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Vinício Carrilho

ABORTO - “Aborto, civilização e barbárie”


ABORTO - “Aborto, civilização e barbárie” - Gente de Opinião

Estados Unidos, 1973. A Suprema Corte decide que a Constituição daquele país deve proteger a liberdade individual das mulheres grávidas e garantir a elas a opção de realizar um aborto sem restrição governamental alguma. Ao final, foram revogadas diversas leis federais e estaduais sobre aborto. O caso (Roe x Wade) foi um marco, um avanço no âmbito dos direitos individuais e remodelou a política norte-americana.

Estados Unidos, 2022. Uma Suprema Corte de perfil conservador anulou a decisão da década de setenta e permitiu novamente a criminalização do aborto no país. O caso em questão (Dobbs x Jackson) reflete o novo quadro da política, da polícia e da sociedade norte-americanas, hoje fortemente influenciadas pelo trumpismo - o Tea Party era ruim, mas podia piorar. E não é só. A decisão de agora abriu-se espaço para um debate até então inimaginável, com temas como o uso de anticoncepcionais – cláusulas que pareciam “pétreas” estão sob ameaça real.

Corta para o Brasil, 2022. Em Santa Catarina, uma juíza tem posição contrária à realização de aborto em uma menina de onze anos de idade, estuprada meses antes. Após grande (e desnecessária) polêmica, o procedimento ocorreu. Os grupos de extrema-direita, porém, celebraram o “feito” da juíza e excomungaram a criança estuprada.

Ainda no mesmo Brasil, uma jovem atriz teve a intimidade devassada por um jornalista, que publicou a informação de que ela, após ser vítima de estupro, deu o bebê para adoção. Os grupos de extrema-direita partiram para o ataque e criticaram fortemente a atriz – que, diga-se, é vítima de uma tragédia.

Apenas para outro registro, somente em 2021 nada menos do que 17 mil garotas de até quatorze anos de idade tornaram-se mães, segundo dados do SUS. São números oficiais, em que não são contabilizados os casos “paralelos”, abortos clandestinos (que muitas vezes geram óbito) e afins. Em pleno século XXI, podemos afirmar que Gilead é aqui.

Lá como cá, “celibatários involuntários” – o indivíduo que nenhuma mulher aguenta – e estupradores não respondem pela violência sexual, porque as “famílias de bem” seriam expostas. Porém, todos condenam o aborto.

Lá como cá, pelo ritmo atual, em breve estaremos em discussão sobre a Lei do Divórcio – se bem que, aqui, os “familiares de bens” já tem outras famílias. Talvez vejamos voltar a proibição do uso de biquínis, a obrigação da burca (feminina, é claro) ou, quem sabe, também retornem, com a força de lei, o casamento arranjado e a virgindade antes das núpcias. Mas, se apertar um pouco mais, o baronato é capaz de reinstituir o direito à “prima note”. Afinal, por que razão os pobres deveriam ter tantos privilégios conjugais?

Lá como cá, são essas “famílias de bens” que protagonizam e patrocinam o capitalismo mais selvagem que o neoliberalismo pode produzir. Todos esses familiares de bens são favoráveis ao armamentismo da sociedade civil, negam o aquecimento global – porque isso afeta a produção do capitalismo –, investem contra os serviços públicos (pobres devem ser limitados, em sua existência) –, propagam todo tipo de negacionismo, Fake News, teorias da conspiração contra as vacinas, bem como aplaudem os trilhões acumulados em suas parcas “famílias de bens”.

Lá como cá, enquanto os dízimos chegarem em velocidade e constância, o aborto seguirá sendo a bola da vez: “Vamos rezar, meus irmãos!”. Esses familiares de bens pouco se importam se as crianças, meninas, jovens e mulheres pobres (sobretudo, as negras) serão assediadas, abusadas, estupradas. O que importa é manter os bens unidos, na Sagrada Família. Tampouco as “famílias de bens” se importunam com a importunação sexual contra as mulheres: na Delegacia da Mulher alguém ainda lhes perguntará se “a roupa era muito sensual e provocativa”. Seria a delegada? Ou alguma juíza – isso mesmo, uma mulher – perguntará a uma criança grávida de estupro: “você não pode segurar o bebê mais algum tempo”?

