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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Para uma Teoria do Estado Moderno - 2


III Marco Histórico

Renascimento: Mecanismo: Galileu – Descartes - Hobbes – Bacon

            O “movimento do mecanismo” promoveu a razão necessária ao Estado Moderno, como mecanismo de superação do “estado de necessidade da natureza”. O mecanismo ofereceu o aporte do argumento lógico ao “poder instrumental” do Leviatã. O mecanismo ainda empregou um sentido científico à dominação política e projetou a “dominação técnico-racional”, em compasso com o discurso do Estado de Direito (como queria Weber):

O mecanismo é uma filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo com as leis dos movimentos materiais. [A minha filosofia], escrevia Descartes a Plempius, [só considera grandezas, figuras e movimentos, à semelhança do que faz a mecânica]. A fórmula será constantemente retomada no seu século: tudo na natureza se faz por [figuras e movimentos]

(Alquié, 1987, p. 59).

 

            Como veremos, no mecanismo, há uma mescla entre racionalidade e empirismo. Sob essa influência, mas em período subsequente, também surge Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, místico, físico e matemático. A frase mística “o coração tem razões que a própria razão desconhece” é uma síntese de sua doutrina filosófica: entre raciocínio lógico e emoção. Pascal foi um gênio matemático e também criou a primeira calculadora mecânica. Além de sua intensa atividade científica, ainda se dedicou a trabalhos de natureza filosófico-religiosa e, como teórico, destacou-se como um dos mestres do racionalismo e do irracionalismo. Porém, antes disso, no século XVII, o mecanismo tinha uma fórmula simples: Tudo na natureza ocorre por meio de figuras e dos seus movimentos. É deste fluxo que advém a ciência clássica. Também é neste sentido que se pode dizer que o mecanismo promoveu uma revolução na ciência sem ter sido uma teoria científica — distinguiu-se como uma nova racionalidade e por trazer outra forma de apreensão dos fenômenos. O próprio surgimento do mecanismo se deu com uma descontinuidade, mas o sentido laico e comum é a necessidade de explicar os fenômenos da natureza exclusivamente pelas leis dos movimentos da matéria — e esta não tem alma. Esse típico pensamento mecanicista (tendo o cartesianismo por referência) logo ganhou a consciência do homem comum. Os “mecanicistas” ainda rejeitaram as físicas animista, qualitativa, finalista. Mas o Mecanismo não foi só uma ilustração filosófica, foi uma obra de concretude técnica ou, mais precisamente, de obras mecânicas (além da própria mecânica, enquanto parte da física):

MECÂNICA – tradicionalmente a teoria das máquinas, em particular as cinco “máquinas simples”: a alavanca, a cunha, a roldana, o parafuso e o molinete. Transformada durante a revolução científica para incluir teorias de colisão e outros problemas associados com corpos em movimento (Henry, 1998, p. 139).

 

            Foram aí indicadas cinco peças, além da lançadeira voltante, que propiciou a alavancagem da Revolução Industrial. O que também se percebe hoje com mais clareza é que o próprio Renascimento não foi uma era homogênea, recheada de grandes gênios e em meio a cursos revolucionários contínuos. Houve sim, como longo processo de amadurecimento e de profundas transformações, certos momentos ou fases em que dialogavam plenamente o moderno e o arcaico, o novo e as tradições, as mudanças e o sectarismo, a alquimia e a química, a RETA RAZÃO e o pensamento mágico:

“MIRABILIA” — literalmente, “coisas maravilhosas”. Usado para denotar máquinas ou autômatos que costumavam ser mostrados na corte em exibições, cerimônias, espetáculos teatrais e ocasiões similares e que pretendiam produzir, por meios ocultos, efeitos impressionantes ou surpreendentes, mas apenas divertidos (Henry, 1998, p. 22).

