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Vinício Carrilho

O Poder Público que nós gostaríamos


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]

De modo simples, Poder Público significa que o poder organizado – pode-se entender o Estado e o conjunto de suas instituições – está a serviço do povo, que o poder não serve a interesses escusos. No senso comum, ainda pode-se dizer que representa e sintetiza o governo, pois o conjunto das instituições e dos órgãos públicos permite que o Estado efetue sua atividade-meio, que é a administração dos bens, recursos e interesses públicos. A atividade-fim é a preservação da Razão de Estado, isto é, a luta por conservação do próprio Estado.

De modo mais técnico, significa que o poder é regido e limitado por um conjunto de regras jurídicas. Deve-se lembrar que a fonte das leis é a política, seja na forma da política social, seja como organização do espaço público e na representação parlamentar. O Poder Público também pode ser entendido como o poder organizado e que deriva sua força da fonte/origem (legítima e legal) da unidade global. O sentido maior de Poder Público, no entanto, é como continuidade institucional, normativa, da Razão de Estado. Assim, por Poder Público tem-se o poder organizado para atender uma determinada finalidade pública de organização (controle social), coesão política e prestação de serviços públicos necessários à vida comum do homem médio. É o conjunto de órgãos e instituições públicas que deve prestar os serviços públicos e realizar a principal tarefa do Estado, como organizador/prestador da Administração Pública.

Origem e legitimidade do Poder Público

Na sua origem grega[2], cidadão era todo aquele indivíduo que participasse do poder público, e a quem caberia o direito de jurisdição e de deliberação, e que tivesse riqueza suficiente para viver de modo independente. Cidadão, portanto, era aquele que participasse da cidade. De modo semelhante, para designar as virtudes da cidadania, Aristóteles comparou o cidadão ao marinheiro: com a preocupação em dar rumo e segurança ao navio (kibernetikéKybernets: timoneiro). O Poder Público, neste caso, seria sinônimo de “interesse comum”. Já a “bondade intrínseca do Estado” provém do fato de que todos devem ser bons cidadãos, e mesmo que o que dá forma e força ao Estado seja a dessemelhança e a “desigualdade de mérito”. Assim, do governante é esperada a prudência e a sinonímia na arte de bem governar: “Talvez tenha sido isso que fez Jasão dizer: Só conheço uma arte e só sei reinar” (Aristóteles, 1991, p. 42). Para o governo civil, entretanto, o bom governante é aquele que aprendeu a administrar. Quanto ao Estado, a segurança será o objetivo inicial.

Além de organizar a célebre coletânea de mais de uma centena de constituições do mundo antigo (que se perdeu), Aristóteles recomendava o uso de “tratados redigidos por escrito”. Àqueles que se dedicavam a organizar essas constituições, Aristóteles era enfático: a cidade deveria ser protegida com a virtude. Também é isso que deveria diferenciar uma cidade de uma “liga de armas”. Para a concepção de Poder Público que guarda traços da Grécia clássica, além da segurança, a cidade deve ser um lugar para se viver bem, mas esta felicidade não se resume à boa-fortuna,do mesmo modo como ao Estado só deve interessar a honestidade[3]. No caso, o melhor seria reunir virtudes e riquezas para poder usufruí-las. Daí também vem o melhor governo — em que se possa “viver bem”: o Estado da sabedoria é o que propugna pelo melhor fim.

Para Aristóteles, há um princípio de “dignidade política” (vida ativa) que não se resume à dominação política: “Mas muitos parecem considerar a dominação como o objeto da política, e aquilo que não cremos nem justo nem útil para nós não temos vergonha de tentar contra os outros” (Aristóteles, 1991, p. 51). Assim, o Poder Público é aquela forma de governo que propugna pela civilidade e que é capaz de produz leis virtuosas: as virtudes devem secundar o governo civil e aquele que manda deveria ter projetos honestos. Afinal, só há semelhantes se há justiça e honestidade: “Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez[4]. Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre os semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade” (Aristóteles, 1991, p. 53 – grifos nossos). Isto é o que nos conduz ao “bom governo da vida ativa” e que abarca, além da ação, a necessária meditação para sua melhor execução. O bom governo é o que se define por Poder Público.

