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Vinício Carrilho

Racial-fascismo


Racial-fascismo - Gente de Opinião

Desconheço até o momento análise aprofundada sobre o fenômeno fascista que se instalou no biênio 2018/19 no país, ou, como querem alguns, o protofascismo, no sentido de sempre haver um broto, uma semente, uma centelha, um cio a copular com a barbárie.

            É certo que nos inspiramos no tipo antissocial estadunidense, copiando a tecnologia utilizada das redes sociais, o vexame em público como estandarte para os seguimentos empobrecidos ou de “cultura negativa” (quer dizer reacionária), o retrocesso aplicado ao processo civilizatório – justificação e apoio ao racismo, machismo, nepotismo, feminício, ódio, preconceitos e intolerância aos direitos humanos –, a degeneração da normalização do Estado de Direito e da Constituição, os ataques à cultura, à educação e ao bom senso, o sem-sentido negador da realidade e da obviedade, a negação e a posterior privatização do espaço público: da Polis, da Política. E tantas outras mazelas.

            Também é correta a afirmação de que se trata de um fenômeno global com o recrudescimento da “cultura negativa” pelo mundo afora. Do neocolonialismo nos EUA à xenofobia que alimenta partidos neonazistas no continente europeu. Do mesmo modo, ainda é preciso avaliar que a chamada fase da financeirização do capital, em que o chão de fábrica não é mais regente/regido no sistema produtivo, mas sim a monetarização, a especulação, a desintegração das relações trabalhistas, nos legaram a certeza de que a “liquidez” dos ganhos e da acumulação não vigora mais nas mãos do capitalista tradicional – o capitão da indústria que acreditava que “o porco cresce com o olho do dono” e assim “crescia com seu negócio”. Mesmo porque as ações ao portador são binárias e virtuais. Ninguém leva para casa ações compradas nas Bolsas de Valores.

            A isto ainda é preciso agregar o dado de que esta forma de “liquidez do capital” exige enorme velocidade e solvência (vale pensar em “Time is Money”), compra-se de manhã para vender no começo da tarde. Este é o modelo do empreendedorismo financista, a obrigar que as relações humanas entrem, igualmente, em colapso nesta era de programação para explorar: a privatização, a terceirização, a uberização, que aceleram o tempo, os vínculos e o consumo. A crescente taxa de depreciação das coisas, a necessidade (compulsão) de trocar os objetos de consumo, a obsolescência de tudo, caminham lado a lado com a fluidez que as tecnologias de redes sociais exprimem e alimentam fluidamente.

            Concordo com tudo isto, porém, no sentido do protofascismo – uma espécie de “tipo social” agregador e reprodutivo –, outras características são somadas: mitologia, ideologia, psicopatia, atavismo, segregacionismo, irracionalidade, racismo.

            No caso nacional, desde a colonização, implementamos um regime produtivo relativamente próprio, capaz de combinar o capitalismo e a escravidão. Esta contradição entre os termos foi possível porque o mercado consumidor estava na Europa; então, o consumo e a geração de riquezas – o “círculo virtuoso” do capital – não estava aqui e, portanto, o trabalho livre (gerador de renda e consumo) também poderia estar distante.

            Este regime nos revelou inúmeras características: da incapacidade de fixação, adensamento cultural, aldeamentos, formação de identificações sociais e culturais, “fluidez” que acompanha o esgotamento da terra e dos recursos naturais, à inculcação racista de que o trabalho é desqualificado. Isto, evidentemente, está em grande moda. Certos fetichismos advêm dessa estrutura, como a violação das mulheres negras no esteio da miscigenação, ao lado do controle de uma moral religiosa. No passado esteve a cargo da Igreja Católica, hoje atende por neopentacostalismo – este está mais adaptado à ética protestante do espírito capitalista porque condena e revoga o “crime da usura”. Se antes se pagava pelos pecados (indulgências), hoje se compra a salvação.

            Além disso, e este é o X da questão, os herdeiros da escravidão nunca foram, e pelo andar da carroça nunca serão, indenizados de qualquer forma pelo aviltamento que seguiu direto de seus ancestrais até o descalabro contemporâneo. É tão grave a conotação racista nacional que se paga pelo branqueamento da pele ou das famílias. Algumas autoridades chegam a celebrar publicamente que seus descendentes são mais brancos, do que a origem que ele representa. Do mesmo modo, os nordestinos – chamados pelo presidente eleito de “paraíbas” – somam-se aos negros, quilombolas, sem-terras e sem-tetos, aos miseráveis e ao lumpesinato, lutando para sobreviver contra o Estado nos semáforos, nas favelas, nas ocupações.

            Quando olhamos para tudo isso e identificamos um padrão, porque “sempre foi assim”, justificando-se e “naturalizando” o pecado da formação social e cultural, sacramentando-se a hipocrisia de que não há racismo institucional (“não quero aqui ´denegrir´ ninguém”, diz o poder), é porque soubemos, como ninguém, alicerçar e aliançar o racismo com o protofascismo. O “bandido bom é bandido morto” só se refere aos pobres e aos negros – especialmente os fugidos da “senzala” e que não se dobram à Casa Grande. Nosso racial-fascismo implementou como pós-moderno, em resgate ao seu atavismo, a exclusão e a eliminação dos que considera “sem eira, nem beira”: sem casa, sem rococó, sem comida, sem chance para matar a fome.

            Por isso, 2018/2019 segue sendo a justificação e a normalização do abominável.

Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito)

Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

Departamento de Educação- Ded/CECH

Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS

 

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