paraguai de Solano López. 

O tratamento dispensado foi dos mais humilhantes à pessoa humana: trabalhos forçados, vexames de toda espécie, sendo o mais visado, o velho servidor da Pátria, Coronel de Engenheiros Frederico Carneiro de Campos, pela sua alta jerarquia, então nomeado Presidente e Comandante das Armas da Província de Mato Grosso, cargos que não chegou a assumir. É um cativeiro cheio de horrores e de indizíveis torturas para os infortunados brasileiros que andavam, uns algemados, outros açoitados e atingidos por lançaços, além de presenciarem fuzilamentos de irmãos executados sumariamente. Os alimentos escassos no início, desapareceram por completo e os prisioneiros foram obrigados a mascar pedaços de couro, durante dias; assim, a maioria sucumbia pela terrível tortura da fome. É um quadro dantesco de sofrimento e de dor.

Dr. Antônio Antunes da Luz era casado com D. Luiza da Costa Ferreira da Luz, natural da cidade de Santos [SP], e filha do Brigadeiro João Feliciano da Costa Ferreira. Deste consórcio lhe nasceram dois filhos: Francisco e Horácio Antunes Ferreira da Luz.O primeiro, nascido em Porto Alegre, a 10.12.1851, doutor em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, em 1876, defendendo tese a 14 de dezembro, sob o título “Da nutrição”; o segundo, seguiu a carreira militar, tendo falecido no posto de Alferes. A família deste médico militar ficou em Porto Alegre, enquanto o seu chefe seguiu para a Província de Mato Grosso. O filho Francisco Antunes Ferreira da Luz, adolescente de 15 anos, em 1867, sabendo ter sido o pai capturado e levado preso para o Paraguai, e já inspirado poeta, produz o filho do prisioneiro, que com mais duas outras poesias, na evocação do pai, fez incluí-las no seu livro de versos “Harmonias Efêmeras”, publicado a lume no ano de 1876, no Rio de Janeiro, quando cursava o sexto ano de medicina ([3]). Essa poesia ingênua, em que desejou expressar o sentimento que o dominava naquele transe de apreensões e incertezas, e hoje transcrevemo-la abaixo, na íntegra, para reviver o apreço e a saudade de um mancebo pela ausência do seu desditoso pai:

Sou sempre o mesmo! No calor da festa,
Súbito a testa se franzindo vai,

E eu ouço um grito que me rouba a calma
Do imo ([4]) d’alma suspirando um ‒ ai!

Sou sempre o mesmo! Constrangido o rosto
Todo composto de doçura e fel!

Trago nos lábios a alegria às vezes.

Mas sorvo as fezes de um sofrer cruel!

Sou sempre o mesmo! Dos festins nas salas,

Desdenho as falas, que se diz então;

E se me assento merencório e mudo,

Respondo a tudo por um ‒ sim, ou não! 

Mas se eu acaso me fingi contente,

O que dolente o coração não quis,

Eu ouço um grito que do imo d’alma,

Me rouba a calma, me sufoca e diz:

Louco mancebo, que sorris, enquanto

Que mágoa e pranto teus sorrisos são,

Guarda da sorte de teu Pai lembrança,

Chora, criança, não te rias não!

 

Vê que ele geme num suplício vivo,

Pobre cativo de um tirano à fé!

Põe a teus olhos seu fiel retrato,

No roto fato que o de escravo é!

 

Olha! quem sabe lhe serão tormentos,

Esses momentos em que aqui folgais;

Chora as misérias que teu Pai lá sente,

Chora, inocente, não sorrias mais!

 

E eu sempre o mesmo, mas agora mudo,

Procuro em tudo da esperança o céu;

Caminho, fujo do prazer do chiste,

Rasgando triste d’alegria o véu!

Depois... o mísero... a saudade... o pranto...

 

Tudo... em meu canto o coração traduz!

E eu vou prostrar-me na deserta ermida,

Pedir sua vida pelo Deus da Cruz!

Sou sempre o mesmo! No calor da festa,

Súbito a testa se franzindo vai;

E eu ouço um grito que me rouba a calma,

Do imo d’alma suspirar: meu Pai! ...


(Porto Alegre, 1867)

Acompanhou o Doutor Antunes da Luz o martirológio de seus patrícios, dando-lhes toda a assistência médica naquela dramática ocasião, na ânsia de salvá-los. Percorrem, igualmente, o itinerário do suplício e a provação: Quartel da Ribeira, Capela de São Joaquim, Villeta, Humaitá, Vila do Pilar, Porta do Boqueirão e finalmente Passo Pucú. Apesar da deterioração de seus específicos, pela umidade dos alojamentos, procurava descobrir ervas medicinais úteis nas disenterias e noutros males que prolife­ravam nos infectos lugares percorridos por àqueles infelizes brasileiros. Ainda seu filho Francisco, dominado pela dúvida da existência do pai, sonhava como poeta, vendo aquela presença tão ardentemente desejada e recordando a despedida que os anos iam dilatando, dizia em “A Incerteza”:

Sim! Partiste, meu Pai, partiste quando

De inexperto Ministro, cegamente

Ias dar cumprimento ao cego mando;

‒ Soldado ‒ obedeceste, que altamente

Dos brios de militar sempre zeloso,

Atendias à Pátria diligente.

