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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Ordem Jurídica Democrática


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

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Como ciência social voltada ao estudo da realidade entre os homens, mais do que sobre as formalidades institucionais, A Antropologia ganha destaque na análise da ordem jurídica. Mais do que força e coercibilidade, a Antropologia Jurídica terá por objeto estudar o direito como manifestação cultural do homem. A forte presença dos costumes e da oralidade inclina esta ciência social à análise da ordem jurídica e não exatamente à prática jurídica, porque aparentemente se confundem.

Em sentido inicial, a ordem jurídica está apontada à legitimidade que se requer ao Poder Político, sobretudo no sentido de conter o poder e de direcioná-lo diante das finalidades atribuídas pela sociedade. Este teria sido o sentido indicado pelo jurista ao definir o Estado como sendo a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território (Dallari, p. 122). Na definição estariam contidas as noções de poder e de soberania em referência à ordem jurídica, bem como a condição evidentemente política do Estado, vinculando-se a um povo e a um determinado território. Este é um ideal platônico e aristotélico frente às finalidades do Estado (como teleologia). É o sentido mais atualizado de uma cidadania democrática que prosperou no pós-nazismo, como enfrentamento das piores formas de perversidade e autocracia. Como ensinou Konrad Hesse, trata-se de impor garantias institucionais que contenham o próprio direito que não seja democrático; trata-se de obstruir qualquer possibilidade política de que o direito não seja democrático:

Colaboração ordenada, procedimentalmente ordenada, torna ordem jurídica necessária, e, precisamente, não uma discricional, senão uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica [...] A coletividade precisa da sua, porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana existente em si e por si, ou nas objetivações de uma “ordem de valores” encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada [...] Ordem jurídica, nesse sentido amplo, não está dada como ordem por causa da ordem, senão como ordem determinada materialmente, “exata” e, por isso, legítima [...] Para poder determinar conduta humana, esse direito histórico carece, fundamentalmente, da “aceitação” que, por sua vez, assenta-se na concórdia fundamental sobre dação dos conteúdosda ordem jurídica – também lá onde tal aceitação somente contém o reconhecimento da obrigatoriedade de normalizações jurídicas, não, porém, aprovação livre para elas(Hesse, 1998, p. 35-36 – grifos nossos).

 

Para o jurista português, o direito deve ser uma salvaguarda do Princípio Democrático e, como ordem jurídica, o próprio direito democrático deve ser entendido como defesa da democracia – para nós brasileiros, seria uma cláusula pétrea que não se abalaria senão em golpe constitucional:

O princípio democrático, constitucionalmente consagrado, é mais do que um método ou técnica de os governados escolherem os governantes, pois como princípio normativo, considerado nos seus vários aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, ele aspira a tornar-se impulso dirigente de uma sociedade [...] O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática de democracia. Antes de mais, é um processo de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e ativa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social (Canotilho, s.d, p. 286-287 - grifos nossos).

 

Na modernidade, a ordem jurídica traz uma coordenação objetiva e ampla das condições sociais e econômicas no mais amplo âmbito institucional. Neste sentido, a ordem jurídica é uma “ordem determinada materialmente”, exata, legítima. Portanto, a aceitação da ordem jurídica democrática se assenta na “concórdia fundamental sobre a dação dos conteúdos da ordem jurídica”. Assim, configura-se o reconhecimento da obrigatoriedade de normalização jurídica – submetendo-se o Estado e os indivíduos à mesma ordem jurídica (Hesse, 1998).

A natureza política da ordem jurídica

Uma das características mais atuais e atuantes do Poder Constituinte originário é a força política de inicializar, inaugurar uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição anterior, bem como as leis infraconstitucionais que se encontram em desacordo com a nova Constituição. O Poder Constituinte pode se instaurar pela violência do processo revolucionário ou pelo amadurecimento institucional que resulta na necessidade de se deflagrar uma ampla revisão constitucional, como tivemos em 1986 no Brasil. Em todo caso, Kant (1990) é claro quanto à ideia de que a paz é um preparativo para a guerra, ainda que seja uma guerra jurídica contra os atentados aos direitos democráticos. Assim como, para o liberalismo clássico, este direito soa ao soberano como uma advertência para a irrupção da guerra protagonizada pela insatisfação na condução dos negócios públicos. Isto é, o resultado final é que pode haver reforma ou revolução e há a tendência de termos uma nova ordem jurídica.

