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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O que é o Estado?


A corrente majoritária no mundo jurídico associa o Estado à ideologia do Bem Comum, sacramentando-se com a definição trazida pela encíclica Pacem in Terris, em 1963. O senso comum também referenda este pensamento, como diriam nossas mães: “O Estado é um conjunto de pensamentos e ideais mais ou menos iguais dos que lutam por uma vida melhor para todos”. A lógica não traria conclusão diferente, afinal, por que razão o homem criaria uma instituição tão poderosa quanto o Estado para lhe fazer o Mal?

Todavia, a análise das relações de poder não demonstra exatamente isso, pois há classes sociais e grupos de interesses que instrumentalizam o Estado, levando-o a agir de acordo com motivações menos nobres. O Estado brasileiro, por exemplo, apesar dos avanços institucionais, normativos e políticos, ainda reflete o passado patrimonialista. O Estado Patrimonial guarda como segrego de alcova o fato de que as impurezas da cultura das elites dominantes são estendidas a todo o conjunto da cultura nacional.

Historicamente, o Estado remonta à Suméria, atual Iraque (7000 a.C.). As primeiras formas de Estado, o chamado Estado Antigo, eram baseadas exatamente na exploração da explosão da violência, a fim da conquista e da dominação (com penalidades igualmente lastreadas em repressão e violência)[1].

Para a antiga Filosofia do Estado, Aristóteles e Platão, o Estado surge como a melhor forma para se organizar a sociedade; como organização política para a justiça. Porém, alguns sofistas acreditavam ser o Estado apenas “o interesse do mais forte”, encontrando-se o Estado basicamente ligado ao poder. Em todo caso, mesmo que se ocupasse de grupos de interesse específicos, o Estado não seria uma oligarquia – acreditavam os gregos –, uma vez que vários grupos em disputa equilibrariam a balança da justiça.

O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[2], isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com uma vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).

Como definiu Hannah Arendt, de modo preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[3], isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação.

Na Idade Média, o Estado passou a ser tido como instância de poder inferior à Igreja; sendo algo frequentemente Mau (Santo Agostinho) ou como mero reflexo da Igreja (Tomás de Aquino). Do Renascimento em diante, como status (Maquiavel[4]) e contrato (Hobbes), o Estado se separou gradativamente da Igreja: a soberania temporal[5]se afirmou na transição para o primado do Estado (laico).

Com Spinoza, o Estado sintetiza a liberdade, “a comunidade de homens livres, mas livres porque vivem no Estado segundo o decreto comum”. Neste sentido, o Estado é o equilíbrio entre religiões, ideologias, classes e indivíduos. Na Ilustração, o Estado é o caminho da razão e a libertação do obscurantismo (despotismo esclarecido). Já o romantismo alemão acabou por associar o Estado à Nação, em que o Estado encarnaria o próprio espírito nacional – e como se não houvesse, por exemplo, contradições entre a sociedade e a família (Mora, 2001). Em todo caso, surgiram noções, ideais, elementos e instituições que perduram até hoje:

  • O Estado é status, força que garante a permanência, estabilidade, durabilidade da organização social (Maquiavel)
  • O Estado e suas leis correspondem ao pacto ou contrato anterior (Hobbes)
  • O Estado sacramenta a “vontade geral” (Rousseau)
  • Como componente do Estado, o povo não é um meio político (Kant)
  • O fortalecimento da moral coletiva é o objeto do Estado, como espírito público (Hegel)
  • O Estado é “a organização da sociedade que garante a liberdade” (Spinoza)
  • O dever fundamental é garantir o cumprimento dos direitos fundamentais (constitucionalismo)

 

Para a Sociologia Política do Estado, o Poder Político tem cada vez mais sido relacionado ao capital, como exemplo de sua temporalidade. Contudo, o Estado pode ser tido como uma instituição geral que congrega muitos elementos e outras instituições-parte:

