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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte XLII - “BANDEIRA” de Francisco de Mello Palheta – III


A Terceira Margem – Parte XLII - “BANDEIRA” de Francisco de Mello Palheta – III - Gente de Opinião

Bagé, 11.09.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XI

 

BANDEIRA” de Francisco de Mello Palheta – III

 

No dia 20 de junho, a Expedição alcançou a Foz do Rio Jamari, no dia 22, chegam à primeira Cachoeira do Rio Madeira, a de Santo Antônio, denominada pelo narrador da Expedição como Maguari e, no dia 23, a Cachoeira de Iaguerites (atual Teotônio).

 

Chegamos ao Rio Jamari com dez dias de viagem, e continuamos para cima; aos 22 do mês, chegamos à Cachoeira chamada Maguari ([1]) e, na passagem dela, se alagou Damaso Botelho em uma galeota, na qual perdeu o Cabo a sua capa, o que deu por bem empregado por ser em serviço de Sua Majestade que Deus guarde. Daqui fomos à Cachoeira dos Iaguerites ([2]), onde chegamos às vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento ([3]) uma figura do inferno [...], pois nenhuma se iguala nem tem paridade a esta do Rio Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros de pedras e rochedos tão altos que nos pareceu impossível a passagem, como na realidade, pois para passarmos foi necessário fazer-se caminho, cortando uma ponta de terra onde fizemos faxinas, sendo o Cabo o primeiro no trabalho a dar-nos exemplo. Fizemos uma boa grade de madeira por onde se puxaram as galeotas; no dito dia ainda se puxaram 4, suposto que com muita fadiga, e já acabamos tarde; e no outro dia, que foi o do nascimento de São João, se puxaram as mais e se carregaram outra vez com farinhas e munições, que as fomos comboiar mais de meia légua de caminho por terra.

 

 

Daqui continuamos nossa jornada passando Cachoeiras umas atrás das outras e chegamos à quinta Cachoeira, a que chamam Mamiu ([4]), que gastamos três dias em passar nela as galeotas a corda, não havendo exceção de pessoa neste grande trabalho, e com tal perseguição de pragas de piuns, que cada mordedura é uma sangria, e ficamos em uma ponta aonde foi julgada que humanamente se não podia passar; e passamos as galeotas a outra banda do Rio para haver de melhor passar, e o Cabo mandou puxar a sua galeota por cima das lajes e as duas mais pequenas que servem de espia, e foi esperar pelas mais canoas à Ilha chamada das Capivaras, e pela tardança deram bem cuidado ao Cabo até 9 horas da noite, que nos ajuntamos.

 

Logo que amanheceu fomos seguindo nossa viagem à Cachoeira chamada Apama ([5]) véspera de São Pedro; e fazendo faxinas igualmente Soldados e índios, rompemos as matas terra a dentro dois quartos de légua, em que gastamos dois dias em fazer caminho e grade, rompendo a golpe de machado e alavancas grandes pedras e afastando outras aos nossos ombros com bem risco de vida.

 

Esta Cachoeira assinalada dos Apamas, é tão terrível e tão monstruosa e horrível, que aos mesmos naturais de Cachoeiras mete horror e faz desanimar, porque de contínuo está no mais violento curso de sua desatada corrente, o que não encareço por não ser suspeitoso, porém deixo à consideração e representação dos experientes, pois por muito que dissera não dizia nem ainda a terça parte do que é, o que se pode perguntar igualmente assim ao Cabo e Capitão como a todos os mais da Companhia.

 

Aqui demos ordem a puxar as galeotas, e se puxaram três a meio caminho, porque uma galeota botou o beque ([6]) fora cérceo ([7]), desfazendo a amura ([8]) e as conchas ([9]) que foi necessário por-se-lhes rodela, ao outro dia se puxaram as mais; e a 2 de julho, depois das galeotas consertadas e breadas ([10]) que se acabaram pelas 10 do dia, partimos e fomos seguindo a nossa jornada todo aquele dia, sem acharmos Porto capaz até às 8 da noite, porque este Rio em si está a cair toda a beirada continuamente e de tal sorte caem pedaços de terra, que deixa uma enseada feita, e fomos dormir a uma Ilha de pedras donde achamos boa ressaca para as galeotas se amarrarem seguras; e logo que amanheceu, seguimos viagem ao Porto dos Montes, onde disse o guia vira um caminho que descia ao Porto que era do Gentio, que habitava naquele lugar, mas não se viram trilhas nem caminhos, por estar já deserto; neste dito Porto, fomos visitados de uma praga de abelhas, assim a quantidade das grandes, como uma máquina das pequenas tão espessas como nuvens, buscando-nos olhos, e ouvidos e boca, e todos engoliram bastantes, porque se as enxotassem das rações ficaríamos destituídos de toda a limitação que temos de farinha, que é tão limitada a medida em que se dá, que apenas é para dois bocados de boca, e fechada cabe em uma mão toda; logo também o que vamos comendo, são camaleões e uns animais a que chamam capivaras, e alguns, por se não atrever a estas poucas carnes, comem só os ovos dos ditos lagartos. Peixe de nenhuma casta nem sorte se acha, que das pobres espingardas é que vamos passando a remediar a vida.

