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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCCXXII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte III


Terceira Margem – Parte DCCXXII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte III - Gente de Opinião

Bagé, 01.04.2024

 

 

 

Defesa Feita Pelo Sr. Dr. Pereira da Silva ao

Brigue Brasileiro “Nova Aurora” – Apresado

na Bahia Pela Corveta Inglesa “Rose

 

Joaquim José dos Santos Malhado e Irmãos, súditos brasileiros, negociantes muito conhecidos e reputados da cidade da Bahia, não só por sua fortuna, honra e probidade, como também pelos relevantes serviços que tem prestado ao trono imperial do Senhor D. Pedro II e à integridade do Império, serviços de natureza e de transcendência tal, que o governo do Brasil tem altamente considerado, são senhores e possuidores, por herança de seu pai Manoel José dos Santos, além de outros bens, do brigue nacional “Nova Aurora”, como se prova pelo documento do apenso de fls. 13, sob n° 1.

 

Pretendendo eles mandar o brigue para a Costa de África a negócio licito, abriram-lhe carga na praça, e com efeito a conseguiram obter, como se evidencia do manifesto de fls. 15 do apenso, com o qual harmonizam os diversos conhecimentos unidos aos autos, o livro da carga de fls. 27, e várias faturas que decorrem de fls. 41 a 61, sendo que todo esse carregamento, em vista do documento da alfandega de fls. 37, foi legalmente despachado, seguiu todos os tramites da lei, e pagou os competentes direitos à nação brasileira. Com efeito, alcançando os despachos necessários que lhe permitiam o seguimento de sua viagem, o seu passaporte, a matrícula e manifesto da carga, o documento do correio, o certificado da inspeção da saúde pública, a conta da ancoragem, a certidão da polícia, a carta de ordens, a declaração autentica de estar em ordem subscrita pelas autoridades legais, e o rol da equipagem, que tudo se encontrou a seu bordo, e existe ligado aos autos, e que para maior legalidade fizeram eles rubricar no consulado inglês naquela cidade; prestando enfim a fiança ou termo de responsabilidade exigido pelo Governo da Província de se não empregar em comércio ilícito, como se prova pelo mesmo apenso, pode o brigue, capitaneado pelo cidadão brasileiro João José Peixoto, sair da Bahia em 22 de fevereiro do corrente ano, depois de se sujeitar aos registos das autoridades do mar, e em tudo e por tudo conformar-se com a lei.

 

Eis que no dia 27 porém, em vez de continuar sua viagem, entra de novo o brigue no porto de onde saíra, pendendo do penol ([1]) de sua mezena ([2]), em vez das armas brasileiras com que se cobria, as cores da Grã-Bretanha.

 

A corveta de guerra inglesa “Rose”, de que é comandante P. Christie, saindo da Bahia a 2, e no seguinte dia avistando o brigue, deu-lhe caça, deteve-o, e o fizera regressar. Apenas ancorado, o captor tirou de bordo do brigue toda a tripulação e passageiros, e os passou para a corveta de seu comando, como se prova das declarações do apenso já mencionado, de propósito talvez para não assistirem ao exame e averiguações a que pretendia proceder, e sem mostrar ao menos ao seu Capitão as instruções de que se achasse munido, e que o autorizassem a cruzar e deter, instruções exigidas pela Convenção adicional de 1817, e que nem a este tribunal da comissão mista foram presentes, apesar de serem exigidas pelo membro juiz brasileiro, que teve por resposta do encarregado da presa, Edwin Morgan, que cuidava que o comandante Christie as tinha.

 

Então, em desrespeito às representações do Exm° Sr. Presidente da Província da Bahia, representações que, por muito valiosas e legais, se unem a estas razões, mandou o captor descarregar o brigue, em procura, como dizia, de indícios de seu emprego em comércio ilícito, e para proceder a um minucioso exame, passando parte do carregamento para a corveta, e parte depositando no convés do mesmo brigue, com grave prejuízo tanto dos gêneros que levava, e que consistiam em fumos, fazendas, aguardente, &c., como do próprio casco. Note-se que a ato nenhum deste exame assistiu o Capitão Peixoto, ou quem quer que fosse de bordo do brigue; e depois dele feito, ordenou o comandante Christie se repusesse de novo e em ordem o carregamento, o que também se fez pelo mesmo modo.

 

No dia 4 de Março, quando era opinião corrente na Bahia, pelas vozes escapadas de bordo, apesar da incomunicabilidade com que se achavam presos a tripulação e os passageiros, e do sigilo e mistério que por ordem ali reinavam, que, não se havendo encontrado no brigue nenhuns indícios dos que procurava com tanto cuidado e afã o comandante captor, deveria ele ser relaxado, e continuar sua viagem. Com grande espanto de todos os habitantes e das autoridades brasileiras, principalmente do Exm° Presidente, que a esse respeito representou ao Governo de S.M. o Imperador; depois de mandar o captor soltar todos os passageiros e tripulação, à exceção do capitão, piloto, contramestre e cozinheiro, fez levantar o ferro ao brigue, e, embarcando um encarregado de sua guarda, seguir para o Rio de Janeiro, aonde, chegando no dia 18, foi submetido ao julgamento do tribunal da Comissão Mista Brasileira e Inglesa, perante quem, e com todo o respeito devido, passamos a desenvolver nossas razões.

