Quarta-feira, 24 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

A C L E R

As botinas da discórdia assombram Vila Murtinho - Causos do berço do madeira:


As botinas da discórdia assombram Vila Murtinho - Causos do berço do madeira: - Gente de Opinião

Entre a caixa d’água e a Igreja de Nossa Senhora Terezinha, ficava a residência do José Ribeiro da Costa, administrador da estação ferroviária da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Após a igreja, residia o telegrafista José Gomes, e entre sua residência e o Rio Mamoré, foi instalada a caldeira que abastecia a caixa d’água que alimentava   as fumarentas locomotivas inglesas, no   vai e vem diário  entre Porto Velho e Guajará-Mirim.

O porto ficava na mesma direção da estação ferroviária. Bem próximo foi instalada a representação da Jacob Sabbá, empresa responsável pela comercialização de toda a Castanha do Pará que descia através das barcaças “Vaca Diez” e “Mojo”, dos castanhais entranhados nos vales dos Departamentos  de Beni  e Pando bolivianos.

Semanalmente, essas embarcações regurgitavam no porto de Vila Murtinho toneladas da Bertholletia excelsa, que os encarregados da Jacob Sabbá armazenavam na estação, onde aguardavam o embarque nos vagões das locomotivas com destino a Porto Velho, depois seguiam viagem nos porões dos navios que desciam o Rio Madeira, para serem negociadas com as casas de aviamentos das cidades de Manaus e Belém do Pará.

A residência do delegado José de Sá, fora construída às margens do Mamoré, entre o porto e a escola   Aluízio Ferreira. Nas suas folgas, o delegado trabalhava como sapateiro, ofício que aprendera ainda criança com seu pai no sertão de Caicó. Era um exímio artesão no conserto e fabrico de sapatos, bolsas, carteiras e cintos, cuja matéria-prima chegava em suas mãos vinda dos melhores curtumes do Nordeste.

Construíra sua oficina nos fundos da residência, defronte para o Mamoré, de onde se via o vai e vem das embarcações, o encontro das águas do Mamoré com o Beni e a bandeira do país boliviano fincada no alto de um poste de paxiúba acenando incansavelmente para a torre da Igreja de Santa Terezinha. José de Sá não tinha família, era quase um ermitão e só deixava sua residência para ir à delegacia, ou no botequim do Manduquinha, tomar uns tragos de conhaque São João da Barra.

Num final de tarde límpida em que o sol abraça furtivamente as matas das margens dos rios e lança raios multicores sobre suas águas, dando aos peixes   um colorido alaranjado, já fadigado e exausto de tanto manusear pés-de-ferro, martelos, torquesas, faca, agulhas e linhas, José de Sá levantou-se para fechar a oficina, quando os latidos de seus cães anunciaram a chegada de um visitante. O homem que se apresenta é um funcionário recém contratado da Jacob Sabbá, e trás nas mãos um par de botinas velhas, com as solas despregadas e grandes furos nas pontas e nos calcanhares. José Mansinho coloca as botinas velhas sobre o pé-de-ferro, e pergunta arrogantemente ao velho sapateiro se ele tem tempo para lhe entregar seus calçados remendados, ainda naquele fim de  tarde.

Zé de Souza que também carregava no sangue a marca da ignorância, respondeu-lhe não menos áspero e meio afobado, “ é mais fácil eu ir pro inferno andando do que  lhe entregar essas porcarias remendadas ainda hoje”, mirando resoluto para o bugre parado na porta da oficina, cuja  vasta cabeleira era dura e sebenta como suas escovas de engraxar sapatos.

José Mansinho retira calmamente as botinas de cima do pé-de-ferro, mira-lhes as solas despregadas e tomado por um surto repentino de raiva incontrolável, as arremessa certeiramente nos peitos do perplexo sapateiro. Não se sabe como e nem quem atacou primeiro, em segundos os dois homens abufelados, rodopiavam feitos dois jacarés-açus por cima dos apetrechos da oficina, rolam pelo terreiro e ainda entrelaçados como duas sucuris, despencam pelo  barranco e caem como uma pela de borracha  nas águas mornas  do Mamoré.

