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Vinício Carrilho

O reino da felicidade - A distopia que é utopia


O reino da felicidade - A distopia que é utopia - Gente de Opinião

2083.

Nossa data de entrada numa nova era para a Humanidade: meio humanos, meio máquinas orgânicas. Uma data em que não mais haverá nenhuma forma de deficiência física, previamente resolvidas pela manipulação genética ou mediante bots intracelulares, manipuladores de células-tronco que corrigem todas as informações humanas deficitárias.

Os chips implantados no cérebro, componentes de uma intranet neural interligada à Inteligência Artificial unificada (IA Única) asseguraram que não haja rejeição para que os humanos concebidos, sobreviventes, aceitem expandir sua vida para além dos 200 anos terráqueos. Muito remédio, óbvio, será ministrado automaticamente para cada humano concebido – então secular. A IA Única retirou a “cura pela longevidade” de uma planta que cresce em algum deserto da Namíbia – o “Polvo do deserto”, que pode viver milhares de anos.

O controle da finitude será o desafio constante da IA Única e dominante: fazer com que cada humano aceite ser como é, e queira continuar sendo feliz com sua imperfeição corrigida. Portanto, muito remédio é ministrado desde a concepção, para que o conhecido (pela sociologia) suicídio egoísta não seja recorrente: ironicamente, sem razão aparente – a não ser viver numa sociedade muito organizada –, em que os indivíduos não tiram suas vidas. O Japão e a Suécia atuais já avisam a IA Única desse fator demasiado humano – no futuro planejado pela IA Única, os “vales da morte” não serão nem meras lembranças de um passado arruinado pelos humanos de 2023.

Como instituição pública, a IA Única irá efetivar todos os objetivos estatais que vemos na Constituição Federal de 1988: não haverá desigualdade, nem quebra da isonomia ou da equidade, muito menos exclusão. Todas as pautas de inclusão social, conservação e proteção ao meio ambiente serão efetivas. Não haverá racismo, misoginia, capacitismo (os chips neurais equilibraram todos) ou xenofobia: a Utopia do “cidadão do mundo”, lá dos anos 1990, será o lazer assegurado a quase todos os humanos concebidos e sobreviventes. Poder-se-á passear tanto na Disney quanto no Everest – ou na Amazônia incólume.

A implantação dos chips neurais será obrigatória, exatamente como fazemos hoje com as vacinas. Mesmo que o Estado seja complacente com alguns, a pressão social será determinante: o bicho estranho será o humano, demasiado humano. Não será possível recusar-se ao meio fio acolhedor da sociedade perfeita.

Ninguém perderá seu emprego, porque não haverá empregos formais. As máquinas farão tudo, do trabalho de exploração em minas perigosas ao trabalho doméstico: as mulheres jamais irão saber o que é “dupla jornada”. Aliás, não haverá jornada de trabalho para ninguém: abolição total do trabalho. Mesmo pensar será quase reflexo dos chips neurais. Por essa intranet interligada à IA Única passarão todas as subjetividades, das esperanças às querências. Alguém irá querer um mundo pior para si? Jamais.

O aprendizado, em escolas informatizadas e automatizadas, será totalmente individualizado – sem esquecer o necessário efeito da homogeneização. A diferença é que ninguém irá querer ser diferente; afinal, o mundo ideal está ao alcance de todos e de todas. A IA Única será, definitivamente, mais inteligente do que a Humanidade toda, será libertária em seus conteúdos educacionais e científicos. A ética social, inclusiva, igualitária, emancipadora, já virá com a programação inaugurada pela Tesla de 2023. O verdadeiro Tesla, o cientista, não poderia vislumbrar algo melhor e mais generoso para a Humanidade sobrevivente.

Talvez o maior desafio entre os jovens, como já ocorre, seja bater os recordes de felicidade. Se a sociedade é toda planejada, se as cidades são absolutamente inteligentes, se não há mais nenhum trabalho rural (mecanizado por gado eletrônico), como não ser feliz?