O Renascimento do Direito Público

Muito tempo se passou desde a Filosofia Política grega, mas no Renascimento surgiria outra concepção de direito e de poder. Em certo sentido, há em Grotius (2005) uma mescla entre governante e soberano, entre a Razão de Estado e o Príncipe, entre o indivíduo e o poder público. Porém, em outra situação parece apontar para uma equivalência única que deveria reger a luta por conservação, mesmo diferindo público de privado: “A causa eficiente principal numa guerra é geralmente a pessoa cujos interesses estão em jogo. Na guerra privada, o privado; na guerra pública, o poder público, sobretudo o poder soberano [...] cada um é naturalmente defensor de seu direito. É a razão pela qual as mãos nos foram dadas” (Grotius, 2005, pp. 234-5 – grifos nossos)[5]. Na ausência significativa da autoridade constituída e do poder reconhecido, que evitem que os conflitos se degenerem em guerra ou luta por sobrevivência entre Estados – dado que não há um Estado dos Estados –, a luta pelo poder entre indivíduos é muito semelhante a que se dá entre Estados:

Afirmando a permanência do conflito, rejeitando a ideia de uma forma política que carregue em si a estabilidade, o pensador reconhece a permanência dos acidentes e, consequentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que adquire a verdade num movimento contínuo de racionalização da experiência (Lefort, 2003, pp. 46-47 – grifos nossos)[6].

 

Este pensador a que se refere Lefort é Maquiavel. Outra definição permite-nos entender o Poder Público como a normatização do poder (a regulação da política) de acordo com os princípios legitimadores. A partir do século XIX firmou-se outra instituição do direito público ainda mais clara e, efetivamente, normatizadora da ação do Poder Público. Política e direito andariam juntos.

Estado de Direito

A esta relação entre norma e poder, define-se como Estado de Direito: o Estado em que o poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, no contexto do Poder Público há uma maior judicialização do poder político. Ou como nos diz o filósofo americano:

O Estado de Direito implicasobretudo o papel determinante de certas instituições, bem como das práticas judiciais e legais que a elas estão associadas. Ele existe enquanto as instituições desse tipo são governadas de maneira razoável, de acordo com os valores políticos que a elas se aplicam: a imparcialidade e a coerência, a adesão à lei e o respeito pelos precedentes(Rawls, 2000, p. 377 – grifos nossos).

 

Contudo, o próprio Estado de Direito deve assegurar-se de que garantias serão ofertadas a fim de que o poder conheça as fontes da legitimação e não encontre facilidades para a usurpação. Aformação do Estado Constitucional foi essencial para que fossem ofertadas garantias ao poder legítimo, a fim de que o “poder do povo”[7]não se visse vitimado por forças tirânicas, oportunistas: “Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder” (Miranda, 200, p. 86). O Poder Público, de ali em diante, como Estado Constitucional, surge então claramente como poder limitado pelo direito que regula os objetivos da Administração Pública[8]. A explicação mais lógica é de que a republicanização do poder exige a legalidade da administração, mas igualmente a reaproximação entre direito e justiça:

Somente quando o Estado Constitucional, com base na doutrina da divisão dos poderes, retira do senhor feudal – cabeça da administração – o exercício exclusivo do poder legislativo, torna-se viável um comprometimento dos órgãos administrativos pelos órgãos legisladores, um comprometimento do Estado administrador pelos órgãos legisladores, um ‘auto-comprometimento do Estado’, a ‘legalidade da administração’, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, ‘direitos subjetivos, públicos’, e limites legais à administração (Radbruch, 1999, p. 167-168).

