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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Francisco Xavier da Veiga Cabral – Parte II


Francisco Xavier da Veiga Cabral – Parte II - Gente de Opinião

Bagé, 10.07.2020

 

 

 

Diário de Notícias, n° 127 ‒ Belém, PA

Sexta-feira, 07.06.1895

 

Hecatombe de Brasileiros

do Amapá, em 15 de maio de 1895,

Pelos Soldados Franceses, Vindos de Caiena
no Vapor de Guerra “Bengali

 

 

Chegamos ontem do Amapá, aonde fomos no vapor mercante – “Bragança” –, saído deste porto na noite de 27 de maio próximo findo. Ainda, dolorosamente impressionados pelo que vimos e ouvimos, vamos narrar com toda a fidelidade o ataque de surpresa feito pela infantaria de Caiena contra os pacíficos habitantes da povoação do Amapá, em sua totalidade brasileiros.

 

A população do território do Amapá, do Rio Amapá Grande ao Araguari; de 350.0, a 4.000 pessoas é brasileira, não chegando a 30 os estrangeiros de diversas nacionalidades.

 

Esses brasileiros constituíram um Governo local seu há muitos anos, e em dezembro do ano próximo passado elegeram um triunvirato. Este triunvirato delegou ao seu companheiro Francisco Xavier da Veiga Cabral, todos os poderes para organizar a polícia e comandá-la. Cabral tem se ocupado especialmente de trabalhos de exploração no interior do Amapá, arrostando mil dificuldades e despendendo grandes somas com o numeroso pessoal que emprega.

 

Sendo a França um País amigo e civilizado, impossível seria suspeitar, que de surpresa os seus soldados caíssem sobre a povoação do Amapá, massacrassem seus habitantes e incendiassem as casas! Por isso Cabral, pacificamente entregava-se aos seus labores, vindo à povoação no meado de cada mês, quando costumava chegar um vapor mercante do Estado do Pará.

 

Em 14 de março chegara Cabral do interior, e no dia seguinte de manhã, às 9 horas mal se tinha acabado vestir, entra correndo um amigo e anuncia-lhe que grande número de soldados franceses tinha desembarcado, e um pelotão comandado por um 1° Tenente de marinha, avançava a marche-marche contra a sua residência.

 

Como se achava, desarmado, Cabral sai ao encontro da Força, que já estava a poucos passos. Três vezes o oficial pergunta:

 

Sois o Governador do Amapá?

 

Três vezes tem a mesma resposta afirmativa. Está preso, diz o oficial a Cabral segurando-lhe no braço, e aos soldados ‒ agarrem-no.

 

Um brasileiro não se entrega a bandido. Responde Cabral, repelindo-o.

 

Fogo, brada o oficial, apontando contra Cabral um revólver.

 

Num momento, Cabral toma revólver e com ele atira contra o oficial; erra, o oficial corre e ele persegue-o, disparando segundo tiro, que ainda erra; ao terceiro tiro o oficial caiu. Quatro brasileiros, e um americano, armados de rifles, respondem ao fogo e fazem frente aos assaltantes.

 

Cabral corre à casa, toma um rifle, volta, e faz fogo contra os soldados franceses, e fá-los recuar até o grosso da coluna, e a todos estes obriga a correr para o porto onde estavam a lancha a vapor e quatro lanchões em que tinham vindo. Uma coluna tão ou mais forte que a primeira avança do lado do cemitério, situado nos fundos da povoação e metendo esta entre dois fogos. Então eram quinze os defensores do Amapá e destes Cabral destaca quatro para atacar pelo flanco a segunda coluna.

 

O combate tornou-se geral. De um lado, 300 ou 400 franceses marinheiros e infantaria de marinha comandados pelos oficiais do navio de guerra “Bengali”, perfeitamente armados e municiados; de outro o heroico Governador do Amapá Francisco Xavier da Veiga Cabral, acompanhado de 14 valentes, [13 brasileiros e 1 americano do norte].

 

As balas certeiras dos defensores do Amapá abriam muitos claros nas colunas dos soldados franceses e três oficiais tinham cabido mortos.

 

Às duas horas da tarde, esse punhado de bravos retirou-se por não ter mais munição, conduzindo o único companheiro, que fora gravemente ferido pelos franceses, e que veio a falecer dias depois. Os outros feridos, 4 brasileiros tiveram forças para ganhar o mato que estava próximo lá foram socorridos pelo heroico Governador e seus amigos.

 

Não tendo mais quem se lhes opusesse, os franceses arrombaram as casas, assassinaram velhos, crianças, mulheres e homens, indistintamente, para vingarem-se dos 15 brasileiros que ousaram defender-se, matando e ferindo a mais de cem camaradas e a três oficiais. Não se pode descrever o horror desta carnificina!