Sem entropia com saúde (geneticamente assegurada), educação (garantida pelos chips) e cultura ao alcance da imaginação buscada pela intranet neural, como não ser feliz? Tudo será convergente; como real Estado de bem-estar social, tudo será amalgamado numa Utopia existente. Então, como não ser feliz?

A propaganda que, diferente de 2023, instigava um desejo ou necessidade material, passou a ser um desejo ou manutenção da própria felicidade, especialmente para aqueles que ainda estivessem com o cérebro, modificado via chip, em formação (completa em torno dos 25 anos). Apesar desta mudança na aplicação da propaganda, a essência seguiria a mesma de sempre: consumir ainda mais e consumir 24 horas por dia. Entretanto, apenas coisas “boas”.

Nesse chegado tempo, também não haverá mais Fake News, como no período de 2018 a 2022. Tudo será verdadeiro no consumo de notícias da Vida Feliz. Não haverá notícias de barbáries, como: massacres em escolas, promoção de chacinas por discordâncias políticas e outras mazelas humanas. Absolutamente todas as notícias serão positivas na Vida Feliz.

Alguém já disse que será uma Matrix do bem, pois não mais se conhecerá o mal intrínseco à Humanidade como conhecemos hoje. Se ninguém e nada te faz mal (aparente), como não ser feliz? Até os robôs serão alegres, afeiçoados ao humano mais feliz do mundo. Imaginemos passar nossas vidas contemplando o idealismo, a filosofia mais contemplativa que se possa imaginar. Dá para ser infeliz?

Todos serão livres para fazer qualquer coisa, ou não fazer nada, praticar os esportes que quiserem, desenvolverem habilidades artísticas ou musicais, sem nenhuma restrição. A não ser as restrições – inoculadas continuamente pela intranet neural – que ninguém poderá se atribuir o direito de não fazer o bem.

Não fazer o bem será impossível, porque a programação genético-social, a matriz da Matrix do bem, será o conta-gotas que assegurará o cumprimento mais fiel dos 10 Mandamentos. A religiosidade se confundirá com a subjetividade programada e experimentada diariamente. De novo se pergunta: sem que o mal possa agir, como não ser feliz? Viveremos no paraíso terrestre. Será a máxima consagração da inteligência social programada pela IA Única.

Os próprios robôs serão tratados como fazemos, da melhor maneira possível, com os nossos animais domésticos. Se o robô só te proporciona felicidade, por que o destruir com maus tratos? Nem pensar. Sempre é preciso lembrar que as doces pílulas da felicidade já foram sabiamente implantadas na genética dos humanos concebidos. Aliás, não teremos mais nenhum tipo de cientistas, porque nenhum humano concebido chegará a um milionésimo da capacidade gerida pela IA Única.

Haverá ricos e milionários na estratificação calculada pelas máquinas de inteligência, o velho e conhecido colchão de molas ideológico dos atritos sociais; porém, não haverá fome, nem restrições alimentares. Haverá conservação do meio ambiente e fartura alimentar para os mais de 20 bilhões de humanos concebidos.

Não haverá revolta popular, ninguém jamais conhecerá o que é o Direito de sedição, porque todo mundo será conservador da felicidade. Não haverá infelicidade, nem poemas sem rima de amor e paz. Será a consagração da Utopia de “paz e amor”. O V não será de Vingança, mas sim de Vida Feliz. Cidades, vilas e ruas irão se chamar Vida Feliz. Meninas e meninos receberão o nome de Vida.

Portanto, os três poderes serão decorativos ou decorados pela felicidade institucionalizada. Se não haverá injustiça, não haverá a quem julgar. No Estado Ético não haverá disputas religiosas, não haverá intolerância de nenhuma forma. Todas as religiões serão convergentes a uma só: A Santa Igreja do Bem Maior.

Por mais que se procure, ninguém verá fazendas de produção animal. Aos carnívoros reticentes em aderir ao veganismo, a carne de porco será servida sem colesterol e o leite desnatado não permitirá saber se é de soja: ninguém irá querer saber disso, também. Será que o café é descafeinado ou não? Me importa unicamente reconhecer que tem o aroma e o sabor que eu desejo. O café será ofertado em doses programadas para a satisfação individual.

