Quarta-feira, 1 de outubro de 2025 - 16h51
Em meio a um cenário em que a beleza natural contrasta com os desafios ambientais, o Vale do Guaporé, na fronteira com a Bolívia, enfrenta um fenômeno preocupante: o atraso na desova das tartarugas-da-Amazônia. Da espécie Podocnemis expansa, esse é o maior quelônio de água doce da América do Sul e um dos símbolos da biodiversidade brasileira.
A região é considerada o maior berçário de tartarugas de água doce do Brasil e um dos maiores do mundo. Esta primeira reportagem mostra que o atraso na desova está relacionado a um conjunto de fatores, entre eles: mudanças climáticas (como chuvas fora de época); queimadas ilegais e a fumaça resultante, que alteram a temperatura das praias de desova; a subida do nível do Rio Guaporé, que alaga os ninhos; e a menor exposição solar, que interfere na termorregulação das tartarugas.
Nesta quarta-feira (2), a segunda reportagem abordará o esforço coletivo para garantir a sobrevivência das tartarugas-da-Amazônia.
As praias do Vale do Guaporé já deveriam estar tomadas por tartarugas-da-Amazônia (Foto: Eliete Marques I Secom ALE/RO)
Desova
Normalmente, a desova dessa espécie ocorre entre agosto e setembro. Contudo, o atraso registrado em 2024 se repete em 2025. A situação alerta para os impactos das queimadas, da fumaça e das mudanças climáticas nos ciclos reprodutivos desses animais. A esses fatores somam‑se as ameaças da caça predatória de tartarugas e a coleta de ovos, intensificando os riscos de sobrevivência da espécie.
Especialistas explicam que, em 2024, a fumaça das queimadas ilegais - agravadas pela seca extrema - bloqueou a luz solar e alterou a temperatura da areia nas praias, onde as tartarugas, tradicionalmente, realizam a postura dos ovos. Essa condição ambiental desfavorável interferiu no comportamento dos animais, que adiaram o início da desova.
O resultado foi devastador: milhares de ninhos foram afetados pela subida do nível do rio, o que reduziu drasticamente a taxa de sobrevivência dos filhotes. De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 2023 nasceram mais de 1,4 milhão de filhotes. Já em 2024, a estimativa era de que 700 mil sobrevivessem, mas, ao final, o número foi reduzido para 350 mil.
A previsão para 2025 também é desfavorável. “Os problemas climáticos que ocorreram no último ano, transcenderam para este. Com isso, podemos observar que tais impactos têm efeito maior do que se imaginava, pois não afetaram apenas o ano do ocorrido, mas talvez todo um ciclo natural. Não sabemos quando o ciclo voltará ao normal, ou mesmo se voltará”, enfatizou o biólogo Deyvid Muller.
O biólogo acrescentou que o atraso na desova também retarda o nascimento dos filhotes, considerado um momento de vulnerabilidade para a espécie “Provavelmente, o nascimento ocorrerá quando o nível do rio estiver subindo, o que pode levar à morte de inúmeros filhotes. Talvez, com a ajuda de voluntários, possamos reduzir um pouco esse impacto, mas não em sua totalidade”, lamentou.
As tartarugas-da-Amazônia fazem os seus ninhos nas praias do Rio Guaporé (Foto: Ibama I Divulgação)
Características da espécie
O termo “quelônio” refere‑se a répteis com casco, incluindo tartarugas, jabutis, tracajás e cágados. O maior entre os que vivem fora da água salgada é a tartaruga-da-Amazônia que, na fase adulta, pode alcançar 1 metro de comprimento, pesar mais de 50 quilos, e viver mais de 100 anos.
O período de incubação dura entre 45 e 80 dias, dependendo de fatores como tamanho da fêmea, qualidade do solo e temperatura. Os ovos são colocados nos ninhos e se desenvolvem sozinhos, sem a presença das tartarugas. Cada fêmea coloca, em média, mais de 90 ovos por ninho.
Após cerca de dois meses, os ovos eclodem. Neste momento, começam a emergir filhotes de tartarugas de dentro da areia. Geralmente, eles costumam ir sozinhos até a água - momento em que se tornam presas fáceis para predadores naturais, como urubus e, dentro da água, de jacarés e de peixes maiores.
Porém, no Vale do Guaporé, uma ação conjunta da Associação Comunitária e Ecológica do Vale do Guaporé (Ecovale), em parceria com o Ibama, outros órgãos, empresas e voluntários ajudam a resgatar os filhotes, enquanto o nível do Rio Guaporé sobe e ameaça inundar os ninhos. “Nossa ideia é aumentar a taxa de sobrevivência desses filhotes”, destacou José Soares Neto, conhecido como “Zeca Lula”, um dos fundadores da Ecovale.
Para se protegerem, os filhotes passam os primeiros anos em pequenos grupos. Eles atingem à fase adulta aos 30 anos. Em Rondônia, as tartarugas-da-Amazônia desovam em praias brasileiras (em Costa Marques e São Francisco) e também nas praias bolivianas (do outro lado do Rio Guaporé).
Queimadas foram registradas nas margens do Rio Guaporé (Foto: Luís Castilhos I Secom ALE/RO)
Ibama
De acordo com o Ibama, o tabuleiro de desova do Rio Guaporé é o maior do país. O chefe do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) de Porto Velho, Áquilas Mascarenhas, que também atua no Programa Quelônios da Amazônia (PQA), confirma que a situação das tartarugas no Vale do Guaporé é delicada.
