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Hiram Reis e Silva

Sítio de Bagé - Parte III - História, fatos e documentos


Sítio de Bagé - Parte III - História, fatos e documentos - Gente de Opinião

Bagé, 27.03.2020

 

300 prisioneros fueron encerrados en un

corral de piedras de donde los sacaron

uno por uno, a lazo, para desjarretarlos y

degollarlos como reses.

(Florêncio Sánchez)

 

 

A Federação n° 39

Porto Alegre, RS ‒ Quinta-feira, 15.02.1894

 

História do Sítio de Bagé

Fatos e Documentos

 

 

No dia seguinte, 29, apresentaram-se à guarnição, o Cabo do 5° Regimento de Cavalaria João Ramos, escapo pela segunda vez do poder dos inimigos e Capitão Luiz Pesat Filho, do Batalhão Tiradentes e que estava servindo no 1° da Brigada Militar do Estado. Eles fizeram a narração circunstanciada da heroica resistência até o último momento oferecida pelas nossas Forças ao inimigo de enorme superioridade numérica e de posição, e animado além disso pelo desejo de uma vitória decisiva.

 

Foi uma luta medonha em que se praticaram os mais estupendos atos de bravura e dedicação, infelizmente repelidos pela fatalidade que tudo roubou aos infelizes mártires do dever, a alimentação, a água, as munições para repelir o inimigo e por último o ânimo de lutar por mais tempo. Além disso, em torno do reduto, o inimigo afirmava que respeitaria todas as vidas, desde que se rendessem, para o que empenhava a sua palavra de honra em nome dos chefes.

 

Esta esperança unida à impossibilidade de resistir por mais tempo, inspiravam aos nossos pobres companheiros a resolução de deporem as armas o que fizeram, banhando-as muitas de lágrimas de desesperado furor.

 

Senhores do reduto, ébrios de alegria pela portentosa vitória que haviam alcançado, os inimigos esqueceram no mesmo instante as generosas promessas que haviam feito para poupar alguns tiros e inspirar confiança e dando apenas ouvidos aos seus sentimentos de ódio feroz e sede de sangue encerraram todos a prisioneiros em uma mangueira de pedra, de onde os foram tirando pelo modo seguinte: 

 

Os oficiais e praças do 28° Batalhão sob a promessa, as praças, de servirem à Revolução, tomando armas contra o governo de seu país, e os oficiais, sob o compromisso de nunca mais se envolverem em movimento algum contra os insurgentes.

 

Quanto aos civis, eram chamados por uma lista, em que figuravam os nomes de todos os que deviam ser degolados, e à medida que eram lidos esses nomes, viam-se arrastados para uma sanga e miseravelmente imolados, e os outros, que não figuravam na lista da prescrição, amarrados e conduzidos para o acampamento.

 

Assim sucumbiu o valente e generoso coronel Manoel Pedroso de Oliveira que, depois de bater-se com desesperada bravura, ferido e prisioneiro, ofereceu pela sua vida o resgate que lhe exigissem; tudo foi baldado e o desventurado cidadão, o destemido servidor da Pátria o dedicado e valente defensor da República morreu degolado por um infame assassino, lançando em rosto aos seus algozes toda a expressão de seu desprezo e repugnância.

 

Antes do golpe fatal, pediu ao Alferes em Comissão Francisco de Paula Costa, que entregasse à sua única filhinha um anel de brilhante que possuía, e que lhe referisse, para exemplo e lembrança o fim heroico e glorioso de seu infeliz pai.

 

Depois de morto foi o seu corpo esquartejado e graças à piedosa caridade de uma senhora, sepultado no cemitério de Santa Rosa, faltando ao cadáver, as duas orelhas, por um requinte de perversidade dos assassinos!

 

Assim morreu também o nosso velho e dedicado companheiro Tenente-coronel Cândido Garcia de Vasconcellos, cujo cadáver, coroado de cãs ([1]) pelos anos e pelos serviços prestados à República foi profanado e mutilado por essas brutas feras, sedentas de sangue e de carnagem.

 

Assim pereceram também Ismael e Israel Proença, Ulysses Torres e tantos outros, que as balas homicidas haviam poupado, mas que o punhal dos sicários pôde mergulhar nos abismos da eternidade! 