 

Para J.J. Calmon de Passos, por Estado Constitucional deve-se entender os próprios postulados da República e é isto que irá conferir as principais assertivas do que é verdadeiramente Poder Público:

Foram os postulados da democracia, da crença no direito racional e no conteúdo normativo da razão prática, a par da ideia de sistema e sua plenitude e coerência o que inspirou o constitucionalismo, saber e normatividade com pretensão de serem, ao mesmo tempo, raiz e síntese de toda a juridicidade[9]. A Constituição foi entendida como expressão dessa totalidade. Filha com contratualismo, mas em tensão dialética permanente com a ideologia do progresso, por sua vez também em tensão dialética com a necessidade teórico-prática da estabilidade da organização política. Para superar essas contradições, pensou-se a técnica do poder de emenda pelo Parlamento, mediante um processo qualificado de produção do direito em nível constitucional, a par da interpretação atualizadora dos tribunais constitucionais, de tal modo constituídos que se mostrassem politicamente sensíveis e capazes para essa tarefa (2001, p. 77 – grifos nossos).

 

Ou seja, desde o início, pressupunha-se que o Estado de Direito estivesse mais próximo do lado prático da vida social e não abreviado pelo cumprimento cego da lei:

Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a ideia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: (pág. 142); (pág. 143); <Estado de Direito exige proteção jurídica> (pág. 144) (Miranda, 2000, p. 86 – grifos nossos).

 

Ora, se há igualdade, o governo não deve ser investigado? Certamente, por isso, neste meio caminho, entre a política e a normatização, oscilando ora numa extremidade ora noutra, uma forma de poder popular expressa ações e conotações sociais, mas na ânsia de se ver hipostasiado, como sedimento e substância da ordem jurídica democrática. Em suma, o Poder Público requer um Estado de Direito que oferte proteção jurídica ao mais simples dos seus cidadãos.

Hoje em dia, no interior do Estado Democrático, Poder Público implica em controlar o poder como majestas a fim de que o potestas in populo seja expressivo na ordem jurídica, a fim de que a soberania popular não seja dizimada em regime autocrático ou tornada inócua pela corrupção e ideologias de um poder usurpado. Com destaque para todos os órgãos, instituições e servidores públicos que labutam contra a corrupção do Estado.

 

Bibliografia

ARISTÓTELES. Obra jurídica. São Paulo : Ícone Editora, 1997.

______ A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

CALMON DE PASSOS, J. J. Repensando a Teoria da Constituição. IN : MODESTO, Paulo. @ MENDONÇA, Oscar. Direito do Estado: novos rumos. Direito constitucional. Tomo 1. Max Limonad : São Paulo, 2001.

GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. 2ª Ed. Ijuí-RS : editora Unijuí, 2005.

LEFORT, Claude. Sobre a lógica da força. IN : QUIRINO, C. G. & SADEK, M. T. (organizadoras). O pensamento político clássico. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2003.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 3ª ed. Coimbra-Portugal : Coimbra Editora, 2000.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo : Martins Fontes, 1999.

RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo : Martins Fontes, 2000.



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

[2]A cidadania  era limitada pela forma de governo, se democrática ou aristocrática.

[3]Relembrando: os princípios que devem guiar os homens e o Estado, são: prudência, coragem, justiça e virtude.

[4]É óbvio que se refere apenas aos cidadãos, excluídos os escravos, as mulheres, os estrangeiros e os demais não-cidadãos. A democracia grega era formada por não mais do que 10% da população.

[5]O Poder Público, portanto, nada mais é do que a extensão da sociabilidade humana: “nada é mais útil ao homem que outro homem. Os homens são, com efeito, unidos entre eles por diversos laços que os empenham a prestar-se auxílio recíproco” (Grtoius, 2005 – grifos nossos).

[6]Exatamente porque os dados não cansam de mudar, é que é preciso pensar e repensar a prática.

[7]Poder Público como herança constitucional do potestas in populo.

[8]Como forma organizada do potestas in populo e como limitação do poder supremo, perpétuo, ilimitado (majestas, imperium), o Poder Público implica em responder positivamente aos anseios presentes no poder popular.

[9]Este bem pode ser um preâmbulo do Poder Público.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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