 

Cumpre, antes de tudo, discutir a legalidade não só da visita, como da detenção do brigue, encarada debaixo do ponto de vista geral, em relação aos tratados estipulados entre a Coroa brasileira, a quem pertence o navio apresado, e a nação britânica, a cuja armada pertence a corveta captora. Os fatos que deixamos referidos com toda a fidelidade, e comprovados pelos documentos entranhados no processo, nos serviram de base, sem que por agora nos diga respeito o motivo porque o comandante Christie cometeu o ato de detenção, e que mais abaixo discutiremos em lugar competente.

 

Pelo Tratado de 23.11.1826 se estipulou que, para findar o tráfico de escravos entre o Brasil e os portos d’Arica, as duas nações convinham em aceitar, como próprios, o Tratado existente entre Portugal e a Grã-Bretanha, de 22.01.1815, e a Convenção adicional de 28.07.1817. Ora, no artigo 5 dessa Convenção lê-se o seguinte:

 

Os navios de guerra de ambas as marinhas reais, que para esse fim se acharem munidos das instruções especiais anexas a esta Convenção, podem visitar os navios mercantes de ambas as nações em que houver motivo razoável de se suspeitar terem a bordo escravos adquiridos por um comércio ilícito: os mesmos navios de guerra poderão, mas somente no caso em que de fato se acharem escravos a bordo, deter e levar os ditos navios, a fim de os julgar.

 

Lê-se também no artigo 1° das instruções anexas a essa Convenção, e dirigidas aos comandantes dos navios de guerra:

 

Todo o navio de guerra, &c., terá o direito de visitar os navios mercantes de uma e outra potência que fizerem realmente, ou forem suspeitos de fazer o comércio de negros, &c.

 

Tendo no entretanto saído da Bahia no dia 22 de fevereiro o brigue em questão, tendo sido visto a carregar naquele porto, tendo-se despachado legalmente, e tendo de mais a mais, para maior prova, sido seus despachos presentes ao consulado inglês, e logo no dia 24, saindo, ao que parece de propósito a corveta, e detendo-o no dia 26, é fora de toda a dúvida que não podia haver motivo razoável de suspeita de fazer ele o comércio de escravos, sendo tão curto esse prazo de 3 dias, e conseguintemente é evidentíssimo que o comandante Christie, visitando-o, violara o Tratado nos artigos que deixamos acima transcritos; e não se pode chamar à ignorância, em presença do artigo 7 da mencionada Convenção, que ordena sejam os cruzadores munidos pelo seu próprio governo de uma cópia das instruções de que citamos também o artigo 1°, que fora pelo mesmo fato infringido.

 

E note-se aqui que este motivo razoável de suspeita, de que fala o Tratado, não pode aparecer e ter lugar senão em um navio que venha dos portos d’África para o Brasil, por que são os únicos que podem ter feito ou fazer o tráfico, e de nenhum modo em um navio que sai com carga lícita e despachos legais, ainda que se dirija para a Costa d’África, ou para outra qualquer parte. Se esse direito de visita fosse discricionário dos cruzadores, graves danos poderiam resultar ao comércio lícito, e tal não podia ser jamais a mente dos autores do Tratado. Além desta ilegal visita, outros atos foram também praticados em contravenção ao mesmo Tratado, e que são de mais grave consequência e de maior importância.

 

Havendo o comandante Christie visitado o brigue, 62 não tendo encontrado a seu bordo escravos para o tráfico, como, com que direito o deteve? Já transcreveu-se o final do artigo 5 da Convenção, agora transcreveremos outros a tal respeito.

 

Art. 1° das instruções aos cruzadores. – Os navios a bordo dos quais “se não acharem escravos destinados para o tráfico não poderão ser detidos debaixo de nenhum pretexto, ou motivo qualquer”.

 

Art. 6° Os cruzadores, &c., não poderão deter navio algum de escravatura em que “atualmente se não acharem escravos a bordo”; será preciso para legalizar a detenção de qualquer navio que os escravos que se acharem a seu bordo sejam efetivamente conduzidos para o tráfico, &c.

 

Claro e evidente se torna, pela leitura destes artigos, que o ato da detenção foi arbitrário inteiramente, e, o que é mais, ofensivo ao direito das gentes, que cumpre respeitar, e à letra dos Tratados existentes entre S.M.I. e S.M.B., que são obrigados a cumprir e a fazer cumprir estritamente não só ambos os governos, como também os comandantes de navios de guerra, quer brasileiros, quer ingleses, como expressamente determina o artigo 5° quando diz:

 

Deverão observar estrita e exatamente as instruções que acompanham a Convenção.

 

Observe-se também que, ainda depois dos atos ilegais de visita e detenção, violou o comandante captor o artigo 2° dessas mesmas instruções de que ele devia estar munido: aí se recomenda que:

 

Apenas detidos os navios, deverá conduzi-los o mais prontamente que for possível, para serem julgados pela Comissão Mista. [...] (REGNAULT)

 

Bibliografia

 

REGNAULT, Elias. História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da Irlanda até o Envenenamento dos Chinas... – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Typ. Universal de Laemmert, 1842.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).



[1]   Penol: a ponta da verga (Longa peça de madeira que se coloca horizontalmente sobre os mastros, para nela se prenderem as velas).

[2]   Mezena: mastro mais próximo à popa do navio.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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