Quinta-feira, 28 de agosto de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Opinião

Frei Betto: Morte, tema tabu?


Frei Betto: Morte, tema tabu? - Gente de Opinião
Frei Betto *

Adital - O próximo 2 de novembro é dia de finados, dos que findaram, os mortos. Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Mas quem encara este destino inelutável?

Entre crianças de seis anos de idade convidadas a escrever cartas a Deus, uma delas propôs: "Deus, todo dia nasce muita gente e morre muita gente. O Senhor deveria proibir nascimentos e mortes, e permitir a quem já nasceu viver para sempre".

Faz sentido. Evitar-se-iam a superpopulação do planeta e o sofrimento de morrer ou ver desaparecer entes queridos. Mas quem garante que, privados da certeza de finitude, essa raça de sobre-humanos não tornaria a nossa convivência uma experiência infernal? Simone de Beauvoir deu a resposta no romance "Todos os homens são mortais".

É esse ideal de infinitude que fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela promissora indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de ginástica, livros de auto-ajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contra-indicado, exceto quando levado à obsessão, que produz anorexia, ou à atitude ridícula de velhos que se envergonham das próprias rugas e se fantasiam de adolescentes.

Conto sete amigos com câncer nos últimos dois anos. Dois, em estado terminal, me chamaram para conversar sobre a morte. Um deles observou: "Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, é falar de morte". Concordei. A morte era vista como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso, quase uma vergonha social.

A morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura do prolongamento indefinido da vida, da juventude perene, da glamourização da estética corporal. Nem sequer se tem mais o direito de ficar velho. Nós, que já temos acesso ao Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a "vergonha" da velhice: terceira idade, melhor idade ou, como li na lataria de uma van, "a turma da dign/idade". A usar eufemismos, sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos a ela.

No tempo de meus avós morria-se em casa, cercado de parentes e amigos, no espaço doméstico impregnado de pessoas e objetos que constituíam a razão de ser da existência do enfermo. Hoje, morre-se no hospital, um lugar estranho, cercado por pessoas - médicos, enfermeiras, auxiliares - cujos nomes ignoramos. A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a medicação que elimina a dor. Não há quase choro nem vela nem fita amarela. O rito de passagem - unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas - é quase imperceptível.

"Morrer é fechar os olhos para enxergar melhor", disse José Martí por ocasião da morte de Marx. As religiões têm respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. Isso é um consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto, a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.

Morre-se abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem culpa.

A morte é, como frisou Sartre, a mais solitária experiência humana. É a quebra definitiva do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, o ágape, a comunhão com Deus.

A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem os adornos de condição social, nome de família, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental. Os místicos a encaram com tranqüilidade por exercitarem o desapego frente a todos os valores finitos. Cultivam, na subjetividade, valores infinitos. E fazem da vida dom de si - amor. Por isso Teresa de Ávila suspirava: "Morro por não morrer".

Padre Vieira, cujo quarto centenário de nascimento se comemora este ano, advertia no sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: "No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de nossas obras".

[Autor de "A obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros].

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 28 de agosto de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Mais uma CPMI para quê?

Mais uma CPMI para quê?

No Brasil é assim, quando não se quer apurar nada, logo se cria uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Agora não seria diferente. Depois de mu

Excesso de comissionados preocupa servidor da Câmara Municipal de Porto Velho

Excesso de comissionados preocupa servidor da Câmara Municipal de Porto Velho

Um servidor da Câmara Municipal de Porto Velho entrou em contato com a coluna para reclamar da quantidade de cargos comissionados que, segundo ele,

Sem os votos do interior, nada feito

Sem os votos do interior, nada feito

O ex-prefeito Chiquilito Erse bateu todos os recordes de aprovação popular nas duas oportunidades em que administrou o município de Porto Velho. O e

Por que o empreendedorismo é essencial no Brasil?

Por que o empreendedorismo é essencial no Brasil?

De acordo com dados do Mapa de Empresas, ferramenta disponibilizada pelo Governo Federal para fornecer indicadores relativos ao quantitativo de empr

Gente de Opinião Quinta-feira, 28 de agosto de 2025 | Porto Velho (RO)