Seguindo-se a metodologia proposta, por reforma do Estado se entende o desenvolvimento natural e progressivo das ideias e dos valores sociais: há uma institucionalização gradual. Já por revolução compreende-se a destruição radical da ordem jurídica por meios ilegais (porque são usados procedimentos não previstos na ordem jurídica anterior e que acabara de ser removida). Nos dois casos, entretanto, são traços comuns: legitimidade; utilidade; proporcionalidade. Bem como ainda ocorre um breve momento de insegurança jurídica e de onde advém uma clara noção da necessidade da “nova” ordem jurídica. Neste sentido, para que se afirme outra forma jurídica, deve haver contenção de qualquer vingança pessoal, racial, social etc. Vendeta. São elementos do conceito de revolução: 1. novidade[2]; 2. começo[3]; 3. violência[4]; 4. irresistibilidade[5](profundidade[6]; radicalidade[7]; antagonismo[8];contradição[9]). E, de certo modo, todos esses componentes da força política deverão estar expressos na Constituição que se construa a seguir, bem como deve marcar o eixo político inserido na ordem jurídica construída, com a ressalva, é óbvio, de que a irrupção de força política deverá estar totalmente absorvida pela noção de ordem jurídica. À força política interpõe-se a estabilidade jurídica.

História e Antropologia

Historicamente, pode-se ver Maquiavel dentro da história como parte de uma nova era do materialismo e que passaria a vigorar entre o homem e o cosmos, entre o poder atemporal e a instauração da ordem jurídica pelo Estado Moderno:

Sem a mediação das corporações, empresários e empregados situam-se como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajustamento à realidade passam a ser as condições do mercado, a ordem jurídica imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus companheiros de interesse [...] O sucesso ou o fracasso nessa nova luta dependeria - segundo Maquiavel, o introdutor da ciência política precisamente nesse momento - de quatro fatores básicos: acaso, engenho, astúcia e riqueza (Sevcenko, 1994, pp. 11-12 – grifos nossos).

 

Por volta do fim da Idade Média, que os historiadores costumam fixar no ano de 1453, data da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, entramos no Renascimento e surgiu na Europa o Estado Moderno. Essa nova entidade diferia das estruturas de poder que a antecederam pelo exercício da soberania, que se desenvolveu no momento em que certos reis e príncipes, com o apoio da burguesia e de parte da aristocracia feudal, subtraíram as competências normativas dos vários centros de poder existentes na Idade Média, eliminando, assim, a poliarquia que caracterizava a ordem política medieval. O Estado passou a constituir então a summa potestas relativamente aos demais poderes que atuavam em seu território. Depois de adquirir a supremacia no âmbito interno, o Estado livrou-se também das limitações que os governantes medievais sofriam na condução de suas relações exteriores, representadas pelas ingerências da Igreja Católica. A lei, que não se limita ao fato, não serve de elemento de diferenciação. Mas, será retomando interpretação de Von Ihering que Aderson de Menezes (1998) sugerirá que na Teoria da Autolimitação, a partir do século XIX, já se encontra a matriz doutrinária condicionante das cláusulas pétreas. Vemos em sua análise que o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio e afirmar a ordem jurídica como anteposto da ordem pública. Nesta convivência entre direito e política, ainda é necessário ressaltar as gerações de direitos políticos (geração positiva). Vejamos:

1. direito de resistência(no caso de o soberano atentar contra o povo);

2.direito de petição(para inquirir abuso de poder ou requerer novos direitos junto ao poder soberano);

3.direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios);

4.direito de voto (para não ser censitário);

5.direito de associação (em partidos, sindicatos);

6.sufrágio universal (em que entre 80 e 90% da população têm condições de intervir nos rumos do Estado);

7. direito de assembleia (democracia plebiscitária: decisão política, com aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por meio de referendos e plebiscitos);

8.direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular como controle do poder político).

 

De acordo com José Afonso da Silva (1991), são três as finalidades do Estado de Direito, com destacada garantia do(a): império das leis; divisão dos poderes; enunciado e garantia de direitos individuais[10]. Para o sentido atual, podem-se acrescentar mais três finalidades de ordem jurídica, além da ampla defesa das regras democráticas, e seriam: o enunciado e garantia da dignidade da pessoa humana; enunciado e garantia dos direitos sociais; fruição e efetivação dos direitos público-subjetivos. Observe-se, porém, que estes também constituem princípios do Estado Democrático de Direito. Para melhor visualizar o sentido expresso, tome-se como exemplo a Constituição italiana:

Todos os cidadãos têm paridade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana[11]e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país (Bobbio, 1995, p. 121 – grifos nossos).