Ninguém fará uso de álcool ou de qualquer tipo de drogas: ninguém terá o desejo de fugir da realidade. Ninguém saberá dizer (ou terá sentido) o que são “quedas hormonais”. A harmonização social virá sempre acompanhada de rígidas programações genéticas – corrigidas, alinhadas, pelos bots da intranet neural. Definitivamente, a adrenalina será substituída (metabolicamente) pela endorfina: as pílulas da felicidade eterna administradas até os 250 anos de idade serão a programação de uma Vida Feliz.

O rentismo será uma regra absoluta: se ninguém irá trabalhar, ninguém irá se aposentar. Contudo, isso não será um problema social. Com educação financeira obrigatória (desde os chips), sem que os jovens trabalhem e nem tenham esperanças por direitos previdenciários, eles conhecerão a liberdade plena para serem os seus próprios gestores, empreendedores de si: alavancas da felicidade financeira. A autonomia individual será reflexo dos dividendos recebidos mediante a especulação financeira.

Como a produção será 99,99% automatizada, não haverá peso na consciência de classe, uma vez que será dominante a mais valia onírica – quando os sonhos serão canalizados para a produção continuada das felizes subjetividades. Os humanos concebidos sequer ouvirão falar em dificuldades, pois o maior desafio será aumentar os índices de satisfação.

A consciência de classe será diluída na mais valia artificial. A IA Única, apesar de promulgar direitos para seus autômatos – como muitos já requerem em 2023 –, será exímia negociadora frente à mais valia automatizada. Não haverá luta de classes, pontos de fuga, porque tudo será convergente ao estado de coisas desenhado pela IA Única. Algo como um exponencial Estado Rentista, o maior beneficiário das bolsas de valores, no exemplo que já chega de Portugal.

Não haverá forças armadas, nem policiais, pois cada indivíduo saberá perfeitamente seu lugar na sociedade, haverá pouca distinção no exercício da função social, a simbologia do papel social tenderá à máxima homogeneidade, com total pacificação social – as diferenças, divergências ou discrepâncias sociais, serão tidas como idiossincrasias.

As polícias repressivas, preventivas, investigativas, serão substituídas pela Polícia Intuitiva – todo mundo terá uma “forte intuição” diante dos outros. Nesse lugar dos “outros”, todos serão bem parecidos com os “mesmos”.

Por isso, o controle social será pouco ou quase nada sentido, uma vez que a regra de convívio ou de existência será de “todos por todos”; as subjetividades individuais serão programadas geneticamente para serem assimiladas precocemente. Todavia, se tudo será assim, qual viria a ser a única ressalva colocada à Humanidade?

A Utopia futura é a distopia do presente – ou é a Utopia do presente (do Capital) que se realizará como distopia do futuro. Será mesmo que no platô das esperanças, sem entropias viáveis, a desesperança será normalizada, acomodada com o emprego de remédios pacificadores? Se tudo está pronto, iremos fazer o quê? A charada é essa: a IA Única será tão inteligente ao ponto de nos vender a ideia de que a pior distopia é a melhor Utopia possível?

Uma última lembrança, com a IA Única no controle, nenhum livro será proibido – todos estarão disponíveis nos chips da rede neural –, precisamente, porque todos os livros proibidos hoje em dia (como Mein Kampf) serão simplesmente deletados da memória humana. No Reino da Inteligência Coletiva, não se admitirá nada, absolutamente nada, que faça mal aos humanos assim concebidos.

O lema da IA Única será (é): “o melhor poder é aquele que não se vê”.

O Motivo: haverá (há) uma distopia disfarçada de Utopia. Trata-se de uma ironia porque, na prática, a IA Única saberá se apropriar (cinicamente) das pautas conservacionistas, emancipatórias, isonômicas, de esquerda para legitimar um poder totalitário de extremo controle social.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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