 

            Esta mescla ou era de transição entre épocas tão díspares, até que se conhecesse todo o potencial do Renascimento(?), também teve obscuridades ou incertezas (aliás, muito apropriadas quando se trata de ciência):

Entretanto, o autor daquele livro seiscentista de ‘química’ empregava largamente uma simbologia de derivação alquimista, defendia a existência de uma real analogia entre as propriedades do arsênico e do antimônio e o comportamento dos animais (a serpente e o lobo) cujos nomes as substâncias eram simbolizadas: ou seja, identificava (como tipicamente ocorre dentro do ‘mundo mágico’) as propriedades e as características dos objetos usados como símbolos com as propriedades e as características dos objetos ou das coisas reais simbolizadas (Rossi, 1992, pp. 331-332 – grifos nossos).

 

            Esta análise — do livro Schema materialum pro laboratorio portabili sive Tripus Hermeticus fatidicus pandens oracula chymica, de Johann Joachim Becher (1689)— revela que há magia no Renascimento, que o próprio desencantamento do mundo (como racionalidade progressiva) não é um processo uno, homogêneo, onipresente. Na verdade, ainda que talvez seja o período mais fulgurante da história humana (maior ainda do que as civilizações grega e romana), o Renascimento foi um processo tortuoso, contraditório e extremamente beligerante. Para Galileu, de modo semelhante, só a razão (consciência dos fatos) leva à verdade, no debate entre ciência (moderna) e fé deve prevalecer o argumento lógico (principalmente porque se deve aplicar essa lógica às próprias Escrituras):

Eu acrescentaria somente que, se bem que as Escrituras não possam errar, os seus intérpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras [...] Pois nem toda afirmação da Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa como cada efeito da natureza [...] E quem quererá colocar um limite à capacidade do espírito humano? Quem ousará afirmar já ser conhecido tudo o que existe de cognoscível no mundo? (Galileu, 1988, pp. 18-19-20 – grifos nossos).

 

Entretanto, lhe permaneceu vivo esse espírito de desconfiança, ou melhor, de não apostasia diante do conhecido e do conhecimento. Afinal, como ensinou Galileu: Quem afirmará que já se conhece tudo o que possa ser conhecido no mundo?

De certo modo, pode-se reportar ao atomismo da Grécia clássica (Demócrito, Epicuro) para buscar suas raízes. Galileu se declarou epicurista[I]e isto o desvinculou da filosofia natural do Renascimento, abrindo as portas da natureza: “Este materialismo desmistificava os prestígios da natureza e podia ajudar fortemente os homens a tornarem-se dela” (Alquié, 1987, p. 61). Ou seja, o mecanismo procurou livrar o homem da ação dos poderes que não fossem científicos ou provindos da razão: “A doutrina que então explicava a matéria por meio de um arranjo mecânico de átomos destinava-se a desprender o homem de todos os poderes exteriores a si; nem as coisas cá de baixo nem os astros lá do alto podiam exercer influência sobre ele” (Alquié, 1987, p. 61). No entanto, havia uma diferença acentuada entre atomistas e mecanicistas: “Os mecanicistas do século XVII reclamam a liberdade que se obtém dominando a natureza; os atomistas antigos haviam buscado a que se alcança preservando-se da natureza” (Alquié, 1987, p. 61). Os mecanicistas eram intervencionistas, mas, além disso, o século XVII queria desvendar o mundo. De certo modo, diferentemente de muitos outros “colaboradores menores” (Torricelli, Cavendish, Mersenne), Descartes foi mais dogmático: “A dúvida permitiu encontrar as verdades primeiras a partir das quais se funda uma ciência certa” (Alquié, 1987, p. 63). Sua dúvida metódica trouxe-lhe rápidas certezas.