 

Se no início a ordem jurídica está atrelada ao arbítrio, desde a primeira revolução jurídica dos direitos humanos, com a proclamação dos direitos civis, o poder abusivo do Estado passou a ser regulado pela ação política popular.

Estado Judicial e Estado de Direito

Das concepções deformadas do conceito de Estado de Direito derivou a concepção/aplicação do Estado Judicial, como Estado que deve prover a moral oficial ao povo e, por sua vez, nada tem a ver com a finalidade jurídica do Estado em prover a justiça:

Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um “Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (Silva, 1991, p.100).

 

Diante da soberania, contudo, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto:

Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11).

Qual a melhor forma de se evitar o desvio autocrático do direito? Parece ser a defesa do Estado de Direito e da própria democracia. Na moderna sociedade democrática, a ordem jurídica é reduto da democracia e, mesmo não sendo um ativista da cidadania popular, é o que já nos apontava Del Vecchio:

Quando este processo nos fatos e, sobretudo, nas consciências está bastante adiantado e amadurecido, torna-se fácil também no aspecto formal o estabelecimento da nova ordem pela qual o Estado instaura a sua soberania sobre as várias organizações. Estas recebem, então, o seu cunho e tornam-se seus instrumentos no exercício das dificuldades normativas que lhes são reconhecidas ou atribuídas (Vecchio, 2005, p.34-35).

 

            Desde o pensamento jurídico marcado pela defesa do Estado de Direito, entre os séculos XIX e XX, a ordem jurídica surgiria como retenção do Poder Político. A ordem jurídica como retenção do arbítrio e redenção do direito, no entanto, ganhou amplo destaque no pós-Segunda Guerra Mundial e para isto era preciso demarcar claramente o que é o Estado de Direito.

A revisão constitucional mundial

Em 1941, em cheio na 2ª Grande Guerra, o famoso jurista Hans Kelsen realizou palestras nos EUA chamando a atenção para a natureza do Direito Internacional e o problema da paz internacional. Ali formulou questões que podem nos guiar:

Como pode se organizar de uma maneira satisfatória a vida econômica dentro da comunidade nacional, o Estado, sem abolir a liberdade pessoal do indivíduo? Como pode se impedir a guerra ou qualquer outro uso da força na comunidade internacional, nas relações entre os Estados? (Kelsen, 1986, p. 49).

 

            Kelsen colocava a questão nesses termos, inicialmente, porque também falava da ambição de construir um Estado Mundial, unindo o maior número possível de Estados-membros dentro de si. No Estado Mundial concentraria todos os meios de poder, submetendo todos a um único governo central e os regularia por meio de uma mesma ordem jurídica. A partir de 1946, a ONU não seria capaz de tal feito, mesmo tendo-se proclamado a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. O jurista alemão, contudo, sabia da ambição que se escondia na utopia e via no máximo, com sorte, a efetivação de um Estado Federal Descentralizado regido por um direito comum e pela comunidade internacional. Para Kelsen, desde logo se colocava a questão jurídica de se saber se este Direito Internacional teria ou não a mesma validade entre os contratantes, que têm os seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. A ordem jurídica internacional substituiria a soberania interna? Desse modo, a centralização dos Estados, em uma confederação desse tipo, não poderia ser tal que absorvesse todos os demais membros em um só organismo (como fagocitose) e que transformasse o Direito Internacional em um direito de ordem interna. Por isso, o jurista indaga acerca do caráter jurídico que envolve os compostos do Direito Internacional e assim nos diz:

O preceito jurídico [...] é um juízo hipotético mediante o qual se fixa um ato coercitivo, quer dizer, uma intervenção pela força na esfera de interesses de um sujeito, como consequência de certa conduta desde. A medida coercitiva, que institui o preceito jurídico como consequência, é a sanção; a conduta do sujeito estabelecida como a condição é um ato ilegal [...] O ato coativo, portanto, é ou bem um comportamento ilegal, o delito, que constitui uma condição da sanção — e, portanto, está proibido —, ou bem é uma sanção, a consequência da ilegalidade ou do delito — e, portanto, está permitido [...] O Direito internacional será Direito neste sentido se tão-só permitir uma medida coercitiva [...] Quer dizer, podemos considerá-lo como Direito se a medida coativa que se levou a cabo como reação contra o delito ou a ilegalidade pode se interpretar como uma reação da comunidade jurídica internacional (Kelsen, 1986, p. 52 – livre tradução).