 

No entanto nem todos foram vítimas da sanha dos malvados; Antero Pedroso, o valente que não se perturba nem estremece, ao ver que tudo estava perdido, procurou, não salvar a vida, mas conservar o seu valoroso braço para o serviço da Pátria que carecia seu auxílio. Despindo a farda e tomando uma divisa federalista saiu sem embaraços do reduto e transpôs, sem ser reconhecido, as linhas inimigas, levando por única companhia um peão, cuja presença nem mesmo notou senão a muitas quadras de distância do reduto.

 

Encontrando, mais além, um Major das Forças rebeldes e interpelado por ele respondeu que tudo estava terminado, que as Forças Republicanas haviam se entregado e que ele ia levar esta grata notícia a seus companheiros acampados à pequena distância. E assim conseguiu passar, chegando afinal a Piratiny, de onde novamente se pôs já em campo, vindo com numerosa e aguerrida Força, colocar-se ao serviço da coluna do Coronel Sampaio.

 

Um outro grupo, talvez de duzentos patriotas, tentou a passagem de uma estreita picada no Rio Negro, mas sendo pressentida pelo inimigo viu-se cortado, conseguindo apenas passar uns 40 que se dirigiram para as Palmas e outros pontos. Tal foi o combate do Rio Negro, que tanta audácia e coragem deu às armas revoltosas e preparou as cenas de canibalismo, de que esta cidade foi teatro.

 

Há mais de 50 dias que se deu a hecatombe, e a 22 de janeiro, indo eu ao sítio do combate, contei ainda insepultos 30 cadáveres, quase todos degolados, e nas mais expressivas contorções de angústia e desespero.

 

Soube que há ali sangas literalmente cheias de corpos, mas um sentimento de invencível repugnância, uma dor cruciante, pelo desespero e pela indignação, vedaram-me o ir presenciar mais esse medonho e terrificador espetáculo.

 

Uma circunstância que não devo deixar passar despercebida e que vem a propósito referir aqui embora só ontem [22 de janeiro] se tivesse dado, foi o encontro que tive com um sargento do 28° Batalhão de nome Pedro Ignácio dos Anjos, que me referiu o seguinte: 

 

Ferido no terço superior do braço direito esteve 3 dias sem receber socorros de espécie alguma até que enfim, quando o veio examinar um tal Gouvêa, estudante de medicina e cirurgião da Cruz Vermelha, achou o ferimento bastante agravado e falou em amputar-lhe o braço.

 

O pobre sargento, moço de pouco mais de 20 anos, disse que preferia morrer a ficar inválido, e pediu-lhe encarecidamente que não o mutilasse. Fingiu o desnaturado cirurgião que lhe ia fazer a vontade, e a pretexto de operar-lhe umas carnes em decomposição, cloroformizou-o.

 

Quando o infeliz tornou a si, já não tinha o braço direito. E o Sr. Gouvêa, honra da espécie, luzeiro de ciência, coração de pomba, que há de dar um benfeitor para a humanidade, empregando os ferros de que se servira, disse para o desventurado que o olhava com pasmo:

 

‒ Cortei-lhe o braço para que nunca mais torne a atirar contra o Partido Federal!

 

 

 

Corramos um véu sobre tanta infâmia e requinte de perversidade e esperemos que a justiça divina não deixe impune semelhante atentado.

 

Vejamos o que nesta cidade se passava.

 

A 29 de novembro, reuniam-se no escritório da extinta “Folha do Sul” os membros do Partido Republicano e entre vivas e aclamações de entusiasmo organizavam o “Batalhão Republicano”, cujas 4 companhias eram dirigidas:

 

‒    A 1ª por Julio Brissac;

‒    A 2ª por Elemento Americano;

‒    A 3ª por José Octávio Gonçalves;

‒    A 4ª por Leonel da Silva Paiva.

 

E foram todos por os seus serviços às ordens do Coronel Comandante da Guarnição.

 

No domingo, 3 de dezembro, estando completamente esgotado o depósito de papel, suspendeu a sua publicação o “Quinze de Novembro”, único jornal que havia na cidade e que se despediu do público com o seguinte artigo:

 

 

 

Pela República!