  1. Instituições de suporte dos meios de violência e de COERÇÃO
  2. Suas instituições são geograficamente delimitadas, como SOCIEDADE
  3. A institucionalização das normas sociais e das regras jurídicas gera uma CULTURA POLÍTICA compartilhável

 

Neste leque, o Estado é definido como organização social que produz cultura política por meio da coerção. No entanto, configura-se um paradoxo insolúvel, entre liberdade e coesão social: “A teoria tradicional preocupava-se com o alcance dos poderes discricionários do Estado” (Outhwaite & Bottomore, 1996,p. 258). Mas, a realidade obrigou a uma segunda concepção “infra-estrutural”. Isto é, o poder do Estado é medido a partir de sua capacidade de colaborar com os vários grupos sociais que o compõe. Este poder colaborativo ainda atuou como limitador ao poder despótico do Estado.

Na interpretação da Filosofia Jurídica do Estado, o leque é amplo, de Hegel a Kant, de Del Vecchio a Duguit. Hegel definiu como Estado Ético: “realidade da ideia moral”; “substância ética consciente de si mesma”; “síntese do espírito coletivo”; “instituição acima da qual paira somente o Absoluto: a arte, a religião, a filosofia”. Em Kant, o Estado surge como “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. Para Del Vecchio é “a expressão potestativa da Sociedade”; “o Estado é o laço jurídico ou político ao passo que a Sociedade é uma pluralidade de laços”. Em Burdieu: “o Estado se forma quando o poder assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante uma operação jurídica que se chama a institucionalização do Poder” (Bonavides, 2012, p. 66-67 – grifos nossos). Também é possível ir além e visualizar a política-social, como o exercício de uma força política capaz de proporcionar interação e sociabilidade:

Há atualmente a necessidade de‘deflacionar’ seja a política-competência, seja a política-interesses para conquistar de novo um observatório capaz de voltar a conectar a competência política e os interesses com o quadro do conjunto das instituições e dos procedimentos jurídicos nos quais funciona o Estado Moderno, e também com o quadro dos valores culturais de onde nasceu a liberdade moderna (Cerroni, 1992, p. 12 – grifos nossos).

        

Neste sentido, o Estado deveria atuar como vetor político de elevação dos critérios de racionalização e imprimir valores próprios ao processo civilizatório, e a partir de ideias e ideais como República, Democracia, Estado de Direito, Liberdade, emancipação, consciência e responsabilidade pública.

Em todo caso, inicialmente, ainda podemos entender o Estado como um tipo privilegiado de comunhão política, seja como força potestativa, seja como aliança de classes. Mais frequentemente é definido como o Poder Político organizado, sendo centralizado na forma de um poder unitário. O que implica em afirmar que o Estado é um poder único e centralizado (mesmo sob a forma da Federação e dos Estados autônomos). O Estado também é a instituição por excelência responsável pela organização das demais – o que ressalta a importância da divisão de funções – para a administração e controle do poder – e congrega como elementos funcionais o povo, o território e a soberania. Mas isso não explica muita coisa, pois é preciso, por exemplo, discutir em que consiste a soberania, a quem e de que modo se organiza esta soberania, em que bases territoriais e culturais abriga-se determinado povo.

            Em todo caso, como instituição por excelência, o Estado conhece a outra forma complementar de exercício do Poder Político, além da regulação da política – neste caso quando opera como Poder Público. Se o Estado é o Poder Político centralizado (esta também seria uma definição para soberania), o Estado também é o Poder Público que se manifesta como organicidade e funcionalidade administrativa.

            É como se dissesse que o Poder Público é uma forma especial de conversão do Poder Político, atuando como prestação de serviços essenciais ao público, ao povo, e à administração do próprio Estado. Assim, o Estado é a conversão do poder in natura – inerente a qualquer organização social – em poder organizado para a dominação.