 

Desse modo, concluindo esta parte da argumentação, Hans Kelsen ainda dirá que o Direito Internacional só terá eficácia (como se fora o direito nacional) se à violação do direito se impuser uma sanção, de forma reativa e na mesma medida: “... juridicamente, uma determinada conduta de um Estado pode ser considerada como delito tão-só se o Direito internacional vincula a esta conduta uma sanção dirigida contra este Estado” (Kelsen, 1986, p. 54). Também não deixa de ser interessante a relevância jurídica atribuída, ou seja, elevando a status de preceito jurídico (como princípio basilar) o nexo entre direito/sanção/garantia. Dessa forma, a própria sanção aplicada ao delito internacional (como infração clara de um direito, de um dos contratantes) deveria ser recoberta de uma garantia de eficácia — só assim a própria sanção seria eficiente: “A sanção específica de uma ordem jurídica somente pode ser uma medida coativa, estabelecida por esta ordem, para o caso de que uma obrigação seja violada, e, assim se estabelece uma obrigação substituta, então, para o caso de que também esta seja violada” (Kelsen, 1986, p. 55). Depois, como se sabe, a ONU (1946) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) pretendeu impor-se como um modelo de Estado-Nação. No período, triplicaram os movimentos de descolonizaçãoe de reconhecimento da soberania de novos Estados. Mas, um pouco antes disso, a fim de se configurar como independente, desde 1933, o Estado tem de obedecer ao artigo 1º da chamada Convenção de Montevidéu[12]; o que significa que a entidade tem de apresentar as seguintes qualificações: a) uma população permanente; b) um território definido; c) governo; e, d) capacidade para manter relações com os outros Estados.

O revigoramento constitucional no pós-Segunda Guerra Mundial

            Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os efeitos horripilantes do holocausto (incluindo-se a chamada “revolução legal” de Hitler, que legaliza o descalabro), uma possibilidade democrática real atentaria para se tentar uma síntese política, a partir da constitucionalização dos conflitos sociais como equivalente do esforço pela maior efetividade democrática da Constituição e, assim, da política e do Estado. Desse modo, a ordem jurídica democrática do pós-Segunda Guerra primaria pela síntese constitucional que não esteriliza a política ou as vontades dos participantes da vida pública. E devendo, então, como ensina Konrad Hesse assegurar que:

Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa (1991, p. 21).

 

            A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo e não monismo jurídico e político (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único), adotando o ensino jurídico a vertente em que o direito capta eficientemente a realidade e a dinâmica societária. Nessa trilha, porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais (assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito. Trata-se, em outras palavras, de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos individuais fundamentais (co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos. Por fim, da auto regulação da política e da democratização do direito (Estado de Direito Democrático) podemos extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o Telos, a finalidade projetiva da justiça social).

No plano interno, constata-se que os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ou suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas as hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Neste sentido, os instrumentos internacionais de direitos humanos invocam a redefinição da cidadania, a partir da incorporação, ampliação e fortalecimento de direitos e garantias voltadas à proteção dos direitos humanos, a serem tutelados perante as instâncias nacionais e internacionais. É fundamental a interação entre o catálogo de direitos nacionalmente previstos e as conquistas de direitos internacionais, com vistas a assegurar a mais efetiva proteção aos direitos humanos. Impõe-se ainda ao Estado o dever de harmonizar a sua ordem jurídica interna à luz dos parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos – parâmetros estes livremente acolhidos pelos Estados. Do que ainda decorre a necessidade de se definir, como conceito mais abrangente, o Estado Democrático de Direito. Neste constructo jurídico, o Estado Moderno na sua atual fase de transformação incorporou à ideia de ordem jurídica a proteção e as garantias de fruição de direitos fundamentais, quer sejam individuais, quer sejam sociais, coletivos e difusos.