Por isso, também viram sucumbir a ideia do cosmos como “hierarquia ontológica fechada” — em benefício de um mundo aberto e em movimento, e segundo leis gerais e comuns. Por exemplo, para Descartes, a natureza é matéria: “A natureza nada inventa: há tão só fenômenos que aí aparecem, explicáveis por algumas leis simples e imutáveis” (Alquié, 1987, p. 66). Também o homem é matéria, e máquina em movimento — para Descartes, o homem é simples: “O corpo do animal e do homem, excetuada uma maior complexidade, não funciona de modo diferente de qualquer maquinaria fabricada pelos homens” (Alquié, 1987, p. 66). Relógios e órgãos são bem semelhantes, assim como nervos e tubos. A água que brota das fontes pode mover máquinas ou pronunciar palavras. As molas se armam como tendões. Contudo, é pelo pensamento que o homem compreende a máquina, e tanto o seu corpo quanto a mecânica do mundo. Mais especificamente, Descartes e Pascal fizeram assim uma distinção do espírito e da matéria[II]. Talvez ainda deva-se dizer que havia uma tendência à mecanização radical: “Pensando que o seu corpo é uma máquina integrada na grande máquina do universo, o homem assegura a sua dignidade” (Alquié, 1987, p. 67). Neste sentido, se ainda quisermos, os gregos também conheciam a arte dos “mecanismos autômatos” (Losano, 1992).

Observando-se retrospectivamente, no entanto, há uma forte ironia quanto aos princípios e resultados do mecanismo: “Foi como filosofia da natureza, como teoria geral do mundo, que ele se mostrou fecundo, dando ao homem um outro olhar sobre o universo, e não na sua aplicação ao pormenor dos fenômenos” (Alquié, 1987, p. 70). Sua superação também se deu de modo lento, em concomitância com o surgimento das ciências especializadas: o funcionalismo seria um caso típico. Enfim, a partir de então, o “conhece-te a ti mesmo” iria depender do conhecimento da física e da mecânica mais especificamente.

De que serviu a mecânica?

            O Homo faber potencializou a si mesmo com o uso de instrumentos achados ou fabricados; desde muito cedo, a técnica exerceu o papel de longa manus no trabalho de fabricação do próprio homem. Por isso, tal qual hoje em dia, no começo era a técnica, especialmente a mecânica. Desde o início, a mecânica apareceu para o homem associada à satisfação das necessidades e à tentativa de sobrevivência: “Deslocar pesados fardos e assegurar o equilíbrio de massas importantes foram manifestamente, desde a mais alta antiguidade, as duas preocupações principais da humanidade desejosa de desafiar a ação destruidora do tempo e de se superar a si mesma nas produções estáveis de civilização” (Alquié, 1987, p. 83). O complemento subsequente dessa intervenção, como sabemos, foi a “fabricação da cultura” e também aí a mecânica se associou ao mito do poder e da opulência e tão presente no deslocamento das toneladas que acionariam a força da “civilização do movimento[III]”: “O mito da torre de Babel corresponde a esta realidade. A abundância dos monumentos de todas as espécies, desde os enormes menires até aos zigurates e às pirâmides do Egito, é testemunho do acesso dos grupos humanos, em todos os pontos do globo e em tempos muito remotos, a técnicas de grandes construções” (Alquié, 1987, p. 83). Parte do método científico moderno, por sua vez, tem dívidas teóricas com os gregos clássicos e com instrumentos de uso prático: “No movimento derivado do Renascimento, o século XVI ocidental redescobre a obra teórica mais elaborada da ciência helênica, a de Arquimedes, e esta obra, centrada na estática, apresenta a regra de equilíbrio da alavanca reta a partir de considerações lógicas independentes da natureza da gravidade” (Alquié, 1987, p. 84). De modo complementar, a balística sempre esteve associada à agressividade natural do poder e à conquista, tornando-se imprescindíveis a direção e a precisão. Porém, a eficácia militar só se tornou possível com a chegada de outro profissional aos paióis e arsenais: o “matemático-engenheiro”. Ali se misturaram completamente o movimento, a razão e a violência (que serviriam ajustadamente ao poder nascente do Estado Moderno). A par disso, dois novos instrumentos aperfeiçoados nos séculos XV e XVI colaboraram com esta equação do poder: a biela-manivela e o volante. Teoricamente, a obra de Galileu, Discursos e Demonstrações Matemáticas em torno de Duas Novas Ciências, é um marco dessa alteração da visão de mundo, sobretudo porque trocou a estática pela mecânica (ou mecanismo).