 

Conservei-me até hoje no posto em que me colocaram a minha profissão e as minhas ideias, sem esmorecer um instante, sem hesitar nem deter-me, diante de obstáculos e dificuldades.

 

Republicano desde a mais tenra infância, havendo bebido nas primeiras lições a inspiração sagrada das ideias democráticas e trazido, pelas contingências da vida, a este meio para mim completamente estranho, consagrei todo o meu esforço, a pequena dose de inteligência com que me dotou a natureza, toda a minha extrema boa vontade, à assídua propaganda, pela imprensa, da ideia republicana, única em que podia divisar a verdadeira liberdade, um futuro realmente próspero e feliz para os meus patrícios.

 

Tendo levantado essa bandeira de combate, entreguei-me à luta com sinceridade e valor e ali está o meu passado de jornalista, embora medíocre, para mostrar toda a abnegada dedicação, todo o esforço leal com que procurei concorrer, na medida de minhas forças, para a paz e felicidade da República.

 

Até hoje, diz-me-o, bem claramente, a consciência, nem uma vez faltei aos meus deveres de bom republicano, sem olhar a sacrifícios nem dificuldades, adquirindo ódios e desafeições pelo embate das ideias, e completamente desinteressado de qualquer recompensa a meus insignificantes serviços.

 

Hoje, as condições anormais em que se acha a cidade de Bagé, rodeada de inimigos, segregada de todo o convívio com os outros pontos do Estado, do País e do Mundo, vem obrigar-me a modificar a minha; atitude e a mudar de posto.

 

Enquanto pude, tentei melhorar as coisas pela propaganda da imprensa, por esta tribuna eloquente e augusta que se chama “Jornal Diário”, esforçando-me por educar o povo, aconselhá-lo nos momentos difíceis em que se perde a calma e o sangue frio, e mostrando-me, em todas as ocasiões, seu amigo sincero, pois do seu seio sou oriundo.

 

Agora, dificuldades que não estão ao meu alcance superar, vedam-me o continuar no posto que indebitamente tenho ocupado; em Bagé não existe uma só folha mais de papel de impressão, e enquanto não modificarem vantajosamente as coisas, estou na mais perfeita impossibilidade de continuar a publicar o meu modesto jornal.

 

No entanto não ficarei inativo; na luta que heroica e dedicadamente levamos empenhada em prol da República, há lugar para todas as dedicações, para todos os entusiasmos.

 

As circunstâncias obrigam-me a depor a pena de jornalista, medíocre, já o disse, mas sincero, de boa fé e leal; essas mesmas circunstâncias assinalam-me um posto honroso ao lado dos que, com seu sangue, procuram amalgamassar o grandioso templo da Pátria.

 

É de arma em punho, junto às trincheiras, ao lado dos bravos que, por uma bem entendida compreensão de seus deveres, fazem o sacrifício da vida para defenderem os direitos, a liberdade, o decoro e a honra deste povo, que me encontrarão os adversários da República, os inimigos encarniçados e ferozes da paz, da ordem e do progresso da família rio-grandense.

 

Ali não é somente a dignidade da Pátria que vou defender; é a honra de minha esposa, a vida de minhas inocentes filhinhas, a santidade de meu lar doméstico, que vou procurar disputar à horda feroz de brasileiros, degenerados e de castelhanos a soldada.

 

Se, como espero, triunfar a causa santa e nobre que defendo, voltarei na bonança, a ocupar o meu posto de jornalista, sem aspirar a mais recompensa da que a consciência de um dever praticado; se a causa das armas nos for adversa, seja o meu sangue e o de meus valentes e heroicos companheiros políticos, oferecido em holocausto à ideia que nos alenta, nos santos altares da Pátria.

 

Antenor Soares. [Continua] (A FEDERAÇÃO N° 39) 

 

 

 

 

Bibliografia:

 

A FEDERAÇÃO N° 39. História do Sítio de Bagé ‒ Brasil ‒ Porto Alegre, RS ‒ A Federação n° 39, 15.02.1894.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·    Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·    Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·    Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·    Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·    Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·    Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·    Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·    Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·    Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·    Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·    Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·    Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·    Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·    E-mail: [email protected].



[1]   Cãs: cabelos brancos.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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