Sexta-feira, 28 de setembro de 2018 - 15h59
JUAN ARIAS
Editor de El País digital
Que Deus é esse, que salva um Papa dos tiros e de uma facada um político importante, enquanto deixa crianças morrerem de câncer e fome? Flávio, o filho de Bolsonaro, foi o primeiro a afirmar que Deus “havia desviado a faca do autor do atentado” para salvar a vida de seu pai. Por sua vez, o carrasco Adélio Bispo de Oliveira confessou à polícia que “foi Deus quem mandou matar” o político e candidato de ultradireita à presidência.
Curioso esse Deus que ordena a morte de uma pessoa e logo depois desvia a mão do autor para evitar a morte. Alguém pode me explicar quem é esse Deus obscuro que está sendo metido a empurrões nas eleições?
Cresce, de fato, a menos de 15 dias do encontro com as urnas, um clima de fanatismo religioso em torno do atentado ao capitão reformado Bolsonaro.
De acordo com informações do jornalista Lauro Jardim em sua página no
Facebook, existe um consenso entre os pastores das igrejas evangélicas
de que o político se salvou do atentado graças a uma “decisão divina”. E
começam a ser organizados grupos de orações para comemorar o milagre.
Está em andamento sua canonização em vida.
Segundo essa teoria
salvacionista, a facada que o autor infligiu ao candidato à presidência
era dirigida ao coração da vítima. Pretendia ser mortal. Alguém,
entretanto, teria empurrado o braço do autor e a faca acabou cravada no
abdômen da vítima e não em seu coração. Deus teria feito a Bolsonaro o
milagre de salvar a vida.
Alguns até estão desenterrando, com
esse motivo, o atentado sofrido em Roma pelo papa católico João Paulo II
em 13 de maio de 1981, durante uma audiência pública na praça de São
Pedro, realizado pelo jovem turco Ali Agca, que teria militado em grupos
da extrema direita e da extrema esquerda. Quiseram comparar aquele
atentado que abalou o mundo com o sofrido pelo político brasileiro de
ultradireita.
É verdade que também naquele momento muitos
católicos consideraram como um milagre de Deus que o Papa polonês tenha
saído a salvo do atentado como hoje tantos evangélicos brasileiros veem
outro milagre no que ocorreu a Bolsonaro.
Na época do atentado
ao Papa polonês foi dito que Deus havia “desviado os tiros da pistola”
do autor do atentado para salvar-lhe a vida, como hoje teria desviado a
faca contra Bolsonaro. Também à época se divulgou que uma pessoa que
estava ao lado do autor, supostamente uma freira, havia movido o braço
de Ali Agca no momento em que atirava no Papa.
Dessa forma os
tiros, em vez de atingir seu coração, acabaram ferindo-o somente no
ventre. Foi operado em situação de emergência e se salvou. Acabou
canonizado.
Eu me perguntei, entretanto, naquele momento em que
precisei informar sobre o atentado a este jornal como correspondente em
Roma, como me pergunto hoje no caso de Bolsonaro, que Deus é esse que
escolhe de quem salvar a vida e de quem tirá-la.
Como já havia
escrito em meu livro “El Dios en quien no creo” (O Deus em quem não
acredito), nunca fui capaz de entender por que Deus deveria salvar
milagrosamente a vida de alguém enquanto deixava os outros morrerem.
Que salva um Papa dos tiros e de uma facada um político importante,
enquanto deixa crianças morrerem de câncer e fome e parece incapaz de
desviar as balas perdidas que, no Brasil, acabam todos os dias com a
vida de tantos inocentes? Que Deus injusto seria esse?
Às vezes,
os agnósticos e os ateus criticam a nós crentes pelo fato de usar Deus
como instrumento de nossos interesses pessoais. Têm alguma razão. Todos
somos iguais perante Deus que não intervém em nosso cotidiano.
Somos
somente nós os donos absolutos de nosso destino. Deus não vai às urnas
votar, não faz campanha por ninguém. Habita em outros lugares da alma,
de onde fala, com seu silêncio, aos puros de coração.
Entre os
dez mandamentos das tábuas da Lei, que Deus entregou a Moisés, o
terceiro diz: “Não invocarás o nome de Deus em vão”. E é invocado em vão
quando fazemos dele um instrumento de cálculos políticos empobrecendo-o
e transformando-o no curinga de um baralho. A História está cheia de
páginas sangrentas e de injustiças perpetradas em nome de Deus. Não é
ele, entretanto, que cria a dor do mundo, e não é o senhor absoluto de
nossas vidas. Ele não desvia as facas e as balas dos autores de
atentados porque respeita nossa liberdade. Somos nós os únicos
responsáveis por nossos atos, não Deus.
É significativo que os
milagres que Deus faz às pessoas importantes nunca cheguem aos mais
pobres. Ninguém se preocupa em desviar as facas e as balas perdidas
endereçadas a esses pobres. Não deveriam votar nesse Deus. Não é seu
Deus. Os evangélicos fiéis aos ensinamentos de Jesus têm hoje problemas
muito mais graves diante deles nesse país que parece crucificado pela
intransigência, a intolerância e o desprezo aos mais vulneráveis, do que
ficar discutindo sobre o Deus que salvou Bolsonaro. Estão correndo
atrás dos fantasmas de uma miragem que pode acabar cegando a todos nós.
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