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Pajé Cícero Xía Mot Arara: luto e re-existência indígena na Amazônia


Pajé Cícero Xía Mot Arara: luto e re-existência indígena na Amazônia - Gente de Opinião

Uma das formas do ser humano lidar com profundas tristezas ocorre através do ato de escrever. Essa prática cultural, presente em muitas das atuais sociedades pode ser insurgente ao permitir o alongamento da memória, uma extensão das lembranças para um suporte material. E é dessa perspectiva que escrevo este pequeno registro como meio de vivenciar o luto, mas também como uma estratégia de comunicar a perda de uma autoridade tradicional do mundo amazônico e do contexto ameríndio.

 

O entardecer do dia 20 de junho de 2020 assombrou a região central do estado de Rondônia, Ji-Paraná e principalmente a Terra Indígena Igarapé Lourdes com a notícia do falecimento do Pajé Cícero Xía Mot Arara, possivelmente, uma vítima da Covid-19. Cícero em toda sua existência foi um homem da cura, dos conselhos, da defesa de seu Povo. Um grande conhecedor da história subterrânea de luta e re-existência Arara, etnia autodenominada Karo,  desencadeada diante de múltiplas ações coloniais e capitalistas que por pouco não dizimou sua etnia que no final dos anos 1970 estava reduzida a 77 pessoas.

 

Nascido na primeira metade do século XX na atual Ji-Paraná ouviu de seus familiares e depois presenciou da infância à vida adulta episódios brutais de desaldeamentos, raptos de crianças, doenças e mortes. Na historiografia oficial estas apropriações territoriais foram o palco dos Ciclos da Borracha, que a didática das desaprendizagens me inspirou a chamar de diásporas indígenas na Amazônia. Viu suas malocas serem destruídas em nome do progresso desenvolvimentista que só enxergava látex e caucho pela frente. Dali em diante foi obrigado a trabalhar nos seringais.

 

A esse respeito, Vitor Hugo escreveu em “Os Desbravadores”, registros do Seringal Santa Maria de Raimundo Barros em 1958, empreendimento sustentado por meio da exploração do Povo Arara em troca de um mísero prato de comida e peças de roupas usadas. Ali o autor apresentou algumas palavras coletadas pelo seringalista que o Pajé Cícero e os demais Arara utilizam até hoje em seus processos comunicativos nas aldeias e nas escolas, como: na’to/nató (anta), ameko (onça), iuá/iwap (banana), mani (macaxeira), por exemplo, com variações nas grafias de ontem e de hoje. Uma das feições de uma língua rara do planeta, o misterioso Tupi Ramarama, que só permanece até hoje porque resultou de dinâmicas transgressoras por parte da etnia Arara, conforme documentação de Edineia Isidoro. Apesar dos riscos, falavam às escondidas sua língua, proibida e desqualificada chamada de “gíria” nos barracões seringalistas.

 

Cícero Arara mantinha muito forte a memória da época destes tempos. Foi possivelmente em 1946 que encontrou Chiquito Arara no Seringal da Penha e o convidou para sua maloca, nas proximidades do Igarapé Orquídea, marcando dessa forma um importante papel no processo de realdeamento do seu Povo bem antes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) que só ocorreu em 1966.

 

Nesse sentido, mesmo vivendo nos contextos adversos dos seringais Cícero Arara nunca parou de trabalhar pelo retorno à vida coletiva. É possível inferir que eram enormes os desafios da reorganização da tradição Ramarama, dado as situações inusitadas, produzidas por um “outro” tão diferente, aparentemente tão forte e quase invisível expresso por diferentes feições: seringalista, seringueiro, fazendeiro, garimpeiro ou Estado brasileiro com práticas culturais hegemônicas e diversas no que se refere à linguagem, alimentação, vestuário, lazer, tratamento da saúde, religiosidade, objetos, armas, etc.

 

 Este “outro” em suas diferentes manifestações metafóricas e de complexas metonímias gerava, talvez, simultaneamente sentimentos de atração e repulsão. Como produzir respostas em uma temporalidade tão voraz e diferente? Penso principalmente nas doenças desconhecidas em que a disputa também se dava de forma desproporcional com vistas à desmoralização das curas tradicionais. Terreno fértil para a inserção das mentalidades integracionistas e religiosas. Estas últimas foram constantemente repelidas pelos Arara  com o escudo da espiritualidade da tradição.