A contenda continua no fundo do remanso e desliza em direção à cachoeira, quando José Mansinho num esforço descomunal se desvencilha das garras do sapateiro, retira-se arquejante de dentro do rio, e sobe o barranco decidido a registrar um boletim de ocorrência contra o encharcado e endiabrado sapateiro, “ao cagar dos pintos” do dia seguinte.

A delegacia, com aspecto de casa mal-assombrada, ficava nas proximidades do posto de saúde, defronte para a ferrovia e há poucos metros da casa do delegado. Este, servidor público quase se aposentando, abria as portas do estabelecimento público muito cedo, pois naquela dia após a peleja com o bugre na barranca do rio, foi ainda mais cedo para a delegacia pois não conseguira dormir e tinha passado a noite em claro com dores insuportáveis na região ciática.

José Mansinho também acordou cedo e após comer beiju com água açucarada, foi ao alpendre do barraco e pegou as “ botinas da confusão”, ainda molhadas pelas águas do Mamoré, as colocou num bisaco e rumou para a delegacia sem imaginar que o delegado, era justamente o sapateiro doido  que quase lhe arrancara as tripas  no fundo do rio.

O delegado estava sentado em sua velha cadeira de cipó, pitando  seu cachimbo cheio de  fumo de corda, enquanto observava a barcaça Vaca Diez deslizar  pelas águas do Mamoré em direção ao porto, quando alguém adentra ao estabelecimento, e retira-o daquele leve torpor que se encontrava, provocado pela nicotina e pela paisagem mansa do rio.

O espanto e a incredulidade de ambos emudeceu e fez saltar até  os pregos das tábuas das paredes da delegacia, que foram caindo uma a uma, enquanto o telhado levantava voo  e plainava em direção à calha do Rio Madeira, se espatifando no pedral logo abaixo da cachoeira. Os homens, mais uma vez frente a frente, no meio do tempo, rodeados por borboletas amarelas que nessa época do ano infestavam as barrancas do rio sorvendo o néctar dos floridos aguapés, se atracaram mais uma vez, agora com muito mais violência e disposição quase  canina.

Envoltos numa guerra insana do fim do mundo, os dois homens já estropiados, dilacerados pelo ódio e com as vestes em frangalhos, rodopiaram  pelo pátio da delegacia, passaram por cima de  um tirirical e um imenso formigueiro de saúvas e caíram mais  uma vez  nas águas do Mamoré, provocando uma imensa pororoca que balançou  as embarcações atracadas no porto e afundou as velhas canoas dos ribeirinhos e pescadores.

Não se teve mais notícias de ambos, os mais antigos contam que morreram abraçados no fundo do rio e foram engolidos pela sucuri gigante que morava nos arredores do porto. No local onde era a delegacia, ficou de pé apenas a cela do “Trem das Almas”, a cadeira de cipó quase intacta, poucos apetrechos do delegado e sobre a mesa, o cachimbo ainda fumegando e as velhas botinas com suas solas despregadas e grandes furos nas pontas e nos calcanhares.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuarta-feira, 24 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Academia de Letras de Rondônia lança primeira Antologia

Academia de Letras de Rondônia lança primeira Antologia

Contos, crônicas, poesias e histórias diversas são os estilos adotados pelos 23 imortais que participam da Antologia 2017, que está sendo lançada por

ACLER tem sarau cultural amanhã

ACLER tem sarau cultural amanhã

  Será amanhã, sexta-feira, a partir das 19 horas, no hall da Unir/Centro, o Sarau Cultural  realizado pela Academia de Letras de Rondônia, ACLER, dan

ACLER comemora 31 anos com Sarau na Francisco Meirelles

ACLER comemora 31 anos com Sarau na Francisco Meirelles

  Acadêmicos na sessão solene da Assembleia legislativa em 2016 pela passagem dos 30 anos da ACLER Os 31 anos de criação da Academia de Letras de Rond

Gente de Opinião Quarta-feira, 24 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)