Sexta-feira, 11 de outubro de 2024 - 08h26
Imagine viver em uma sociedade
onde qualquer um de nós pode ser monitorado a qualquer momento, sem aviso ou
justificativa. Parece distópico, mas essa é a realidade que se desenha no
Brasil de hoje, com a expansão do sistema Córtex. Criado para garantir a
segurança pública, o sistema agora monitora milhares de pessoas e veículos sem
precisar passar pelo crivo do Judiciário. Com mais de 55 mil agentes usando
essa ferramenta, a privacidade torna-se uma questão cada vez mais precária.
O governo federal nomeou o
sistema como Plataforma de Monitoramento Córtex (BRASIL, 2022), e ele é
empregado pelo setor de "inteligência" do Ministério da Justiça e
Segurança Pública, em Brasília. Essa condição é usada para justificar
legalmente o monitoramento sem a necessidade de aprovação prévia do Judiciário,
operando de maneira independente de inquéritos policiais ou ações judiciais.
No centro do sistema de
vigilância estatal, o Córtex concentra uma quantidade impressionante de dados
sigilosos sobre milhões de brasileiros. Essa rede de monitoramento oferece acesso
a uma vasta gama de informações sensíveis, que incluem câmeras em tempo real em
ruas e avenidas, notas fiscais emitidas em território nacional, a Relação Anual
de Informações Sociais (RAIS), registros de bilhetagem de ônibus municipais, o
Cadastro Geral de Empregados, dados do Sistema Único de Saúde (SUS), restrições
judiciais de veículos, manifestos de cargas rodoviárias, listas de Pessoas
Politicamente Expostas (PEPs), registros oficiais de tratores e máquinas
agrícolas, entre outros. Trata-se de um sistema capaz de mapear a sociedade em
detalhes, levantando preocupações sobre a profundidade e o alcance desse tipo
de vigilância (Valente & Freitas, 2024).
O Córtex, que começou de forma
pontual durante o governo de Michel Temer (2016-2018), foi utilizado em larga
escala no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Nesse período, o sistema foi
ampliado sob a liderança dos ex-ministros Sergio Moro (2019-2020), André
Mendonça (2020-2021) e Anderson Torres (2021-2022), consolidando-se como uma
ferramenta essencial para a vigilância estatal.
Em 2021, sob a gestão de
Anderson Torres, o Ministério da Justiça e Segurança Pública formalizou o uso
do Córtex em seu formato atual. No entanto, ainda em setembro de 2019, Sergio
Moro já havia anunciado a integração do Córtex com o sistema Alerta Brasil 3.0
da Polícia Rodoviária Federal, destacando que essa unificação reduziria custos
e estabeleceria uma rede integrada com seis mil pontos de monitoramento no país
(REBELLO, 2020). Desde então, o número de câmeras ligadas ao Córtex aumentou de
26 mil, em 2021, para quase 36 mil atualmente. Esse sistema permite o
monitoramento em tempo real de veículos e pessoas e é capaz de emitir
"alertas de inteligência" para rastreamento de alvos específicos,
inclusive alvos móveis (Valente & Freitas, 2024).
Esse cenário nos leva a
questionar os limites da vigilância estatal e o preço que estamos pagando por
essa suposta segurança. A implantação do Córtex não apenas fere a privacidade,
mas também coloca em risco os direitos fundamentais de cada cidadão.
Michel Foucault descreveu, em
Vigiar e Punir, como o poder de vigiar se espalha pela sociedade, criando uma
rede de controle e disciplina que molda comportamentos (Foucault, 2014). O
Córtex é um exemplo moderno desse fenômeno, funcionando como uma “máquina
panóptica” que observa silenciosamente, mas de forma implacável. Não há
necessidade de justificar o porquê, basta clicar e acessar as câmeras
espalhadas pelo país, monitorando cada movimento. Estamos diante de uma
sociedade em que as autoridades veem tudo, mas permanecem invisíveis para
aqueles que são observados.
Sob o argumento de proteger a
segurança pública, o Córtex permite que esses agentes monitorem pessoas e
veículos, sem deixar claro quem está sendo vigiado e por quê. Quando você sabe que
pode ser observado a qualquer momento, sem motivo aparente, não há como evitar
a sensação de estar preso a uma teia invisível, onde qualquer movimento pode
ser registrado. Foucault disse que “nossa sociedade não é de espetáculos, mas
de vigilância” (Foucault, 2014) — e o Córtex parece concretizar essa ideia,
levando a vigilância para além das fronteiras da segurança e diretamente para a
esfera da vida privada.
A falta de transparência sobre
o funcionamento e o uso do Córtex é um fator que causa extrema preocupação. De
acordo com um estudo publicado recentemente, o Córtex não apenas expande as
capacidades de vigilância do Estado, mas também o faz à margem da Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD) e das garantias constitucionais de privacidade. Assim
como durante a ditadura militar, onde o monitoramento do Estado era utilizado
para suprimir liberdades, o Córtex é um lembrete inquietante de que essa
vigilância indiscriminada e sem controle é uma ameaça contínua à democracia
(BARRETO; DIAS, 2023).
Imagine saber que seu carro
foi monitorado sem nenhuma razão explícita ou que um conhecido teve a rotina
vigiada sem saber. O Córtex torna essa possibilidade real, e isso sem a devida
supervisão. Assim como Foucault observou no passado, esse tipo de disciplina
infiltra-se nas relações sociais, transformando o poder de vigiar em um fim em
si mesmo. E sem transparência, não sabemos ao certo quem está protegendo quem,
ou mesmo se estamos sendo protegidos ou apenas controlados.