 

O Cabo que nos rege não dorme nem sossega antevendo o futuro e por isso é tão previsto e assim vamos com muita regra com a farinha; e tornando à nossa derrota, fomos caminhando até a noite que aportamos na beirada de uma Cachoeira ([11]) e determinamos passá-la no seguinte dia. Neste lugar, deu parte o Principal Joseph Aranha ao Cabo haver visto uma mui grande aboiada ([12]), que afirmam todos os que a viram teria de comprimento pouco menos de 40 passos ([13]) e de grossura julgaram ter 15 a 17 pés ([14]). Grandes monstruosidades de animais semelhantes têm este Rio, porque com esta são duas que se tem visto nesta viagem, e outras maiores imundices se podem ver nele, porque não há dúvida que estas veemências de pedras [nas concavidades que têm] muito mais podem criar.

 

E assim que amanheceu, fomos seguindo nossa jornada até ser hora de parar e tomamos Porto pelas 11 do dia. Aos 7 do mês de julho, indo gente a descobrir campo, viram trilha nova de gentio e lugares frescos, o que logo deram a saber ao Cabo que, no mesmo instante, mandou gente bastante para ter encontro a qualquer invasão, ordenando ao Soldado Vicente Bicudo os seguisse e os mandasse praticar para que viesse o Principal à sua presença, declarando-lhe os não mandava fazer mortes ou amarrações nem outro gênero de agravo. Haveria espaço de duas horas que tinha partido o dito Soldado, quando chegaram as mais galeotas da conserva, que de retaguarda vinham, mandou logo o Cabo ao ajudante Manuel Freire com grosso poder, fazendo-lhe a mesma advertência e que declarasse logo pazes com o dito gentio pelos meios mais suaves de dádivas.

 

Partiu o ajudante a incorporar-se com o Soldado Bicudo e, por ser já tarde, dormiram no mato e depois que o dito ajudante partiu, ordenou mais o Cabo a Damaso Botelho engenhasse uma picada em forma de trincheira, o que logo se fez com três guaritas ([15]), em que ficamos seguros como já para ter encontro ao inimigo.

 

Assim que amanheceu, foi um Soldado com dois índios nossos [de licença do Cabo] a buscar a vida, quando nas mesmas horas voltou a dar parte tinha ouvido rumor de gentio e chorar de criança, o que ouvido pelo nosso Cabo mandou logo ao Capitão fosse mandar praticar ao dito gentio, mas estes, como nunca tinha visto brancos, se puseram de fugida debaixo de suas armas, e despedido o Capitão para a diligência, mandou o nosso Cabo guarnecer as guaritas, e os poucos índios com que nos achávamos a desfilada pela coartina [troço do reparo situado entre dois baluartes], já para ter mão ao que pudesse suceder, mas tudo se acabou com a chegada do Capitão, apresentando por presa a um velho que no pé esquerdo não tinha dedos, três índias e três crianças.

 

Chegou logo o ajudante com um lote de gente onde vinha o Principal, índio moço e mui arrogante, e é certo que chegou com mui pouca vontade porque dizem se atracara com um índio nosso, mas que, vendo o nosso poder, aplacara da fúria, e assim solto o trouxeram à presença do nosso Cabo.

 

Acompanhavam a este dito Principal dois mocetões, seus filhos, de pouco mais que 15 a 12 anos e duas índias, mães dos ditos e mulheres do Principal, com mais um rapaz e uma rapariga e todos faziam cômputo de treze cabeças.

 

Fez o Cabo o possível por uma língua para os mandar praticar, mas não se achou quem os entendesse, porque falando a nossa língua, batiam com as mãos nos ouvidos, mostrando ter sentimento de não ouvir a nossa prática, mas com grandiosos mimos e dádivas ficaram mui contentes e satisfeitos no que mostravam.