Lá como cá, o fanatismo, o obscurantismo desse tipo de Clerical-Fascismo – com início na Áustria de 1920/30 – seguirá o curso do retrocesso moral, a perda total da perspectiva humana. Por que? Porque muito mais significativos são os bens da família. As pessoas, a começar pelas crianças violentadas por pais, tios, irmãos, primos, avôs, são bens, algumas são até vendidas como escravas sexuais, mas a fortuna familiar vem em primeiro lugar. E no ápice do ápice está a hipocrisia e os crimes que a acompanha.

Sobre o Direito Reprodutivo das Mulheres

Para prosseguir com o debate, é preciso, por isso, antes retomar pontos fundamentais e indiscutíveis sobre o assunto: independentemente das leis vigentes, procedimentos de abortos acontecem e continuarão a acontecer. O que defendemos, então, é a legalização e a promoção da realização de abortos seguros. Isso porque, quem morre hoje no Brasil realizando abortos clandestinos são mulheres pretas e pobres, sem condições de recorrer às clínicas seguras no exterior, e no momento de desespero, recorrem às clínicas clandestinas, ao mercado ilegal de Cytotec e às diversas plantas com combinações pavorosas que colocam suas próprias vidas em risco.

Dessa forma, garantir o aborto seguro é uma questão de saúde pública, e não de opinião ou crença. O Direito Reprodutivo, portanto, é aquele que deveria garantir a liberdade das pessoas que gestam se querem ou não ter filhos, no momento da escolha ou em qualquer outro e quantos filhos a pessoa desejar. Isso tudo de forma livre, segura e responsável. Por isso, o Direito Reprodutivo também deveria garantir o acesso à informação sobre métodos contraceptivos, dos direitos e deveres de todas as pessoas na criação dos filhos e de viver suas sexualidades sem medo da violência.

Neste mesmo sentido, não é possível anunciar argumentos em alto e bom som contra a legalização do aborto falando sobre métodos contraceptivos, quando o projeto de educação é o sucateamento da mesma, com também projetos cada vez mais conservadores e até reacionários: a educação sexual é tantas vezes violentada por esses mesmos que usam do seu desconhecimento por crianças e pessoas em situação de vulnerabilidade a fim de, justamente, abusá-las.

A educação sexual é um espaço seguro e de empoderamento para jovens saberem como se defender de pessoas que buscam a ignorância dos demais como forma de elevar o seu poder. A educação sexual é o caminho por onde o diálogo sobre sexualidade passa a ser informativa e esclarecedora de fato.

Afinal, a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) de 2019 mostra que cerca de 36% dos jovens de 13 a 17 anos já tiveram alguma relação sexual. Os dados nos deixam mais alarmados quando a pergunta foi sobre o Percentual de escolares de 13 a 17 anos, dentre os que já tiveram relações sexuais, em que um dos parceiros usou camisinha (preservativo) na primeira relação sexual; tendo uma média de 64,1%. Ou seja, cerca de 35,9% dos escolares (jovens que frequentam a escola, onde a educação sexual deveria ser aplicada) de 13 a 17 anos não fizeram uso de preservativo na primeira relação sexual.

Isso nos mostra mais uma vez que, por diversos meios, os jovens estão fazendo sexo. E nos calarmos diante disso só reproduz a ignorância sobre os fatos, sobre a necessidade, por exemplo, do uso de preservativo não só como forma de prevenção de gravidez indesejada, mas contra ISTs (Infecções Sexualmente Transmitidas). Então, pregar a abstinência sexual como forma de prevenção sequer condiz com a realidade: jovens têm vontades, hormônios e são corpos livres.

Por isso, a educação sexual é o meio para que o Direito Reprodutivo seja assegurado. Só assim poderemos discutir a legalização do aborto a partir de patamares de escolha justos. Só assim poderemos falar justamente sobre o uso de métodos contraceptivos.

Ainda assim, o direito à escolha deve ser sempre respeitado.

Nossa proposta é utópica: apenas as mulheres deveriam votar e decidir sobre a ampla legalização do aborto, num plebiscito unicamente feminino. É claro que a Constituição não permite, e ainda que também a violem a cada segundo...talvez isso ocorra por se tratar do feminino. É óbvio que nesse plebiscito não estariam em discussão os casos permissivos de “aborto legal”. No entanto, de qualquer modo, deveria ser reafirmada a regra feminista: “Meu corpo, minhas regras”. Sempre.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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