Na perspectiva de Gilles
Deleuze, a "Sociedade de Controle" é aquela em que a vigilância serve
para moldar e regular comportamentos (SOUZA; AVELINO; SILVEIRA, 2018). O Córtex
é a concretização dessa sociedade: um mecanismo que intimida, constrange e até
ameaça a população sob o pretexto da segurança. Aqui, ecoam as palavras de
Kafka (1997), que, em A Metamorfose, retrata uma humanidade transformada em
“baratas”.
O que o Córtex ameaça fazer ou
já está fazendo com nossa inteligência social (empatia, segurança social,
interação, sociabilidade) pode ser resumido à aplicação do chamado princípio da
exceção – que sempre será (concomitantemente) um acesso aos meios de exclusão.
Resumidamente:
· “Normalmente,
seguiríamos as regras; mas, neste caso, as regras devem se dobrar aos fatos e
vamos tratar o caso de modo particular”.
· “Particularmente,
sigo as regras, mas vejo que o caso deve ser tratado de modo especial”.
O Princípio da Exceção excede
o limiar do aceitável, mas como é de uso regular, recebe a justificação
necessária. A percepção de que há algo insólito
(Camus, 1990) nas relações sociais e políticas vem desse efeito de se
justificar o inaceitável.
Neste contexto, somos todos
baratas, à mercê de um sistema que nos vigia, nos suspeita e nos acusa. Essa
"carnavalização" da vigilância a transforma não apenas em um ato
rotineiro, mas também em algo desprovido de seriedade e de controle ético,
criando um ambiente sombrio onde qualquer um pode ser vigiado e incriminado.
O que está em jogo aqui não é
apenas a privacidade individual, mas a própria responsabilidade do Estado em
garantir que o uso de tecnologias como o Córtex seja justo, transparente e
ético. Desse modo, entende-se que a resposta do Estado ao uso do Córtex é
insuficiente e carece de regulamentação. Para piorar, as auditorias sobre o
sistema são raras e ineficazes, deixando a sociedade à mercê de um sistema de
vigilância que parece operar sem freios, totalmente opaco (Valente &
Freitas, 2024). Essa ausência de controle externo significa que, hoje, o poder
de vigiar está nas mãos de um grupo restrito de agentes, sem que saibamos a
quem realmente interessa essa vigilância.
Michel Foucault nos alertou
que "somos suas engrenagens" (Foucault, 2014, p. 210), peças de uma
máquina que exerce controle sobre nossas vidas. O Córtex é a materialização
dessa máquina, e a sociedade precisa decidir até onde está disposta a
sacrificar sua liberdade em nome da segurança. Cabe a nós, como cidadãos,
exigir que o Estado garanta que a proteção à segurança pública não se torne um
pretexto para suprimir nossa liberdade.
Chegou a hora de repensar até
onde estamos dispostos a ir em nome da segurança. A vigilância pode até nos
prometer proteção, mas a que custo? Quando permitimos que um sistema como o
Córtex opere sem supervisão, corremos o risco de perder nossa liberdade e nossa
autonomia como cidadãos. Precisamos nos perguntar: o que mais estamos dispostos
a sacrificar para nos sentirmos seguros?
No mundo de Kafka, e no nosso
também, há muitos sujeitos de direito,
mas quase-nenhum sujeito de fato,
como sujeitos sociais provocadores de fatos históricos. Com certeza, Kafka
ficaria muito mais feliz em reconhecer o Sujeito Social Histórico do que
debater-se com o famoso “Operador do Córtex” – até porque este está contido no
primeiro, mas sem que ocorra o contrário. E este talvez fosse o primeiro passo
justo e democrático.
Do contrário, o título do
texto seguirá se impondo na forma de “verdades políticas” do cadafalso do
Estado Democrático de Direito e, assim, obviamente, o Córtex seguirá sendo o
antípoda, mas, sobretudo, o verdugo, da inteligência social no Brasil.
Referências
BARRETO,
Alana Maria Passos; DIAS, Clara Angélica Gonçalves Cavalcanti. A exposição da
privacidade diante da falta de transparência: um estudo sobre o Córtex.
Interfaces Científicas - Humanas e Sociais, Aracaju, v. 10, n. 1, p. 707-719,
2023. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/humanas/article/view/11767.
Acesso em: 10 out. 2024.
BRASIL.
Ministério da Justiça e Segurança Pública. Plataforma de Monitoramento Córtex.
Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-seguranca/seguranca-publica/operacoes-integradas/destaques/plataforma-de-monitoramento-cortex.
Acesso em: 10 out. 2024.
FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42ª
ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
CAMUS, Albert. O
Estrangeiro. São Paulo: Record, 1990.
KAFKA, Franz. A
metamorfose. 18ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
REBELLO,
Aiuri. Da placa de carro ao CPF: conheça o Córtex, sistema de vigilância do
governo que integra de placa de carro a dados de emprego. The Intercept Brasil,
21 set. 2020. Disponível em:
https://www.intercept.com.br/2020/09/21/governo-vigilancia-cortex/. Acesso em:
10 out. 2024.
SOUZA,
Joyce; AVELINO, Rodolfo; SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Modulação Deleuziana,
Modulação Algorítmica e Manipulação Midiática. Sociedade de Controle,
Manipulação e Modulação das Redes Digitais. São Paulo: Hedra, 2018. p.13.
VALENTE,
Rubens; FREITAS, Caio de. Programa de vigilância do MJ permite a 55 mil agentes
seguir “alvos” sem justificativa. Agência Pública, 2024. Disponível em:
https://apublica.org/2024/10/vigilancia-55-mil-agentes-podem-monitorar-alvos-sem-justificativa/.
Acesso em: 10 out. 2024.
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