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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCCXVII - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VII


Terceira Margem – Parte DCCXVII - A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VII - Gente de Opinião

Bagé, 20.03.2024

 

 

Relatos Pretéritos – Naufrágio do “Rio Apa”

 

Múcio Scervola Lopes Teixeira (1888)

 

TRAGÉDIA NO OCEANO

 

Não há notícia de sinistro mais horroroso, em mares brasileiros, do que a monstruosa hecatombe dos passageiros do paquete Rio Apa. O “Paiz”, encarando friamente os fatos que se relacionam com esse naufrágio nas costas do Rio-Grande do Sul, diz no seu n° de 29 de Julho do corrente ano (1887):

 

Os telegramas que hoje publicamos ainda concer­nentes ao naufrágio do Rio Apa, vem aumentar a consternação causada por esse terrível desastre e pôr em relevo a negligência das autoridades e da companhia a qual pertencia o vapor.

 

Pelo exame dos cadáveres, que chegam às praias do Norte e do Sul da Barra do Rio Grande, se verifica:

 

que todos estão revestidos de coletes ou cintas salva-vidas.

 

que as vítimas do naufrágio rolaram com vida, durante alguns dias, na solidão do Oceano.

 

que, pela conservação da existência, posta em risco, ou pela concorrência aos meios da salvação, ou talvez pela fome, houve luta sinistra e desesperada, apresentando alguns cadáveres ferimentos de punhaladas.

 

que, à vista da conservação dos corpos, após tantos dias depois do naufrágio, e pelo exame dos mesmos é evidente que muitos pereceram por inanição.

 

Todas estas circunstâncias, profundamente lamentá­veis, eram previstas ou supostas, muito antes que nos chegassem, como agora chegam, os horrorosos pormenores dessa imensa catástrofe. O próprio fato de não aparecer um só cadáver, logo após o naufrágio quando já davam à costa alguns destroços do navio, malas e volumes de merca­dorias, era indício suficiente para se presumir que nem todos haviam perecido instantaneamente e que, portanto, vagavam sobre as ondas, na esperança, infelizmente malograda, de encontrar algum socorro.

 

Pelo que se sabe, os rebocadores que saíram a Barra limitaram-se a percorrer a costa, poucas milhas ao Sul e ao Norte da mesma Barra. Não se mandou, porém, um só vapor fazer a exploração do oceano, quando, entretanto, era sabido e patente que o “Rio Apa” não tivera tempo e nem tinha força para amarar-se muito, visto que a sua velocidade era apenas de 10 milhas por hora.

 

Os caracteres que apresentam os cadáveres que agora são encontrados, denunciam eloquentemente a grandeza do sinistro e a incúria, a negligência, a desumanidade com que o governo e a companhia proprietária do Rio Apa se houveram nessa desgraçada emergência. (LOPES TEIXEIRA)

 

Arthur de Azevedo (1903)

 

PAULINO E ROBERTO

 

O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação. Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver.

 

O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho. O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava.

 

Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de “Frou-frou” sem dote.

 

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

 

  Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava–a para o pasto!

 

  Oh! Vespasiano! não digas isso!

 

  Digo, sim! Senhor! digo e redigo... – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhu­ma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!

 

  Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

 

  Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

 

  Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

 

  Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

 

  Exageras.

 

  Pode ser; mas afianço–te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

 

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

 

 

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida. Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do “Rio Apa”; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro. Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o “Rio Apa” naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera. Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

 

 

Ao ver o seu nome impresso nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

 

  Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes...

 

Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passagei­ros do “Rio Apa”. Escusado é dizer que mudou de nome. Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da Província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o “encabulasse”, arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio ([1]).

 

 

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, ti­vesse notícias de Adelaide. Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois dei­xara crescer a barba, engordara extraordinariamen­te, e tinha um tipo muito diverso do de outrora. O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

 

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do “Rio Apa”; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto. Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe:

 

  Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! – mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

 

  Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.

 

 

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano, acom­panhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem por.

 

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasia­no, e disse-lhe:

 

  Eu logo vi que você me dizia que não!

 

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

 

  Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!

 

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:

 

  Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!

 

  Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!

 

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano. (AZEVEDO)

 

Bibliografia

 

AZEVEDO, Arthur de. Paulino e Roberto – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da Manhã, 05.04.1903.

 

LOPES TEIXEIRA, Múcio Scervola. Poesias e Poemas de Mucio Teixeira (1886-1887) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Nacional, 1888.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)E-mail: [email protected].



[1]   Pecúlio: pé-de-meia.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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