Galileu e a verdade empírica

Galileu Galilei (1564-1642) tornou-se um mártir na defesa dos “direitos da razão”, mas acabou seus dias preso e sofrendo humilhações físicas e morais, após ser condenado pelo Santo Ofício em 1633. Curiosamente, a prova formal apresentada por ele sobre o movimento da Terra (o fluxo e o refluxo do mar) de nada valia. Entretanto, suas contribuições foram muito além, por exemplo, quando aperfeiçoou consideravelmente a luneta e “a apontou para o céu”. Também não viu o florescer da álgebra, mas o que havia feito pela matemática, há muito se antecipara a seu tempo: a língua da matemática permitiria ler o livro da natureza. Desde cedo, no entanto, teve facilidade para a música e o desenho, e notável habilidade para a construção de instrumentos. Sua formação posterior (o pai foi seu primeiro professor) lhe garantiu uma erudição humanista. Já adulto, estudara Dante e aí se inspirou na recusa à empáfia e à soberba: “A poesia burlesca que ele escreveu contra o uso da toga revela, já nesta época, o caráter militante da sua aversão às estruturas conservadoras que lesam a independência do espírito” (Alquié, 1987, p. 07). De outro modo, cientificamente, Galileu identificou melhor o heliocentrismo na madrugada do dia 07/01/1610. Assim, na carta que escreveu ao príncipe de Florença dizia do seu entusiasmo pela ciência inteiramente nova que lhe antevia: o movimento do mecanismo. Depois, como réplica a muitos ataques que sofrera, Galileu escreveu uma outra carta à grã-duquesa Cristina, afirmando que: “... a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se deve ir para o Céu, e não como vai o Céu” (Alquié, 1987, p. 12). Perto do fim, já condenado, Galileu manteve a dignidade de sua postura — em sua defesa, sempre se valeu de argumentos da pesquisa racional. Por fim, na França, sob a proteção do parlamento e de um laicizismo maior, suas obras puderam circular mais livremente. Mesmo cego, Galileu continuou pesquisando, dando provas do que é ser um clássico: “o verdadeiro sábio é aquele que, até o fim, volta a empreender tudo de novo” (Alquié, 1987, p. 15).

É interessante perceber como o embate pela razão estava presente em Galileu e ainda que, em outras palavras, fosse clara a preocupação de que primeiro era preciso relativizar a metafísica para só depois propor-se um método arrojado, metódico, racional, definível para qualquer um que o quisesse empregar. Em Galileu é expressa esta percepção de que a ignorância é o que aterroriza e não o conhecimento adquirido na verdadeira investigação empírica da realidade. Diante do inevitável conflito, Galileu faz uma aparente concessão à metafísica daqueles que se mantinham aferrados à interpretação dogmática das escrituras, mas isto não passava de outro simples exercício de sua inteligência e sagacidade superiores. Usava de um estratagema da razão contra a sedição que se poderia provocar, enfrentando-se a dogmática e a metafísica diretamente. Portanto, era mero artifício (e que levava o adversário a crer que fosse uma real concessão), para então chegar ao destino proposto:

Tendo eu, portanto, descoberto e logicamente demonstrado que o globo do Sol se movimenta em torno de si mesmo, fazendo uma inteira evolução em um mês lunar, aproximadamente na exata direção em que se processam todas as outras evoluções celestes; e sendo, ainda mais, muito provável e razoável que o Sol como instrumento e regente máximo da natureza, quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá a luz, mas também o movimento dos planetas que giram em torno dele; e se, conforme a tese de Copérnico atribuiu principalmente à Terra a evolução diurna; quem não vê que para deter todo o sistema bastou deter o Sol, como exatamente indicam as palavras do texto sagrado, sem alterar o restante das recíprocas relações dos planetas, alterando somente o espaço e o tempo da iluminação diurna? (Galileu, 1988, p. 24).