            Então, Estado é a transformação da política em ato regimental do poder de se estabelecer a própria dominação. O que permite entender que o Estado promove a ordem jurídica por meio da coação física. Mas, acima da força física,o Estado é a organização política que faz brotar a norma jurídica onde só havia a força. Contudo, o Estado é a instituição que se prima pelo exercício legítimo da força física e do monopólio legislativo. O efeito prático é a criação da hegemonia exercida sobre a força física e demais mecanismos de controle social.

Este é o “fator hegemônico” que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da sociedade. Nas sociedades capitalistas, nas democráticas e nas republicanas, é o fenômeno que ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do “direito a ter direitos”. Assim, efetivamente para que hegemonia não seja sinônimo de monopólio, o emprego do termo hegemonia deveria seguir o princípio grego:

O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”, “ser líder”, ou também do verbo eghemoneuo, que significa “ser guia”, preceder, “conduzir”, e do qual deriva “estar à frente”, “comandar”, “ser o senhor”. Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar[6]. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01).

           

Desse modo, o Estado é a instituição que exerce o monopólio (legítimo) da força física, mas também deveria ser o guia e o suporte dos institutos democráticos e republicanos. O que nos leva a concluir que oEstado é mais do que um contrato de poder ou de dominação, mesmo porque a dominação pode rapidamente se converter em opressão e até expropriação ilegítima de bens, valores, tradições e de graves violações de direitos.

            É certo que uma escolha política anterior determinou o Estado – se foi por meio de um contrato, esta é outra questão; porém, ao mesmo tempo, o Estado é a instituição capaz de transformar a política em norma e regimento. Desse modo, o Estado faz conviver e legitima as regras sociais e as normas jurídicas. Portanto, o Estado é o poder organizado para a dominação, para o fato de que a política impõe finalidades, meios e consequências. Vendo-se que o Estado é o árbitro entre meios e fins políticos. Portanto, utilizar a ágora para aniquilar a liberdade e o próprio Estado de Direito é como retroagir a um Estado pré-moderno, abrindo brecha a muitos usos/abusivos do poder. O que nos leva a concluir como em Hannah Arendt que o Estado Constitucional é regulado pela soberania popular:

O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço (Arendt, 1998, p. 75).

 

A principal função pública do Estado é assegurar regularidade à organização social que lhe deu origem. A fim de assegurar o controle social – instaurando níveis suportáveis de desregramento e infrações sociais, como normais – o Estado conta com a Administração Pública. Por isso, o Estado ainda é Administração Pública e gestão de políticas públicas.

De modo amplo, definindo-se o Estado como organização social para a normalidade, pode-se ver que o Estado regulariza os embates políticos e ideológicos e assim limita juridicamente os conflitos de interesse. Obviamente, o que é normal ou não será estabelecido pelos grupos dominantes em exercício no próprio Poder Político.

            Por fim, o Estado é uma forma especial de organização da política, da normatização jurídica e das relações sociais. De tal forma que o Estado se converte em soberania política, jurídica, organizacional. Portanto, ainda pode-se dizer que o Estado, como poder soberano, sofre uma divisão e passa a conhecer outras formas de limitação ao poder central, por meio da soberania interna e externa.

 

Bibliografia

ARENDT, H.O que é política. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.

CERRONI, Umberto. Política: método, teorías, procesos, sujetos, instituciones y categorias. México, D.F. : Siglo Veintiuno Editores, 1992.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. (4ª Ed.). Rio de Janeiro : Graal, 1978.

_____ Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre, Rio Grande do Sul : L&PM, 1980.

MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomos I e IV. São Paulo : Loyola, 2001.

OUTHWAITE, William & BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996.

 


[2]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

[3]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

[4]É Maquiavel quem utiliza pela primeira vez o vocábulo Estado, em que o Estado, (status = forte), é uma fortaleza, firme, constante.

[5]A Soberania é um dos elementos de formação do Estado Moderno, contudo, a soberania temporal, como separação do poder da Igreja, é um dos seus rudimentos mais importantes.

[6]E como serviu bem às alegações da Razão de Estado, da modernidade em diante!

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