Estado Democrático de Direito Social

Assim, trata-se de um Estado de legitimidade justa ou Estado de Justiça Material, fundante de uma sociedade democrática e capaz de instaurar um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos de ratificação do controle das decisões políticas e na repartição dos rendimentos da produção social, cultural, econômica e educacional (cidadania democrática)[13], sob a salvaguarda institucional de que a ordem jurídica sempre se pautará pela efetivação dos direitos fundamentais (individuais e sociais). Esse novo modelo de Estado se impõe porque o Estado de Direito, quer como liberal quer como social, necessariamente não se caracteriza como democrático. Pois a democracia funde-se no princípio da soberania popular, ou seja, na participação ativa do povo na coisa pública (res pública), na República, e não só na formação das instituições representativas por meio do voto (ainda que direto, livre e secreto). O que, historicamente, deveria impor ao Estado Democrático de Direito a tarefa de corrigir e assegurar a justiça social e garantir a autêntica participação do povo no processo político (civitatis activae). Neste contexto, significa dizer que a lei não deve ser apenas instrumento de arbitragem, mas precisa influir necessariamente na realidade social, já que esta vive em constante mudança, não sendo, portanto, estática. Dado o pressuposto da democracia ser o diferencial nesse modelo de Estado, cabe também indicar o que entendemos por cidadania democrática. É o que se denominou de a ética como Justiça:

A ordem jurídica será mais estável e eficiente quando animada pelas qualidades humanas, afetivas, psicológicas e morais [...] Viver eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo tempo, a subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídico-social (justiça como princípio ordenador da sociedade) (Pegoraro, 1995, pp. 10-11 – grifos nossos).

 

Na combinação entre a leitura histórica e o conhecimento jurídico que veio se firmando, temos que a progressiva incursão do direito pela política resultou no fortalecimento de uma ordem jurídica positiva, mas socialmente inclusiva e restritiva dos recursos abusivos do Poder Político – aliás, de certo modo, denota a conversão do Poder Político em Poder Público:

a)O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) o soberano e, portanto, o Estado, era indemandável[14]pelo indivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong[15]. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos (Sundfeld, 2004, p. 34).

 

            Na atualidade do que já se convencionou chamar de Estado Pós-Moderno, em que o povo legitima a ordem jurídica, o Estado-Força, em que se aplica indiscriminadamente a força, a coerção, a violência institucional não são mais sinônimos da segurança pública. É a superação do momento de estática que caracteriza o Estado jus puniendi. É um tipo de Estado-Inteligente, pois as ações políticas e as medidas institucionais devem ser as mais ajustadas às necessidades; juridicamente, haveria um equilíbrio entre meios e fins, entre a celeridade político-social e a segurança jurídica. O sistema político-institucional, como entrada (input) e saída (output) de um amplo sistema que comunica e relaciona necessidades e oportunidades, meios e recursos, ainda nos coloca duas questões complementares: há adesão popular ao modelo político? O desempenho do Estado reflete a possibilidade de influência dos cidadãos? A primeira questão traz a armadilha da política brasileira, ao se confundir Estado e Governo. Com esta confusão, não é ocasional que alguns governos adotem o Estado para si, corrompendo a coisa pública em “coisa nossa” (cosa mostra), utilizandoo Estado para manter e inflar o poder do seu governo. A segunda questão expressa o populismo como resposta política inerente à dominação tradicional, e isso decorre da confusão entre Estado e Governo.

A ordem jurídica atual institui-se entre direito e democracia, porque o sistema de direitos (a) institui os cidadãos simultaneamente como autores e destinatários da ordem jurídica e (b) significa a institucionalização das condições gerais necessárias para o desenvolvimento de processos democráticos no direito e na política. Se os cidadãos não são somente destinatários mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos em atividade administrativa legítima, sendo o direito a linguagem que pode transformar o poder comunicativo em poder político. Para que a participação dos cidadãos na construção da ordem jurídica faça a diferença, as condições de comunicação permitindo testar a legitimidade das normas de direito por parte de organizações da sociedade civil e da opinião pública não devem ser distorcidas nem manipuladas (Schumacher, 2003). Contudo, uma vez que a ordem jurídica democrática está enraizada no “coração” e nas práticas sociais, pode-se ainda ver que o Poder Político recupera e se mantém mais vivo com o livre fluxo do Poder Social.

O que fazer?

Quando se trata da ordem jurídica democrática, vale o preceito religioso: olhai e vigiai. Não dá para relaxar a guarda. A reconstrução do Estado de Direito e a afirmação do humanismo jurídico, atualmente, sofrem incursões que deslegitimam a ordem jurídica. Em nome da Razão de Estado, alicerçada na segurança pública, o próprio Estado de Direito apresenta inversões nas tutelas oferecidas historicamente pelos mecanismos de autocontrole. Então, o que fazer? Há paradigmas ético-jurídicos do status quo que ainda precisam ser superados, como:

  • Justificação de meros interesses liberal-individualistas.
  • Estrutura estatal centralizada e de classe.
  • Práticas jurídicas hegemônicas.
  • Cultura étnica: eurocentrismo liberal-individualista.
  • Negação do humanismo social-includente.
  • Individualismo como expressão da moralidade burguesa; ideologia do indivíduo como centro autônomo das escolhas econômicas e como porta-voz das relações sociais.
  • Racionalidade jurídica em que o indivíduo é um valor absoluto.
  • Estatutos jurídicos proclamadores da vontade individual acima e independente da realidade social.
  • Formalismo retórico da igualdade formal que subverte a verdade material.
  • Perspectiva de que o contrato é superior ao direito como fonte jurídica vinculante.
  • Vaga noção de que a lei é superior ao Direito – este como fonte jurídica vinculativa ao/do social.
  • Conceito de sujeito de direito individual (abstrato, formalista, ideológico) como ente moral, livre e igual – sobretudo diante das relações de mercado em que se vende a autonomia como se vende a força de trabalho.
  • Princípio-fim do Direito se ainda restrito e limítrofe à segurança e certeza jurídica.
  • Noção de que a segurança jurídica limita-se exclusivamente pela manutenção da ordem jurídica.

 

Em defesa da democracia

Pois bem, levando-se em conta que esses itens possam/devam ser superados pela ordem jurídica efetivamente democrática, uma das principais atribuições da ordem jurídica, no sentido moderno de que se trata incessantemente de proteger e aprofundar a cidadania como prática social e democrática, é regulamentar o direito político. Como se sabe, a primeira geração de direitos humanos foi “negativa”, pois era uma imposição de regra obrigatória ao Estado de não-fazer; proibindo-se, portanto, o próprio Estado de legislar contra a prática política popular. Além de se ter no Estado uma proteção à democracia. Neste sentido, a ordem jurídica é uma regra de proteção e deve assegurar o aprofundamento da cidadania democrática. Ocorre, porém, que é preciso proteger os cidadãos de ingerências irregulares em sua manifestação política: uma dessas restrições deve evitar que haja uma pressão desmedida sobre o direito de livre expressão política. Assim, vejamos quando para a lei “o menos vale mais”, quando a lei atende à liberdade, restringindo direitos de liberdade, mas para sejam assegurados no futuro imediato:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

(...)

§ 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos[16](CF/88 - grifos nossos).

 

A proibição dos militares conscritos de se alistarem estaria nessa abordagem dos direitos políticos, porém, receberia duas orientações diferentes: 1) restringir o direito do militar conscrito alistar-se eleitoralmente é uma proteção de consciência, a fim de que não sejam influenciados por seus superiores, em claro voto de cabresto; 2):

No cumprimento dos deveres constitucionais, o processo eleitoral exige que os membros das Forças Armadas, submetidos aos rígidos preceitos de obediência, hierarquia e disciplina, fiquem em relativa prontidão com o escopo de exercer as atribuições relativas à defesa nacional e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (artigo 142, caput, CF), inclusive para atender a requisição do Tribunal Superior Eleitoral por intermédio do Supremo Tribunal Federal. Em decorrência, os militares deverão, no dia das eleições, permanecer aquartelados e, de antemão, são dispensados do serviço na Justiça Eleitoral conforme prescreve o artigo 75 do Estatuto dos Militares[17](grifos nossos).

 

            Em todo caso, nas duas hipóteses, trata-se de restringir os direitos políticos de alguns, temporariamente, a fim de que todo o processo eleitoral receba a melhor condecoração político-eleitoral. Ou seja, é necessário proteger o direito de voto como essência da liberdade política e, neste caso, trata-se de algo congênere esta restrição ao militar conscrito de exercer o direito de voto. Porque, mais ainda do que a ingerência exercida pelos pais sobre os filhos, será a possibilidade de o superior cobrar/influenciar a livre escolha política do soldado. Assim, a restrição do direito de voto do soldado se alinha à natureza dos direitos (civis) de primeira geração. É um direito negativo, como impedimento de que o agente que representa o Estado (o militar) execute ações negativas à cidadania e aos direitos humanos. A ordem jurídica democrática protege a cidadania e impede a grave violação contra os direitos humanos, a começar da defesa do direito à liberdade. Dessa forma, diz-se que a ordem jurídica é a porta de entrada para o Estado Democrático de Direito Social, como o conjunto das instituições regulares que sustentam a fase atual do Estado Moderno. Portanto, não se admite outra natureza política que não seja a da Justiça Social no interior da ordem jurídica democrática.

 

Bibliografia

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CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Edição. Lisboa-Portugal : Almedina, s/d.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 31ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012.

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