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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte XCVI - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ XVII


A Terceira Margem – Parte XCVI - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ XVII - Gente de Opinião

Bagé, 26.11.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LXV

 

Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo XVII

 

Ano de 1909

 

Em janeiro de 1910, o Ministro da Viação e Obras Públicas, apresentou ao Sr. Presidente da República um Relatório sobre a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em que faz uma contundente defesa dos empreiteiros afirmando que os mesmos estavam tendo prejuízos na empreitada. Elaborado por um Engenheiro, funcionário do Governo Brasileiro, encarregado de fiscalizar a construção e cuja função deveria ser de defender os interesses do Estado e não dos Concessionários. Erram o funcionário e o Ministro ao mencionar no relatório custos que ultrapassavam os de Contrato, propondo que o Governo tome a iniciativa de socorrer os empreiteiros:

 

Os serviços de construção não tiveram, como era de se esperar, um andamento regular durante o ano de 1909. O mau estado sanitário de toda a zona fazendo baixar ao hospital um número considerável de operários; a grande vazante do Rio Madeira dificultando sobremaneira o transporte dos materiais vindos do estrangeiro e descarregados em Itacoatiara; a má qualidade das terras em geral, demorando extraordinariamente a solidez dos aterros, principalmente na estação chuvosa, e, consequentemente, a pouca segurança da linha assentada, motivando continuadas interrupções nas viagens dos trens de mercadorias, de materiais e lastro, foram as causas principais da irregularidade do serviço de construção. Embora a companhia tivesse conseguido por em trabalho, no meado do ano, cerca de 4.000 operários, o serviço por eles executado foi relativamente insignificante, não correspondendo às grandes despesas efetuadas para transportá-los até Porto Velho, porque, para tanto, houve necessidade de ser mantida uma corrente ininterrupta de gente que subia contratada, a fim de ser compensada a deserção cada vez mais acentuada do mesmo pessoal que, acossado pela moléstia e contristado pelo ermo da mata, descia incessantemente em busca de outras paragens, onde a saúde tivesse garantia e melhor aplicação os lucros auferidos em poucos meses de trabalho.

 

Permanecendo assim por tão pouco tempo em Porto Velho ou nas turmas acampadas ao longo da linha, esse pessoal, alheio, na maioria, aos serviços de construção de estradas, não pode absolutamente habilitar-se nos trabalhos que lhes foram confiados. Daí obras morosas e imperfeitas e, por conseguinte, maiores prejuízos para a companhia. Raras vezes terá sido construída uma estrada nas condições desta; felizmente, apesar de tantos reveses, os seus construtores não desanimaram ainda, sentindo-se bem fortes nessa luta contínua contra todos os elementos naturais. O terreno em geral não é, como já disse, favorável à construção de estradas, por muito pouco consistente. As grandes chuvas, por sua vez, atrasam extraordinariamente o prosseguimento dos trabalhos, abatendo ou arrastando grandes aterros. O escavador mecânico empregado pelos empreiteiros tem prestado reais serviços, principalmente nos últimos meses do ano, quando a falta de braços se tornou bem sensível.

 

A linha, que devia chegar em setembro ao Jaci-Paraná, a 86 km do ponto inicial [Ponto Velho], só o atingirá talvez em fins de fevereiro do corrente ano [1910], pelos motivos já expostos e também pela falta de dormentes, que obrigou a companhia a contratá-los no Rio de Janeiro e na Austrália, de onde espera um fornecimento de cem mil. Todas as pontes têm sido construídas de madeira, de caráter provisório, devendo este ano serem substituídas por metálicas.

 

A ponta dos trilhos já se achava, em 31 de dezembro do ano passado [1909], no quilômetro 74, estando nessa mesma época o leito concluído na extensão de muitos quilômetros além. Do outro lado do Jaci-Paraná a linha está pronta em mais de 15 quilômetros, devendo elevar-se a extensão concluída até o fim do corrente ano [1909] a 174 quilômetros, atingindo-se o Rio Mutum-paraná. Foram construídas durante o ano, em Porto Velho, muitas casas para o pessoal superior que é numeroso.