O Programa Quelônios da Amazônia (PQA) promove, por meio da pesquisa, do manejo e da educação ambiental, processos de conservação dos quelônios de água doce da Amazônia Legal e da bacia do Rio Araguaia/Tocantins.
“Este ano, nós quase não tivemos verão. Em agosto, as chuvas começaram no estado e não pararam. Isso indica que o inverno [amazônico] chegou mais cedo. Tivemos um tempo de exposição solar menor do que em anos anteriores, e isso influencia no processo reprodutivo dos quelônios”, explicou Mascarenhas.
Ele ressaltou que, no período de seca - de extrema exposição solar, típico de agosto e setembro - as tartarugas, sendo ectotérmicas (de “sangue frio”), realizam o processo de termorregulação, ou seja, utilizam o ambiente para controlar sua temperatura corporal.
Acampamento do Ibama montado às margens do Rio Guaporé (Foto: Luís Castilhos I Secom ALE/RO)
“É preciso maior exposição à temperatura. Se isso não ocorre conforme o processo reprodutivo exige, afetará a postura e a eclosão dos filhotes. Muitos animais, inclusive, nem conseguirão realizar a postura neste ano”, advertiu.
Em Rondônia, segundo Mascarenhas, nascem mais de 1 milhão de filhotes por ano, em média. Quanto à caça predatória, ele informou que há equipes do instituto encarregadas da fiscalização. No entanto, admitiu que seria necessária uma rede de apoio maior para proteger esses animais, considerando o número de servidores e as demandas que o Ibama precisa atender.
“Mas é importante frisar que, mesmo diante de todos esses desafios e limitações, o Ibama está procurando fazer o máximo que pode. O Ibama está priorizando, sim, a fiscalização do rio, o guarnecimento dos animais e das praias, para garantir a perpetuidade da espécie", finalizou.
A Sedam afirmou que presta apoio à Ecovale e também realiza campanhas educativas na região (Foto: Ana Paula Modesto I Governo de Rondônia)
Sedam
O titular da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), Marco Antônio Lagos, explicou que são realizadas campanhas anuais contra a caça e o consumo de animais silvestres, com ações educativas em escolas, associações e comunidades ribeirinhas. “Essas atividades também abordam a prevenção de queimadas, a gestão adequada de resíduos sólidos e o descarte correto do lixo, que impactam diretamente os quelônios”, destacou.
O secretário reiterou que as tartarugas não tiveram as condições adequadas para reprodução, devido às alterações climáticas. “Sabemos que, no passado, houve uma redução nas populações, e que isso pode se repetir este ano. Estamos acompanhando. É um fator da natureza. Porém, o nosso objetivo é minimizar os efeitos nocivos da atividade humana na vida das tartarugas", salientou.
Lagos ainda destacou que a Sedam atua em parceria com a Ecovale, Ibama e com o Batalhão de Polícia Ambiental, e realiza fiscalizações constantes nos rios, tanto para combater predadores humanos das tartarugas quanto outros crimes ambientais relacionados à pesca.
“A fiscalização e a educação ambiental ocorrem o ano inteiro. Conforme a época do ano, muda o tipo de crime que se comete. Agora, temos o problema das tartarugas. Depois, enfrentamos o problema do defeso. O trabalho é contínuo”, concluiu.
Exército
O Pelotão Especial de Fronteira, sediado ao lado do Real Forte Príncipe da Beira, em Costa Marques, é uma unidade do Exército Brasileiro localizada às margens do Rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia. O pelotão informou que “sua missão é defender a Amazônia, garantir a soberania nacional na região e controlar a fronteira, por meio de operações constantes de policiamento, bloqueios e abordagens, a fim de coibir crimes como o tráfico de drogas e de animais."
Exército
realiza operações constantes de policiamento, a fim de coibir crimes,
como o tráfico de drogas e de animais (Foto: Eliete Marques I Secom
ALE/RO)
Comissão de Meio Ambiente
Uma das funções do Parlamento estadual é fiscalizar ocorrências anormais no estado. Diante do atraso na desova, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, presidida pelo deputado Ismael Crispin (MDB), solicitou que a Superintendência de Comunicação Social (Secom) - redações do site e da TV Assembleia - fosse ao Vale do Guaporé para verificar a situação.
“O nível do rio permanece elevado, impossibilitando o surgimento das praias onde tradicionalmente ocorre a reprodução da espécie. Essa realidade representa uma séria ameaça ao equilíbrio do ecossistema local e exige resposta rápida e coordenada das autoridades competentes. Reafirmamos nosso compromisso com a proteção das espécies ameaçadas e com a preservação de um símbolo do nosso estado e da Amazônia”, destacou Crispin.
Além disso, neste ano, a Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Rondônia (Alero) promoveu audiências públicas itinerantes
para debater a revisão do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico do
Estado (ZSEE). “Essas audiências reuniram moradores, produtores rurais,
entidades ambientais e lideranças locais para discutir critérios e
impactos, de forma a equilibrar a preservação ambiental e a atividade
econômica”, concluiu o deputado.
Comissão
de Meio Ambiente promoveu audiências públicas itinerantes para debater o
zoneamento do estado (Foto: Thyago Lorentz | Secom ALE/RO)
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