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Conversa com o Rio Madeira


 Conversa com o Rio Madeira - Gente de Opinião

Altair Santos (Tatá)

“De um beradeiro sobre as águas bravias que não toleram burrices,
alagam cidades e vilas, devastam hipócritas e afogam hipocrisias.”


Exímio no caniço e na tarrafa, conhecedor das tantas cheias e vazantes do Madeira, hábil na canoa e no remo, experimentado ao sazonal levantar e descer o assoalho da casa e esperto no êxodo pra terra firme, o caboclo, ao lume da intrigante estranheza do seu velho conhecido, o Rio Madeira, num certo entardecer nublado de época chuvosa, depois de singrar o inquieto leito, resolveu, ao seu modo, quiçá em oração ou mera prosa, se pôr a conversar, ter com as águas, numa intimidade só deles. Com o semblante impávido denunciando espanto e dúvida, o atônito cidadão debulhava o seu rosário de indagações, assim:

Ó Rio Madeira, nosso amigo véio de todas as épocas, porque estais apressado e tão brabo assim? Diz aí “homi”, vai! O que te fizeram lá pra cima, nas cabeceiras, pra que venhas assim em nossa direção tão cego e violento, tão enfurecido e danado? Há muito os que jogavam mercúrio já se foram. Deles, exceto as marcas, quase nem lembramos! Porque tuas águas, mãe nossa e berço dos cardumes, agora vorazes engolem barrancos, tragam plantações, invadem casas com furor insano, como nunca visto, por quê? Meu Rio Madeira, já andamos nas tuas tantas praias de águas rasas e vivemos contigo nas muitas e grandes cheias sem nunca te maldizermos ou reclamar, sem arredar pra longe de ti!

Sempre estiveste ali, há muitos ou poucos metros do barranco e até acima dele, vieste até os nossos calcanhares lavando os assoalhos de “tauba”, “paxiúba” ou chão batido. Nessa hora, fizemos malabarismo, nos penduramos mais a patroa com os curumins e até os bichos de estimação. Demos o nosso jeito, mas estávamos ali, juntos! Fomos cúmplices e compreensivos, generosos e mútuos no dar e receber. Em ti banhamos a nós e nossos filhos e até nadamos em molecagens e travessuras. De ti, tiramos a subsistência, és caminho pro nosso ir e vir, passarela para os traquinos tucuxis. E assim vivendo, sempre te dispensamos cuidado, carinho, admiração, amor e respeito, sempre!

Agora apressado e mais eufórico como nunca dantes visto, já não sobra tempo para a prosa e tu, nervoso e incontrolado, corres e te balança todo nas novas tarefas que deram. Quanto a nós, resta remar pra escapar de ti, fugindo do confidente quem sempre nos acolheu e deu te tudo. Seremos nós os ingratos da história? Uma noite dessas, daqui da janela, te vendo assim, todo barulhento e “aguniado”, quase jogamos em ti um bule de chá de cidreira, só pra ver se te acalmava!

Num disse me disse esquisito, falam muito e misturam tudo. São informações mil que confundem nossas já atrapalhadas mentes ao dizerem que essas gigantescas novidades trazidas com o acelerado desenvolvimento te “intopem” nas tais represas te fazendo transbordar o leito e alagar tudo, nem sabemos se é isso mesmo! Por aqui, além das tuas muitas águas, com as quais aprendemos lidar e conviver, atracam uns tantos salvadores alardeadores de desgraças, desfeitores dos nossos saberes e desdizentes dos nossos hereditários costumes e modus!

Serão esses transeuntes do asfalto, os perdidos patrocinadores da tua fúria? Eles se achegam arregalados, amedrontados e atordoados. Esbaforidos e apressados, tentam remediar seus mea-culpa! Engraçado, criam monstrengos e depois vivem pesadelos diurnos, se assombram com suas próprias invencionices. Se não entendem, sequer, de cidade com asfalto, muros e calçadas não é sobre pé de macaxeira e nem de tipiti, nem de cambito e, muito menos de rio e de ribeirinhos que vão entender tão cedo!