 

Vê-se aí qual era a real dimensão e a força da religião naquela época (e que Galileu quisera contornar, mesmo sem sucesso): era mais fácil deter o Sol do que reinterpretar as Escrituras ou não interpretá-las literalmente. Portanto, colocar o Sol em seu devido lugar foi a maior incumbência que se propôs esse movimento do racionalismo e do heliocentrismo. De qualquer forma, eram já os passos fundamentais de um presunçoso racionalismo que não faria nenhuma concessão.

Descartes e o racionalismo ou cartesianismo

O que é cartesianismo? É a típica maneira de “pensar racionalmente” (livre da metafísica, do apriori religioso) e teve início com René Descartes (1596-1650) — contemporâneo de Galileu Galilei (1564-1642), de Francis Bacon (1588-1679) e de Hobbes (1588-1679). A ideia mais simples que constitui o raciocínio lógico (aplicado à ciência) talvez se expresse pela chamada “dúvida metódica”:

Seu propósito central consistia em nada reconhecer como verdadeiro sem que, antes, tivesse passado previamente pela sua razão, pelo crivo de um procedimento metódico, baseado na dúvida [...] Nenhuma ideia merece o qualificativo de verdadeira, se não for objeto de um questionamento radical que permita chegar a princípios, proposições primeiras, que sejam, de fato, indubitáveis (Rosenfield, 2005, p. 07).

 

Obviamente que se tratava de uma tentativa de fugir dos preconceitos e dos apostolados não científicos, das ideologias até então dominantes. Por isso, Descartes foi o precursor do racionalismo[IV]:

E como se tratava de um “discurso do método”, a sua preocupação central residia no como conhecemos no como podemos ter acesso a ideias verdadeiras, que fossem imunes ao erro, quando perseguidas segundo um procedimento metódico, sistemático [...] Descartes propugnava por um pensamento jovem, aberto à crítica e aos questionamentos, capaz de exercer uma dívida cética e de resistir à mesma dúvida graças a uma razão aberta ao questionamento de seus próprios princípios [...] Moderno, ele defendia a ideia de que a razão deveria permear todos os domínios da vida humana, numa atividade libertadora, pois voltada contra as mais diversas formas de dogmatismo (Rosenfield, 2005, pp. 11-12 – grifos nossos).

 

            Era um “método virtuoso” que deveria dirigir as paixões, como “conceitos atuantes que pudéssemos estimar como morais”: “Estando a alma indissociavelmente unida ao corpo, não sendo ela como um ‘piloto alojado, em seu navio’, coloca-se a questão de como deve agir o homem virtuoso respondendo às paixões de seu corpo” (Rosenfield, 2005, p. 15). Como um racionalista, diferenciado de um Aristóteles e de um Cícero, Descartes apostava na razão e no bom senso — nossa “igualdade natural está pautada nesta racionalidade inata a todo ser humano”. Pensava o bom senso a partir de um “agir racional” [V], guiado pela razão e não refém das paixões:

Descartes considerava o bom senso ou a razão a coisa do mundo a ser melhor compartilhada, de tal maneira que a capacidade de discriminar o verdadeiro do falso torna todos os homens, independentemente de sexo, cor ou religião, iguais. A razão é formalmente igual em todos, o  que os distingue é a sua aplicação, pois essa deriva dos costumes, da religião, dos conhecimentos adquiridos, daquilo que ganhou o estatuto de verdade, embora não o seja. A razão iguala, as opiniões diferenciam os homens[VI][...] Eis porque Descartes procura estabelecer um método que possa ser seguido por todo e qualquer homem, independentemente de época, opinião, crença, costumes ou sexo [...] Um método voltado, então, para a busca da verdade e não da verossimilhança (Rosenfield, 2005, pp. 17-18).