 

Arrombadas as portas a machado eram fuzilados os que se tinham fechada nas casas, sem piedade alguma nem para as mulheres, que de joelhos e com os filhos nos braços pediam misericórdia! Foram trucidadas 35 pessoas de todas as idades e feridas 25, sendo algumas gravemente. A raiva, o despeito de terem sido batidos por 15 paisanos, obscureceu o entendimento dos franceses e transformou-os em bárbaros sanguinários! Durante duas horas a povoação esteve entregue a sanha brutal de uma soldadesca furiosa: todas as casas foram saqueadas e 17 incendiadas, morrendo queimado em uma delas um velho doente, maior de 70 anos.

 

Às 4 horas da tarde, temendo que ficassem em seco as embarcações em que vieram, retiraram-se, levando mais a reboque uma canoa grande, de 58 palmos sobre 16, cheia do cadáveres de soldados franceses e conduzindo 3 prisioneiros, um português e dois brasileiros. A povoação estava em chamas.

 

II

 

Por que os soldados franceses, vindos de Caiena no vapor de guerra francês “Bengali”, assaltaram a povoação brasileira do Amapá, saquearam e incendiaram as casas e assassinaram os seus pacíficos habitantes, sem distinção de sexos nem de idade?!

Por mais tratos que demos a imaginação nada podemos encontrar que justifique ou ao menos autorize tanta perversidade. Um ligeiro estudo retrospectivo, porém, projetará luz bastante sobre este monstruoso atentado, e tornará evidente que somente a torpe cobiça de ouro do Governador de Caiena Charvein transformou uma parte da marinha francesa num bando de matadores de velhos, mulheres e crianças.

 

Às 7 horas da manhã de 30 de maio, chegou a bordo do ‒ “Bragança” ‒ o prático Manoel Raymundo da Trindade, que mostrou uma carta do comerciante Domingos Fernandes Mourão, datada de 26, da qual constava que no dia 13 do maio soldados e marinheiros franceses assaltaram a povoação do Amapá, matando 40 pessoas e perdendo maior número; que Cabral saíra salvo e o prático Chaves morrera.

 

Esta notícia causou verdadeiro estupor, pois parecia inacreditável que, marinheiros e soldados de uma nação amiga, que ocupa lugar distinto entre as primeiras nações do mundo, fosse capaz de praticar atos, que repugna mesmo aos selvagens, ferozes contra os inimigos vencidos, porém generoso com as mulheres, as crianças e os velhos. A verdade porém excedia muito a triste e sucinta notícia!

 

Mr. Henri Coudreau, ilustrado francês, encarregado há 12 anos de missão científica oficial nas Guianas e na Amazônia, impressionado por este lúgubre acontecimento declarou: que durante a sua última estada em Paris previra este triste resultado, anunciando-o ao simpático e eminente Mr. Etienne, Presidente do Grupo Colonial da Câmara dos Deputados e ao representante do Brasil o Dr. Glibriel Piza;

 

que era uma guerra dos negros contra os brancos;

que a raça negra de Caiena é inimiga inconciliável dos brancos; brasileiros e franceses;

 

que o Governador de Caiena Charvein é abertamente o protetor dos ladrões e bandidos, que exercem sua indústria no ‒ Contestado ‒ e o chefe ostensivo desta Cabanagem e seu associado nas rapinas;

 

que Mr. de Feiynet, antigo Presidente do Conselho de Ministros, ilustre homem de Estado, participa de sua opinião, isto é, que a solução do Contestado interessa à amizade, ao comércio dos brasileiros e franceses, que muito lucrarão com o desenvolvimento das boas relações existentes, e não aos poucos negros selvagens de Caiena, que nenhuma vantagem trarão à prosperidade da França.

 

O ilustrado e muito conceituado paraense Dr. Antônio Manoel Gonçalves Tocantins, que ainda há pouco tempo visitou as povoações do território contestado, referiu:

 

que, estalido no Cunani em dezembro do ano próximo passado, ouvira um negro, membro do Conselho Geral de Caiena dizer em voz irada a um parisiense: Pensa o Sr. acaso, que nós gostamos da França?