 

Os trabalhos realizados até 31 de dezembro do ano próximo findo [1909] montam a quantia de 11.212:250$156, sendo 7.516:086$172 de serviços executados e 3.696:163$984 de materiais recebidos do estrangeiro.

 

Pensa o Engenheiro fiscal que os primeiros 100 quilômetros desta estrada, contando como despesa deste trecho todo o material rodante já recebido, o custo das instalações em Porto Velho, em Candelária e no Jaci-Paraná, trilhos e outros materiais empregados no serviço médico hospitalar desde o começo dos trabalhos, ficarão talvez em 15.000:000$000, à razão de 150:000$000 o preço quilométrico, devendo o preço médio geral reduzir-se no final da construção a cento e poucos contos, não se elevando o total da estrada a mais de 35.000:000$000, de acordo com o cálculo aproximado apresentado pelo mesmo Engenheiro. (FERREIRA, 1959)

 

Ora o vencedor da concorrência levara em conta, como determinara o Edital, o cálculo dos custos especificados pela Comissão Pinkas cujo custo total atingira cifra de 8.736:716$312, (um quarto do preço da empreiteira) e de 26:507$020 por quilômetro (menos de um quinto do preço da construtora) e concordara com esses termos. Ontem como hoje, técnicos e/ou políticos corruptos, aliciados ([1]) por empresas, conseguem, através de artifícios de todos os tipos, aditivos ao contrato que oneram os cofres públicos e o bolso do contribuinte.

 

Sendo assim, proporcionalmente ao salário do operário que, em outra parte do país, não vai além de 3$500, e ali nunca é inferior a 10$000, levando-se em conta as despesas de transporte e prejuízos, esta será relativamente, a estrada de custo menos elevado construída no Brasil. (FERREIRA, 1959)

 

O custo do operário era assunto interno da construtora e que não cabia, absolutamente, ao Governo considerar em seu relatório. Não era da alçada do Ministro e muito menos ao Engenheiro que fiscalizava as obras da construtora sair em defesa destes.

 

O custo do quilômetro tem sido de 3:100$000 para a exploração e projeto e 8:800$000 para locação, tais são as dificuldades de transporte e manutenção de pessoal. (FERREIRA, 1959)

 

O contrato previa que o quilômetro de exploração e projeto seria pago à razão de 1:500$000, metade do declarado pelo Ministro, e o de locação 2:020$000, um quarto do declarado pelo representante do Governo brasileiro.

 

Ano de 1910


Quando tratarmos da profilaxia quinínica, veremos que aqui também a praxes habituais não cabem na região do Madeira. É a formação da raça de hematozoário resistente à quinina. Daí a necessidade do emprego de altas doses no tratamento e profilaxia. (Osvaldo Cruz)

 

A construtora trouxe para região uma média de 508 operários por mês de todas as partes do mundo. No dia 23.04.1910, um funcionário do alto escalão do Ministério da Viação, enviou à Madeira-Mamoré Railway uma autorização para o lastramento ([2]) da linha. O lastramento não estava previsto no contrato e, portanto, não havia um preço prévio contratado. A ordem não especificava o preço, caracterizando uma grave irregularidade que resultaria, mais tarde, como não poderia deixar de ser, em um grave escândalo patrocinado por agentes públicos.

 

No dia 31.05.1910, foi inaugurado o primeiro trecho da Ferrovia, entre Santo Antônio e Jaci-Paraná, numa extensão de 90 quilômetros.

 

No dia 09.07.1910, chegam a Porto Velho os doutores Osvaldo Cruz e Belizário Pena. Os sanitaristas permaneceram na região por 28 dias onde tiveram a oportunidade de percorrer a linha férrea até o quilômetro 113. Partiram, no dia 07.08.1910, para a Capital Federal, onde redigiram um extenso relatório propondo diversas medidas que deveriam ser adotadas para melhorar o estado sanitário da região onde estava sendo construída a Ferrovia.

