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Opinião: Bandido 'di menor'


 

Opinião: Bandido 'di menor' - Gente de Opinião  

HELDER CALDEIRA
 

Uma mulher segue pela calçada com seu bebê de pouco mais de um ano no colo. Vai levá-lo ao posto de saúde para tomar uma das vacinas previstas no calendário de cuidados básicos para a vida saudável de uma criança. Em uma das mãos leva uma bolsa com o famoso “kit bebê”: mamadeira, fraudas, chupeta reserva, pomada, talco e afins. No meio do caminho é abordada por um rapaz, armado, que anuncia o assalto. Ele quer a bolsa colorida com estampa da “Hello Kitty”. Assustada, a mulher entrega o que ele quer e tenta proteger seu filho. O bandido pega a bolsa e, antes de sair correndo, dispara um tiro que atinge o bebê, transpassando-o e ferindo de raspão a mãe na altura do ombro. A criança morreu na hora. O guarda municipal que veio em socorro às vítimas informa que o marginal que atirou e matou o bebê é uma figura conhecida na região e é “di menor”, tem apenas 16 anos. Apesar disso, já é egresso do sistema socioeducativo por outros crimes cometidos desde os 12 anos de idade.

 Essa é uma das histórias que faz parte do cotidiano da vida urbana brasileira. Só mais uma, dentre milhares. Mas, nem por isso, menos trágica e cruel. Um bandido “di menor”, que cometeu latrocínio para apropriar-se de uma mamadeira, um bico, um pote de talco e duas fraldas descartáveis. Daí virão os pseudoespecialistas a me atirar paus e pedras por eu estar aqui fugindo às regras do politicamente correto ao chamar um jovem de 16 anos de bandido e, pior, “di menor”. Pro inferno, minha gente! É menor de idade e é bandido sim! E ele próprio sabe o quanto é protegido por nossa legislação esquizofrênica, conhece bem a impunidade que o acolchoa e mais: tem certeza que qualquer criança ou adolescente vira um gigante com uma arma na mão. E quem protege o bebê de um ano que teve o coração atravessado por uma bala de revolver?

 É premente que a sociedade brasileira coloque um ponto final na hipocrisia que nos assola. Muito além dos canalhas corruptos de terno e gravata e da bandalheira que são as políticas públicas para a infância e a juventude, é a hipocrisia cultural que destrói qualquer possibilidade de mudança real para as futuras gerações. Porque a nossa, sinceramente, já está perdida. Discurso pessimista-derrotista? Não. Trata-se da realidade, nua e crua, e sem a cegueira romântica da hipocrisia.

 Está voltando à baila a questão da alteração da legislação para reduzir a maioridade penal. Até a novela teen “Malhação” adotou o tema para fomentar a discussão. Não sei se é o caso e tenho certeza de que isso não irá solucionar o problema. A grande questão brasileira é, repito, cultural: a plena consciência de impunidade. Punição no Brasil é coisa só para os honestos, impostos a pagar impostos, numa carga tributária que chega a acachapantes 40% da renda. Se alguém defende a proposta de criação de presídios agrícolas na floresta amazônica, onde criminosos teriam de trabalhar para o autossustento, levará pedradas. E se falar em pena de morte, então, a casa cai. Vem as entidades de direitos humanos e inundam a imprensa com discursos palanquistas. E o mais interessante: utilizam a mesma imprensa que eles querem calar. São tão incoerentes quanto a própria legitimidade de sua existência.

 Entre o início de 2009 e meados de 2010, tive a oportunidade de conhecer de perto as políticas infanto-juvenis. Fui convidado pelo então presidente recém-eleito do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDCA/RJ – a integrar os quadros do Governo do Estado do Rio de Janeiro prestando, por um ano, uma assessoria política e institucional ao gabinete da presidência e aos conselheiros. O quadro que encontrei era uma pintura de cores tétricas: quatro salas imundas, recheadas de equipamentos sucateados, baratas transitando entre funcionários que jogavam “paciência” na internet e uma cadeira e um telefone quebrados, que ainda teria de usar por alguns meses. Sobrevivente a esse chiqueiro, apenas o constante discurso dos poucos conselheiros estaduais que davam às caras para falar sobre a importância das políticas para crianças e adolescentes. Só falar.

 Muito além das minhas possibilidades, cumpri meu papel durante pouco mais de um ano. E aprendi importantes lições. A principal delas é que esse modelo assembleísta de conselhos, apesar de defendido como espaço democrático e instância de poder popular, definitivamente não funciona. É inepto. Basta dizer que, em mais de um ano de trabalho, indo muito além das 50 horas semanais, dos 40 conselheiros estaduais do CEDCA/RJ (20 deles são indicados e nomeados pelo próprio governador; os outros 20 vem da sociedade civil organizada e louca de vontade de mamar nas tetas do estado com seus convênios duvidosos), saí de lá sem sequer ter visto alguns deles. Os poucos que apareciam, eram vistos nas ralas assembleias ordinárias mensais (isso quando há quorum) e, apesar do caráter deliberativo do conselho, jamais conseguiram fazer cumprir suas determinações aprovadas. Ao microfone, discursos vazios de palanque político e medíocres perfis de personagens cada vez mais tecnicamente desqualificados que, ano após ano, conquistam seus assentos honoríficos no poder público. É triste informar, mas isso não é um sortilégio do Rio de Janeiro. Essa indecência se repete na maioria dos estados e municípios brasileiros e a ajudam a enterrar, ainda mais, as políticas públicas para a infância e a juventude.

 São exatamente essas figuras que levantam a voz para proteger o bandido “di menor” do início dessa história. É perturbador concluir que são eles quem defendem as ditas medidas socioeducativas, mas não conseguem, por exemplo, fazer cumprir sua própria deliberação quanto ao fechamento de um lugar chamado Educandário Santo Expedito, um mini-presídio carioca onde menores cumprem suas “penas” entre urina, sexo, fezes e rebeliões. O CEDCA/RJ determinou o encerramento do ESE há anos e o Governo do Estado jamais cumpriu tal deliberação. A manutenção de instituições como o Educandário, uma célula escolar para o crime, é a prova cabal de que a política de medidas socioeducativas para crianças e adolescentes é falida e fracassada, desde os falsos “douto-conselheiros” até os governos que as mantem.

 E eu reitero a questão: quem protege o bebê de colo que leva um tiro de um jovem de 16 anos durante um assalto? A pequena criança está morta. Fútil e barbaramente assassinada. Enquanto isso, o bandido “di menor” segue tranquilo pelas ruas do bairro vizinho, na certeza de que sua marginalidade é protegida e suas atrocidade serão sempre justificadas pelo discurso das condições sociais. A bolsa colorida da “Hello Kitty” ele vendeu por R$ 5 para comprar crack e a mamadeira, chupeta, fraudas e afins, ele jogou na primeira caçamba de lixo que encontrou.

Fonte: HELDER CALDEIRA

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista

www.magnumpalestras.com.br– [email protected]

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