 

que em setembro, estando no Amapá, aí apareceram dois buscadores de ouro Hazard e Caillard e entregaram ao chefe do lugar, que então era o índio analfabeto Eugênio Voisin uma carta do Governador de Caiena Charvein pedindo que deixasse entrar os portadores e seus trabalhadores em procura de ouro;

 

que esse membro do Conselho Geral também estava em busca de ouro;

 

que essa carta autografa de Charvein tinha sido por ele entregue ao Governador do Pará Dr. Lauro Sodré, e por este enviado ao Governo brasileiro no Rio de Janeiro;

que o Sr. Cônego Maltez fora a Caiena em dezembro último e visitara ao Governador Charvein; e que este, sabendo que não tinha sido atendido o seu pedido pelos brasileiros do Amapá, declarara que bem podia mandar o aviso de guerra francês “Bengali” dar uma lição nos amapaenses, mas que estes não perderiam com a demora.

 

A opinião insuspeita, de Mr. Coudreau , que conhece perfeitamente, Caiena, o território contestado e seus habitantes; a carta oficial do Governador de Caiena Charvein, pedindo às autoridades do Amapá que deixassem entrar os seus comissionados Hazard e Caillard em busca de ouro; a ameaça feita pelo mesmo Charvein, de mandar o aviso “Bengali” ao Amapá para castigar os seus habitantes por se terem oposto aos seus desejos, provam de sobejo que a avidez, contrariada do Governador de Caiena é a única causa da pilhagem, do incêndio da metade da povoação do Amapá e massacre de seus habitantes.

 

Cachipor e Carsuene estavam devastados pelos crioulos Caieneses; era preciso destruir o Amapá, massacrar os seus habitantes, para que esses bandidos pudessem livremente penetrar no interior e satisfazer a sede insaciável de que devora o seu associado o mulato de Martinica Charvein, infelizmente Governador de Caiena, e o aviso “Bengali” da Marinha de Guerra Francesa, desempenhou esta triste comissão!

 

Para assegurar o êxito desta abominável empresa, veio, ao Amapá, na primeira quinzena de abril, o aviso “Bengali” sondar e balizar o rio até o porto da povoação.

 

Dois oficiais estiveram em terra e indagaram do Governador se os crioulos podiam vir explorar ouro no Amapá; e sendo-lhes respondido negativamente, perguntaram se viessem os crioulos o que fariam os Amapaenses. A resposta foi que não deixariam entrar esses crioulos para não serem vítimas das depredações que costumavam fazer.

 

O fim estava conseguido: a posição do Amapá reconhecida, balizado o rio e marcada a altura da preamar e baixa mar; podiam voltar com segurança e o fizeram em 15 de Maio! [Felipe José de Lima]

 

 

 

Pará 6 de junho de 1895

 

Sr. Dr. Tocantins, encarregado de missões científicas

Meu caro colega

 

Acabo de ler atentamente vosso relatório sobre o massacre de Amapá. Relata um conjunto de fatos que, desgraçadamente não podem ser postos em dúvida, mesmo nos detalhes: Assisti ao inquérito que fizestes no Amapá, e cotejei-o com outro contra-inquérito feito por mim mesmo e minha convicção é completa: OS FATOS SÃO EXATOS NO SEU CONJUNTO.

 

Peço-vos somente que destinais neste lamentável acontecimento duas fontes de responsabilidade:

 

    A RESPONSABILIDADE DO GOVERNO FRANCÊS:

 

   O Governo francês foi dividido em sua boa-fé por um pequeno bando de indivíduos, mais ou menos comprometidos, camarilha, que eu observo à alguns anos e cuja entrada próxima nas galés espero com paciência.

 

    A RESPONSABILIDADE DO BANDO DE INDIVÍDUOS EM QUESTÃO:

 

   Por hoje não marcarei na espádua senão o odioso instigador do massacre do Amapá, o célebre Charvein, grande jacobino anticolonial que dá lealmente a mão ao seu negro nas pequenas combinações auríferas do, Contestado.

 

   Não determino por ora porque não estou na França; mas fá-lo-ei nos jornais de meu País.

 

   Falarei! Não consentirei que se diga, que Caiena, a Caiena que conheceis, a Caiena cujo sentimento anti-francês vós mesmo tendes verificado, provocará um rompimento entre a França e o Brasil.

 

   O coração e o bom senso das duas grandes nações amigas prevalecerão contra as patifarias dos negros e a raiva dos concussionários (daqueles que praticam crimes contra a administração pública).

 

   Cordialmente, meu caro doutor, vosso devotado.

 

   Henri Coudreau [Ex-encarregado de missões científicas, 1883-1895] (DDN, n° 127)

 

Bibliografia:

 

DDN, N° 127. Hecatombe de Brasileiros do Amapá ‒ Brasil ‒ Belém, PA ‒ Diário de Notícias, n° 127, 07.06.1895.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·    Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·    Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·    Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·    Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·    Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·    Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·    Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·    Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·    Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·    Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·    Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·    Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·    Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·    E-mail: [email protected].

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