 

Aqui Nossa Senhora do Carmo, que não falta a seus devotos, “espiritou” a língua em falar-lhes em língua de outro gentio seus Conhamenas, logo respondeu o Principal gentio com um agrado ao que lhe propunha a nossa língua por cuja gíria foi continuando a prática, e sobre e por razão da paz firme e valiosa que com eles pretendíamos fazer, e na mudança de vida para virem ao grêmio da Igreja, avassalando-se como os mais gentios fizeram, a que respondeu estava contente e certo nas cláusulas e firmeza da paz, e dizendo ao Cabo que o esperasse que o queria vir visitar da sua Província e trazer-lhe algumas coisas em reconhecimento do bom trato e mimos que lhe havia dado, se queria recolher; ao que o Cabo respondeu mandando-lhe dizer que tudo agradecia e que se fosse em paz, que sua vontade era seguir para cima o Rio, fazendo pazes e descobrimento, que não vinha fazer escravos, senão amigável paz com todos; e aqueles que lhe quiseram impedir sua jornada tomando armas para ele, que a este sim lhe declararia guerra.

 

Foi o Principal gentio em paz para a sua Província, o qual na estatura e presença muito bem parecido e os enfeites que trazia era uma coleira de miúdas contas de fruta do mato, muito negras, e o cabelo atado atrás em molho e nele um penacho, e por diante trazia o cabelo cortado, de orelha a orelha, os beiços tintos de vermelho de uma casca de pau que mordia; as índias cobriam, o que a natureza ocultar ensina, com uma franja de fio tecido, e cingiam no cinto uma enfiada de contas das ditas frutas do mato; era para ver como festejavam os nossos avelórios ([16]): é este gentio muito pobre; as suas redes são de casca de pau aqui chamados embira. Despedidos eles, ficamos de aposento até ao outro dia ao amanhecer, que fomos seguindo a viagem, e sendo por horas de vésperas chegamos a paragem em que o Rio estava tapado com uma grande Cachoeira ([17]) e andamos buscando canal com excessivo trabalho. (ABREU)

 

No dia 1° de agosto, prosseguem subindo o Rio Mamoré, passam pela Foz do Rio Guaporé ([18]) e no dia 08 chegam à Povoação espanhola de Santa Cruz de Cajuava, onde foram recebidos e hospedados pelo Padre Miguel Sanches de Aquino, Superior da Missão.

 

Nos dias 09 e 10, reuniram-se com os Padres Superiores das Províncias de Moxos e Chiquitos, João Batista de Bosson, Missionário de Santa Ana, Gaspar dos Prados, Missionário de São Miguel e Nicolau de Vargas, Missionário de São Pedro. Palheta informou-lhes estar a serviço Rei Dom João V de Portugal e do Capitão-General Maia da Gama, Governador do Maranhão, e recomendou-lhes que limitassem suas ações às margens esquerdas dos Rios Guaporé e Mamoré, não ultrapassassem suas respectivas Fozes e nem recrutassem indígenas dessas margens Rio abaixo por pertencerem a Portugal, desde 1639. (Continua...)

 

Bibliografia

 

ABREU, J. Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil – Brasil – São Paulo, SP –Ed. Itatiaia – Edusp, 1989.

 

KELLER, Franz. The Amazon and Madeira Rivers – EUA – Philadelphia – J. B. Lippincott and C°., 1875.

 

Solicito Publicação

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: [email protected].



[1]   Maguari: Santo Antônio.

[2]   Iaguerites: Teotônio.

[3]   Encarecimento: exagero.

[4]   Mamiu: Caldeirão do Inferno.

[5]   Apama: Jirau.

[6]   Beque: parte mais avançada da proa.

[7]   Cérceo: rente.

[8]   Amura: quadra da proa.

[9]   Conchas: caçoleta do canhão.

[10]  Breadas: revestidas de breu.

[11]  Cachoeira: Três Irmãos.

[12]  Aboiada: Sucuri ‒ Eunectes murinus.

[13]  40 passos: 59,2 m.

[14]  15 a 17 pés: 4,57 a 5,18 m.

[15]  Guaritas: pequeno abrigo onde se recolhem as sentinelas.

[16]  Avelórios: peça de roupa com vários pingentes colocados na gola e na manga da camiseta ou na barra da calça.

[17]  Cachoeira: Ribeirão.

[18]  Guaporé: Itenes.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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