 

No relatório entregue à Madeira-Mamoré Railway, no dia 06.09.1910, constava:

 

Naturalmente o regime das águas do Rio inundam as margens baixas do alto Madeira, formando os pântanos donde se originam as aluviões de mosquitos que se vão encarregar de alastrar a endemia malárica que é em função dessas precipitações aquosas. O Madeira atinge o máximo da cheia em meados de março, alcançando as águas a altura de 96 metros, isto é, 14 metros acima do nível mínimo de 82 metros que é atingido na última quinzena de setembro.

 

Como regra, se verifica que a insalubridade da região começa pouco depois da vazante, quando as águas, abandonando a terra, ficam em parte depositadas nas depressões dos terrenos, onde se formam, então, pântanos que se estendem por quilômetros de extensão e permitem a criação em massa dos anofelinos que se vão infectar nos impaludados crônicos que habitam a região e vão disseminar extensa e intensamente a malária. [...]

 

Dominam na nosologia da região as seguintes moléstias: o impaludismo, a febre hemoglobinúrica, o beribéri, a disenteria, a ancilostomíase, a pneumonia, além de outras entidades mórbidas de menor frequência e a que adiante aludiremos; acompanhando tudo o alcoolismo. [...]

 

Dos anofelinos transmissores do impaludismo só nos foi dado, na época que estudamos [julho e agosto], colher duas espécies de Cellia, a alcimana e a argyrotarsis, sendo esta predominante. Não encontramos outras espécies em Candelária, Santo Antônio, Jaci-Paraná, e em outros pontos da linha em construção.

 

Mas se não avultam pela variedade de espécies, assoberbam pelo número: no Jaci-Paraná, em um rancho de palha onde havia quatro doentes, logramos fazer colher numa só noite para mais de 100 exemplares de Cellia argyrotarsis. [...]

 

Naturalmente, à vista do que vimos relativamente à topografia da região, não se pode em cogitar fazer já, para facilitar a construção da estrada, os trabalhos de profilaxia regional que quase custaria tanto, senão mais que a própria construção. Só podem ser tomados em consideração os processos do método da profilaxia individual. [...]

 

Assim, se tivéssemos de fazer profilaxia quinínica, teríamos de avaliar qual a dose mínima de quinina suficiente para preservar o indivíduo dos parasitos inoculados pelos mosquitos. Observações que fizemos, na região, mostram que esta dose, para ser profícua, não deve ser inferior a 75 centigramas ou 1 [um] grama diário. Pessoas que tomaram doses inferiores foram infectadas. Resta saber se essa prática de profilaxia química exclusiva caberia à região. ”A priori” podemos dizer que não, e não porque em breve a raça de parasitas já em via de imunização contra a quinina estaria resistente a 1 [um] grama diário de quinina profilática, o que levaria à necessidade de se elevar a dose profilática aos poucos até atingir os limites da dose manejável. Ora, atingido esse limite, a dose terapêutica estaria dentro da dose tóxica e ficariam os doentes no dilema de: morte por moléstia ou intoxicação pelo medicamento.

 

Essas medidas precisam ser postas em prática, já quanto antes porque, em breve, ter-se-á formado uma raça de hematozoário resistente às doses manejáveis de quinina e então a solução do problema quase que atingirá os limites do insolúvel.

 

A procrastinação das medidas será um crime de lesa-humanidade, permitindo maiores sacrifícios que os de hoje: uma vida, e talvez dez inutilizadas por dia, e de lesa-pátria porque transformará em zona inabitável um dos mais ricos sítios do planeta. (FERREIRA, 1959)

 

Bibliografia

 

FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo – Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1959.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·      Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·      Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·      Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·      Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·      Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·      Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·      Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·      Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·      Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·      Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·      Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·      Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·      Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·      E-mail: [email protected].



[1]    Aliciados: comprados.

[2]    Lastramento: colocação de uma camada de brita sob os dormentes.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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