 

E nesta linha de raciocínio, avalio que Cícero Arara foi um expressivo representante da simbologia de re-existência cultural Arara na contemporaneidade. Re-existência no sentido pensado por Albán Achinte como um processo de emancipação resultante das aprendizagens em momentos de ausências, tristezas e conflitos que pode viabilizar outros arranjos para a vivência com o outro. Talvez uma aproximação também com os inéditos-viavéis, possibilidades oriundas das situações-limite como apontam as reflexões freireanas.

 

Inegavelmente, Cícero foi uma referência fundamental para o Povo Arara em sua função de liderança e de protetor por meio das atividades de Pajé. Uma pessoa admirada por todos considerando as diversas narrativas existentes. Quantas vezes ouvi dos docentes da etnia Arara episódios sobre sua atuação diante do sobrenatural traduzido nas imagens maléficas de Oraxexe ou do Nabixon, suas intervenções espirituais no dia a dia ou nas festas tradicionais - em ocasiões de caçada, estabelecia comunicação com os seres por meio de assovios e assim assegurava a captura de animais como o catete, por exemplo.

 

Betty Mindlin, em um belo texto de 2016 discute a trajetória dos Karo e informa dentre outros aspectos que Cicero foi um grande educador Pajé tanto entre os Arara como entre os Gavião. Além de outras atividades, ensinava os iniciantes a encarar os animais e estabelecer formas de comunicação com eles, um recurso para compreender o intrincado labirinto que estabelece regras rígidas sobre o permitido e o proibido nas relações com o sobrenatural até alcançar o estágio mais avançado de formação: o saber da metamorfose por meio do couro dos espíritos. 

 

Neste 1º semestre de 2020, Cícero se foi, assim como milhares de pessoas do Brasil, mas não apenas por causa de uma doença invisível, possivelmente a Covid-19, mas pelo resultado direto de uma política genocida que tomou conta da saúde brasileira na gestão Bolsonaro e que inexoravelmente impacta as aldeias brasileiras. 

 

Todos nós, não indígenas que estabelecemos relações de trabalho e amizade com as populações originárias e em função disso, aprendemos neste convívio as lições do direito à coexistência temos a obrigação de nos inquietar, evitar conciliações duvidosas. Temos a obrigação de perceber, de denunciar a vulnerabilidade extrema que ameaça as aldeias e isso exige ação, precisamos nos mexer, questionar as estruturas globalizantes e assim construir saídas e contribuir com os Povos Indígenas na luta pela vida.

 

E é deste lugar, da docência na Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia que venho dizer a minha palavra, na perspectiva defendida por Paulo Freire. Não podemos nos limitar às ações de caridade, mas tensionar às estruturas para assegurar direitos efetivos e justiça social. E é daqui que seguiremos com os nossos referenciais em dialogia com os saberes da tradição indígena assumindo sem medo os desafios e armadilhas do jogo intercultural, principalmente por meio das ações no âmbito da Lei 11.645/2008, normativa que tornou obrigatório o estudo da História e Culturas Indígenas no currículo escolar.

 

Em 2016, a UNIR – Campus de Ji-Paraná, homenageou o Pajé Cícero no XVIII Seminário de Educação (SED). Um momento de alegria e reconhecimento dos saberes ameríndios e da presença originária na região central do estado de Rondônia. Esta lembrança nos conforta agora, quando o sentimento é de tristeza e desamparo, mas a memória ancestral de Cicero Xía Mot continuará mobilizando as possibilidades necessárias para a abertura de caminhos a favor da continuidade do Povo Arara Karo no mundo e no pensamento decolonial latino americano.

 

Penso que muita coisa precisa ser pensada, falada e escrita sobre o Pajé Cícero, sobretudo, na perspectiva do próprio povo. Como um dos primeiros moradores da região do Rio Machado, Cícero Arara constitui uma referência e autoridade amazônica que merece o prestígio dos grandes funerais das tradições indígenas, ritual negado em função dos cuidados necessários ao combate da pandemia.

 

Sentiremos falta do grande guia na tradicional festa anual do Wayo Akanã, a esperada Festa do Jacaré. Mas a memória cosmogônica do homem valente e protetor segue no imaginário Arara e nas amizades indigenistas. Uma memória contra-hegemônica que pode permitir múltiplos processos de re-existência e refazimento da identidade Karo. 

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