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A má fé democrática


Gen Marco Aurélio Vieira  - Gente de Opinião
Gen Marco Aurélio Vieira

Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime.” – Hannah Arendt

O Brasil surgiu como organização política em 1549, com a chegada de Tomé de Souza, encarregado de erguer a capital da colônia na Bahia de Todos os Santos. Seis jesuítas que acompanhavam o recém nomeado Governador Geral representavam a ordem eclesiástica, 320 homens em armas eram o Estado Militar, 400 degredados formavam o povo, e a incipiente origem da sociedade brasileira não tinha mais que mil almas.

A partir daí, o colonizador português fez no Brasil uma vida em tudo diversa ao que vivera até então. Ele inventou um homem novo e uma sociedade diferente, onde trabalhavam lado a lado autoridades e povo, unidos na defesa do território e na produção de alimentos. As hierarquias da Europa perderam o sentido aqui. Todos precisavam de todos para sobreviver, e dessa necessidade de união para se construir uma nova sociedade plantou-se a semente de uma inédita nacionalidade.

Essa origem igualitária, imposta desde os primórdios pela sobrevivência, nos moldou como povo e fez do país uma espécie de “paraíso social”, uma terra com liberdades dificilmente encontradas em outros reinos, com eleições no nível municipal desde a instituição do primeiro governo central, em 1549. Durante todo o período colonial, no Império e até o presente, jamais se deixou de eleger os dirigentes dos conselhos das províncias, liberdade que nenhum país europeu pode se gabar de ter desfrutado tanto tempo.

A Independência do Brasil trouxe uma Constituição de inspiração liberal, fundamentada no chamado “poder moderador”, que livrou o país de um despotismo comum à época, presente na maioria dos países da América do Sul. A República foi proclamada e chegou até os dias de hoje com nossos políticos sempre defendendo as liberdades e os princípios democráticos. Mesmo nos momentos em que o Brasil viveu o autoritarismo, como na chamada República da Espada de Deodoro e Floriano, na ditadura de Getúlio Vargas ou no Regime Militar de 64, nunca tivemos no país expurgos em massa, casos de “limpeza étnica”, gulags, ou campos de extermínio, práticas habituais em todas as tiranias da História. Nosso autoritarismo tupiniquim jamais cerceou certas liberdades, e sempre permitiu algum nível de oposição, concessões impensáveis em quaisquer outros históricos regimes ditatoriais, como do comunista da União Soviética, e mesmo dos atuais de Cuba, Venezuela ou Iran.

Entretanto, a Constituição de 1988, marcada pela excessiva preocupação em execrar o regime militar e limitar o poder executivo, estabeleceu uma estrutura político partidária clientelista e desequilibrou o sistema de freios e contrapesos dos poderes da nossa democracia, além de ter depreciado muito de nossas conquistas democráticas. Não é por acaso que a palavra “pátria” apareça apenas uma vez no texto constitucional - no artigo 142 - aquele que traduz a preocupação dos militares com a defesa nacional, tema que não recebeu sequer um mínimo de atenção dos constitucionalistas.

Alguns efeitos colaterais desse enfoque constitucional “permissivo” nos atormentam desde então, como a potencialização das diferenças ideológicas, a exacerbação de sentimentos antimilitaristas e - pior - o esvaziamento do nosso regime presidencialista. Cada vez mais fica evidente não ser possível mascarar a verdade sob filigranas, ainda que juridicamente perfeitas: por omissão de suas instituições, irresponsabilidade da grande mídia e desatenção do povo, a democracia do Brasil vem sendo deturpada.

Nestes últimos anos, assistimos a conivência corporativa do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, que implementaram com sucesso procedimentos dignos de um “governo dos não eleitos”. Partidos pequenos, sem expressão eleitoral e sem poder para imporem suas pautas, passaram a governar efetivamente, através de ações junto ao Judiciário. Essa judicialização indiscriminada de pleitos oposicionistas transformou o STF em um “partido togado” com poderes de executivo, capaz de impor desde restrições ao direito de ir e vir dos cidadãos durante a pandemia, até a proibição de ações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro.  Os Juízes do Supremo têm atuado sem inibição como delegados de polícia, abrindo processos, impedindo o acesso dos advogados aos respectivos autos, bloqueando contas, impondo multas e censurando redes sociais.  Nosso Judiciário desconsidera o texto constitucional, falsifica leis, cerceia liberdades fingindo defendê-las e milita politicamente em todas as esferas. Não sem razão, existem atualmente mais de 140 ações judiciais do STF contra o Governo, assim como se assiste uma criminosa campanha político partidária de descrédito do Presidente e do Brasil, inclusive no exterior, sem qualquer preocupação manifesta dos outros Poderes da República quanto às consequências disso para a nação. “Democraticamente”, a sociedade não esboça qualquer reação, inclusive quanto à liberação da candidatura à presidência da república de um condenado por corrupção em três instâncias – não inocentado – mas beneficiado por artimanha jurídica perpetrada pelo atual Presidente do Tribunal Eleitoral.

Lutas e muito trabalho construíram nossa república liberal. Temos uma democracia forjada em tentativas e erros ao longo de mais de quinhentos anos, que nos assegura hoje uma qualidade de vida desfrutada por menos de um terço da população mundial.  O Brasil é grande porque manteve seu território, superou divergências políticas em nome da unidade nacional, mas também pela visão das nossas elites quanto às prioridades da nação. O país está maduro politicamente, mas usar a lei como ferramenta para “ajustar” a democracia aos seus interesses é má fé.  Abdicar de pensar e votar colocando a ideologia à frente dos fatos, engolindo abusos e sorrindo para quem despreza nossas liberdades é crime de lesa pátria. Porque se a batalha do século XX foi do comunismo versus capitalismo, o embate maior do século XXI é do controle versus a liberdade.

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