Responde pra gente, meu Rio Madeira: é verdade que lá na cidade tu já corres nas ruas, por onde andavam os carros? E “ulha já”, dizem que já lambes mais que os pés da capital e que tão com medo de ti porque tu ta desenfreado, sem eira nem beira, e não respeita as placas e sinais luminosos, isso é verdade? Como os nossos conterrâneos que saíram daqui, levados pra lugares na improvisada vida urbana estão se atando?

Parece que pra longe tangeram teus botos e mandis. Tuas gaivotas foram espantadas e sabe-se lá por que céus cantam e revoam. Chegam por aqui missivas de que os filhos da beira do trilho debandaram lá pra cidade alta e parecem, cada vez mais, distantes e órfãos dos silvos daquela locomotiva, é verdade? Soube que uns subiram o morro do Triângulo e se vêem praticamente ilhados com tuas águas cercando o Areal e o Ramal São Domingos, outros se agasalharam nos longes doutros bairros, isso também é do vera?

Os teus prévios sinais, lentamente enviados, foram um a um desprezados e já não valem mais. Ignoraram tua força e pagaram pra ver a tua resposta na régua do centímetro por centímetro. Agora numa infrutífera discussão de jogo de culpa, se afogam de lero-leros e nadam perdidos nas tuas revoltosas, abundantes e incontroláveis águas. Nessa bagaceira diluviana, nos atingem indefesos, mas nesse chororô e tremor do frio alagadiço, não somos os errantes, nem os únicos aperreados! Então, que se virem pra saber se o degelo das cordilheiras ou se as fortes águas do Beni e do Madre de Diós, se turbinas em movimento ou acúmulos de represamento e seus feitos de jusante, são mesmo os culpados. Tudo isso, derramado na bacia da incompetência, do atraso e descaso governista, de parte a parte, fere a nossa condição e vida.

Os “maluvidos” de toda ordem, os sabedores de tudo e entendedores do nada a ver, vomitam a todo o instante seus prognósticos sobre mais cheia ou vazante, como fosse isso uma loteria e a vida, a saúde, o bem-estar, a história e a cultura do nosso povo, um objeto a ser bolinado em aposta. Ó meu Rio Madeira, desafiaram a tua juventude e força de rio em formação. Ficaram no “vai não vai” e sequer foram prévios na orientação e acudimento de famílias.

Mais que os socorros, nos devem e queremos o respeito da verdade na fala direta, na informação e orientação precisas. Jogaram fora a ciência herdada e aprendida com a natureza e os seus sinais e nos empurram temporais construídos e maquinários que afugentam peixes e humanos. Não fomos talhados e forjados na esquisitice da mediocridade e da “enganocracia desumana” e perversa. Os caras-de-pau e hipócritas de todas as horas, ordens e tez, tem, na trágica sacanagem aqüífera, um cheio prato para os seus apelos de escrotas bondades e bandidos aproveitamentos.

Ademais resta uma discussão pra mais de metro sobre essa parte da Amazônia cabocla, onde alguns locais viraram Veneza às avessas e expelem agonia e incerteza, numa dantesca, desproporcional e feia cena. Após a baixa das águas, os desatentos e incrédulos da demora terão de migar e mascar o ensopado e insosso tabaco da re-organização habitacional, educacional, de saúde, d cultura, de agricultura... num charco em forma de clamor social que cobrará resposta convincente ao abalado e sentido peito cidadão.

O contexto das inobservâncias e os seus pelotões das ações de provimento aos danos e reparações sociais, nem de longe, foram diligentes e precisos na antecipação da defesa de gaivotas, mandis, botos e gente, gente principalmente! Resta remediar o mal maior e se agarrar na fé e na esperança futura de que isso aqui, ao curso dos anos e das águas não se torne uma Atlântida karipuna.

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