Mas ah! Momento infausto em que o só gozo

Foi esse... E foi-me o último, um abraço

Tão terno, paternal e tão saudoso!

Não! Último não será, não, que ainda um traço,

Um raio d’esperança inda me resta,

No céu justiceiro, ultrice ([5]) braço.

 

E finalizava,

Que ainda orando aos céus as mãos levanto

Na esperança do dia em que, piedoso,

Meu Pai verei voltar em doce pranto,

Em ternas expansões, ao lar saudoso.

(Porto Alegre, 1868)

A presença deste médico militar deve ter sido a causa de maior sobrevida para uns e a esperança para outros, porém, o Doutor Antônio A. da Luz não resiste, também, como os seus compatriotas, aos maus tratos e privações, e escapando do fuzilamento ou de ser lanceado, vem a falecer de inanição, no dia 06.12.1867, no trágico e tenebroso acampamento de Passo Pucú ([6]). Assim, desaparecia este abnegado médico de “perfil marmóreo” na expressão de seu companheiro de infortúnio, Clião Pereira Arouca ‒ um dos raros sobreviventes do “Marquês de Olinda” ‒ tornando-se não só mártir e herói no sofrimento, mas glória da Pátria e da Medicina Militar Brasileira. Deste herói e mártir, cuja lembrança foi olvidada por tantas gerações, restam, apenas, os versos do filho enternecido que, com a notícia do falecimento do pai, anunciada pelas Forças vitoriosas brasileiras, em 1869, externou sua dor numa longa e pesarosa poesia, intitulada “A Morte”, quando escrevera:

Tu morreste meu Pai, tudo acabou-se? ...

Já dos férreos grilhões tuas mãos inermes

Desataram sem vida os vis sicários!

Já teus restos mortais sumiram vermes

Do sepulcro no pó!

 

Que me resta de ti? Ah! Quando houveras

De os dias duplicar para o teu filho,

Foste deixar tua cinza em tosco trilho,

Entre o bárbaro inimigo e triste e só!

Ainda,

E eu fiquei! E eu vivo! E eu não morro!

Eu vítima infeliz, pobre criança

Não tive junto dele um epitáfio,

Não fui também pousar, morta a esperança,

Entre as campas sem luz!

Eu que paguei da infância as horas ledas

Em sofrer muito cedo, em cada dia,

Séculos de dor em noites de agonia,

Embebido no Cristo ao pé da Cruz!

E finalizava,

Repousa pois, meu Pai, eternamente

Junto às auras de Deus no templo augusto!

E, pois, que não me é dado ir diligente,

Saber onde existe

Teu último jazigo,

E piedoso e triste,

Verter em teu sepulcro um pranto amigo,

Recebe lá dos céus da imensidade

Um filial tributo de saudade.

(1869)

[...] (SOUZA)

 

Bibliografia

 

SOUZA, Luiz de Castro. A Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP, Revista de História, 1968, 1969 e 1970.

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: [email protected].



[1]    Livro n° 1 ‒ Registros diversos e diplomas, de 1816 a 1874 [pg. 21], do Arquivo da Faculdade de Medicina da Bania. (SOUZA)

[2]    Capitão 1° Cirurgião, Antonio Antunes da Luz [1818-1867] [Gentileza do Sr. Aryano Ferreira da Luz] (SOUZA)

[3]    Em 1958, foi publicada a 2ª edição pela Pongetti, com dados biográficos e revisão de Ariano Ferreira da Luz, filho do autor. O Dr. Francisco Antunes Ferreira da Luz militou na política, tendo sido eleito, no Império, vereador à Câmara de Pádua e na República, deputado estadual e federal pelo Estado do Rio de Janeiro. Colaborou na Revista do Partenon Literário e Murmúrio do Guaíba de Porto Alegre e deixou inédito, “Ecos do Rig-Veda”, tradução dos famosos hinos religiosos dos indus em louvor aos deuses. Faleceu, segundo seu filho Adriano, na cidade de Santo Antônio de Pádua [RJ], em 14.07.1894. Tanto esta data como do seu nascimento, vieram corrigir as citadas anteriormente por alguns autores. (SOUZA)

[4]    Do imo: da profundeza. (Hiram Reis)

[5]    Ultrice: vingativo. (Hiram Reis)

[6]    Na relação dos mortos confeccionada pelos carrascos paraguaios publicada no Diário do Exército em Operações, do Marquês de Caxias, diz que o Dr. Antônio A. da Luz, brasileiro, preso, morreu de morte natural, em 06.12.1867. Entretanto, João Coelho de Almeida, um dos sobreviventes do “Marquês de Olinda”, em seu relatório dirigido ao Capitão de Mar e Guerra Miguel Joaquim Ribeira de Carvalho, a 26.08.1869, diz que o Doutor do exército Antônio Antunes da Luz faleceu em 04.12.1867. Já Souza Doca, em seu trabalho “Causas da Guerra com o Paraguai”, Porto Alegre, RS, 1919, escreve que o Dr. Antônio A. da Luz, morreu de fome, em agosto de 1867. (SOUZA)

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