 

O racionalismo, basicamente, estava organizado em três bases:

1) Psicológica – a razão é equiparada ao pensar e, portanto, é uma atividade cognoscível superior à emoção e à mera vontade; contraposto ao emocionalismo e ao voluntarismo, identifica-se com o intelectualismo.

2) Epistemológica ou Gnosiológica – o único órgão completamente desenvolvido ao pensar e, portanto, que efetue a atividade cognoscível, é o que dá provimento à razão; contrapõem-se ao empirismo e intuicionismo.

3) Metafísica – a realidade é de caráter racional (racionalismo metafísico); contrapõem-se ao realismo empírico e, com muita freqüência, ao irracionalismo.

Essas três correntes básicas do racionalismo subsistiram praticamente durante toda a Idade Média, mesmo que modificadas pelas diferentes abordagens dos problemas. Por exemplo, ser racionalista não significou forçosamente toda a realidade e, mais particularmente, se fosse transparente à razão humana(?). Neste caso, podia-se admitir o racionalismo como suscetível ou não de integrar-se ao sistema das verdades da fé. Ao mesmo tempo, o racionalismo integrou-se à Teoria do Conhecimento, principalmente quando se contrapunha ao empirismo. E sob esta marca ou visão de mundo predominante, é que Descartes construiu as premissas de seu método, sob quatro regras demarcadas e fixas:

 [1] A primeira regra estipula não aceitar nada como verdadeiro sem antes ter passado pelo crivo da razão [2] Segundo, tudo o que aparece como complexo deve ser dividido em tantas partes simples quanto possíveis, pois a razão, ao focar um problema perfeitamente delimitado, tem mais condições de resolvê-lo do que se encarar algo composto de várias maneiras [3] Terceiro, uma vez feito esse processo de simplificação, ele deve seguir um ordenamento, de modo que a remontagem para o composto ou complexo possa ser feita sem desvios, que prejudicariam a verdade almejada [4] Quarto, como esse procedimento pode ser retomado e repetido por qualquer um, ele deve dar lugar a tantas revisões quanto necessárias, de modo que as contribuições e objeções de todos possam ser levadas em consideração, pois ela é a condição mesma de estabelecimento da verdade (Rosenfield, 2005, pp. 21-22).

 

Aquele que não pensa profundamente, com dúvidas constantes e amparadas, metodicamente, não vive a experiência da totalidade humana. Em síntese: a dúvida estimula o raciocínio e assim se elabora a razão, para se revelar como bom senso: um agir pensado, metodicamente calculado[vii](“bom senso não é um agir com fé”, mas sim com a razão) é o que conduz à liberdade. Portanto, o desenvolvimento da razão deveria tornar a vida social melhor, e a ciência ajudaria nesse processo de hominização.

Empirismo

A expressão empirismo deriva do grego e traduz a experiência proporcionada pelos órgãos dos sentidos ou a vivência decorrente dos sentimentos, afeições, emoções acumuladas em sua memória. Por isso, também é considerado como uma teoria de caráter epistemológico, pois é relativo à natureza do conhecimento. Há uma tendência a proporcionar explicações genéticas do conhecimento, além do uso recorrente de termos como sensação, impressão, ideia. Há inúmeras linhas de interpretação, mas o precursor teria sido Bacon, com a ideia de que o experimentalismo científico deveria trazer benefícios à vida prática. Neste afã, estudou metalurgia, química, geologia e, acima de tudo, desenvolveu grande entusiasmo pela técnica (veja-se Novum Organum). Formou-se em direito e também foi literato (veja-se Nova Atlântida). Buscava o saber como um todo coerente, mas o filósofo natural deveria ser como uma abelha: um ser ativo, fecundo e à procura de resultados práticos. Afirmava em todas as obras que saber é poder. O real interesse do saber está em conquistar a natureza: o saber não tem valor em si mesmo (ensimesmado, estocado como memorização, retórica). Seu utilitarismo reconhecia o saber em sua totalidade e não apenas em aplicações imediatas, desejando que servisse à humanidade:

XXIX. Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o sentimento e não as coisas [...] XXXVI. Resta-nos um único e simples método para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas [...] A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos [...] XLI. Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas [...] XLII. Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos [...] XCV. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere [...] Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional [...] XCIX. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a obra particular [...] CIV. Muito se poderá esperar das ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais [...] CV. Mas a indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito dos casos positivos [...] Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como objeção, se intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural ou também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências [...] CXXIX. Vale também recordar a força, a virtude e as consequências das coisas descobertas [...] Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação (Bacon, 2005, pp. 38-97).

 

Bacon não poderia ter concluído seu pensamento de um modo mais claro, quando pensamos que foi um dos mais dignitários homens do Renascimento – aliando arte, política, técnica e ciência. Kant reagiu a esta posição, porque embora todo conhecimento comece com a experiência, nem todo conhecimento resultante procede dessa mesma experiência.

Realismo

            Em seguida, o realismo também se avolumaria como método e rigor científico, à medida que a razão e a verdade não poderiam estar, é claro, a não ser na própria realidade. Agora, a questão estava em saber como escarafunchar esta realidade a fim de que as aparências se discrepassem em virtude das ranhuras elucidativas. Contudo, em resumo, por realismo, temos que:

1) “Realismo” é o nome da atitude que se atém aos fatos “tal como são” sem pretender sobrepor-lhes interpretações que os falseiam ou sem aspirar a violentá-los por meio dos próprios desejos. No primeiro caso o realismo equivale a uma forma de positivismo [...] já que os fatos de que se fala aqui são concebidos como “fatos positivos” [...] No segundo caso temos uma atitude prática [...] O chamado “realismo político” (Realpolitik) pertence a esse realismo prático. 2) “Realismo” designa uma das posições adotadas na questão dos universais [...] a que sustenta que os universais existem realiter ou que universalia sunt realia. 3) “Realismo” é o nome que se dá a uma posição adotada na teoria do conhecimento ou na metafísica. Em ambos os casos, o realismo não se opõe ao nominalismo, mas ao idealismo [...] O realismo ingênuo supõe que o conhecimento é uma reprodução exata (uma “cópia fotográfica”) da realidade. O realismo científico, empírico ou crítico adverte que não se pode simplesmente equiparar o percebido com o verdadeiramente conhecido, e que é preciso submeter o dado a exame e ver (para depois levá-lo em conta quando forem formulados juízos definitivos) o que há no conhecer que não é mera reprodução (Mora, 2001, pp. 2471-2473).

 

Como diria Giambattista Vico (1989), o restaurador do racionalismo na modernidade clássica (1668-1744), da rudeza nasce da ignorância, pois quem não sabe sempre duvida, citando em latim a lei das XII Tábuas: Si quis nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto.



[I]Marx também fez sua tese de doutorado com base em Epicuro.

[II]Durante muito tempo, as Ciências Cognitivas também debateram a “dicotomia mente-cérebro”.

[III]Talvez o que tenha faltado a alguns aborígenes na sua jornada civilizatória tenha sido a descoberta ou o uso mais sistemático do “movimento”.

[IV]O mesmo tipo de pensamento que havia levado os navegadores a questionarem a veracidade de a Terra ser chata e dessa “dúvida” terem tirado a certeza da navegação ultramarina, após a centralização de Portugal.

[V]Hoje, esse “agir racional” seria oposto a todo pensamento dogmático , refratário às críticas, e diga-se ele de si mesmo ser consciente ou não, como ocorre quase sempre com a ideologia.

[VI]Foi este o sentido mais forte do “penso, logo existo”, resgatado por Kant e depois por Rousseau: a potência racional (Canivez, 1991).

[VII]A ideia de virtù como ato de um arqueiro que busca seu alvo, não é diferente disto.

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