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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O pior de dois mundos


O pior de dois mundos: a violência, o crime, a barbárie, o morticínio e o desprezo pela humanidade; a organização, o planejamento, a metodologia capitalista (a espoliação e o lucro) a racionalidade e a burocracia. Todo mundo que é razoavelmente formado (em ética ou humanidades) sabe que o crime organizado no Brasil é um mal incontido. Todos que são bem informados sobre o mundo atual sabem que o crime organizado cresce pelos interstícios e vazios deixados pelo poder público. Também sabemos que, desde o regime militar, o Estado pressiona a legalidade e com isso forja os principais grupos criminosos do país: do Comando Vermelho ao PCC. Além dos tipos mais comuns, os criminosos do colarinho branco têm em comum o total desconhecimento do que significa, do que vem a ser a Humanidade. Pergunte-se a qualquer dos criminosos contumazes, tenham ou não colarinhos, sejam brancos ou coloridos, sobre a extensão, o legado, os desafios da Humanidade e a resposta será a interrogação na testa: “como assim?”.

O que não se sabia ou, melhor dizendo, não se tinha uma apreensão mais adequada no Estado de São Paulo é que o crime organizado já ganhou a simpatia popular nas periferias. Do Rio de Janeiro tínhamos a informação de que o crime organizado fazia às vezes do Estado, com ações escapistas, assistencialistas, pagando remédios, fornecendo falsa segurança. Aliás, esta falsa segurança é uma marca da Máfia italiana, com a famosa venda de proteção, em que o crime organizado pratica a extorsão de moradores e comerciantes e, em troca, garante-se para que não sejam roubados (sic).

Em São Paulo houve outra adequação. Além de praticar o assistencialismo, o crime organizado agora realmente resolveu organizar as relações sociais, criminalizando a violência, ou seja, punindo os moradores da periferia que interfiram na vida comum. Na falta do Estado, especialmente da polícia e das políticas sociais, o próprio crime organizado resolveu batalhar para diminuir os índices de criminalidade.


 

O pior de dois mundos - Gente de Opinião
(esta imagem é de regiões não pacificadas pelo crime organizado)

 

Os crimes sociais

Na fundação do Estado Moderno, o filósofo Hobbes sinalizou que o pensamento político necessita se guiar pela reta razão porque, quando aplicada às estratégias normais da vida ou à política, a lógica formal implica no uso do cálculo racional (objetividade, previsibilidade), orientando-se pelo concatenamento que há entre as premissas e a conclusão (coerência interna nos postulados). A reta razão conduziria à Razão de Estado, a lógica deveria supor que a sociedade organizada politicamente, sob a forma do Estado, tem melhores condições de efetivar a segurança global. Entre indivíduo e Estado, a perspectiva é a mesma que se tem entre o analógico e o digital. Por isso, desleixar a segundo plano, propositadamente, a segurança pública, é o pior crime social, como um ato de governo que se volta contra a Razão de Estado.

Não há crime mais grave do que deixar o povo à mingua: quanto se investe, eficazmente, no combate à seca e quanto se jogou fora para ter a Copa-14? É um assombro o que vemos no Brasil, em termos de racionalidade e de organização das relações sociais. Não bastasse todo o descaso (dois milhões de crianças fora da escola), o roubo autorizado (o que se faz na saúde pública, condenando-se à morte), ainda temos de assistir o crime organizado cuidar do controle social. O mundo globalizado substituiu o Estado Providência pelo Estado Penal, ao invés de investir na prevenção – com políticas sociais –, preferiu-se construir casamatas de repressão e punição. A diferença gritante entre o que se faz no Brasil e no mundo civilizado, entretanto, é enorme: lá, adotou-se a ideia de repressão associada à efetividade da lei; aqui, a repressão se anula com a extensa impunidade.

Além desses fatores de crise institucional apontados, pode-se destacar uma espécie de crise de dominação pública. As instituições políticas no Brasil padecem da quebra do paradigma do Estado Moderno: território, povo, soberania (reconhecimento) já não suportam o terrorismo social. De certo modo, isso condiz com a fragilidade do controle social atual, sem envolvimento e participação política, e com sobras de incompetência e interesses escusos[1]:

Pois, neste processo de expansão de concentração, o poder de controle conferido ao capital vem sendo de fato re-transferido ao corpo social como um todo, mesmo se de uma forma necessariamente irracional, graças à irracionalidade inerente ao próprio capital. Que o deslocamento objetivo do controle seja descrito, do ponto de vista do capital, como “manter a nação como refém”, não muda nada o próprio fato (Mészáros, 1989, pp. 26-27).

 

No Brasil, o Estado Penal nos coloca diante da seguinte questão: o que restaria à maioria subordinada seria a consolidação de que, o fato de pertencer às camadas mais frágeis da população implicaria na possibilidade de carregar o estereótipo predominante da criminalidade – como comportamento normal desses grupos sociais: o status de criminoso. As relações de controle social são embasadas na discriminação, no preconceito, racismo, estereotipia. De certo modo, é por isso que nas periferias o Estado Penal permitiu ao crime organizado balizar as regras de convivência social. Qualquer criança sabe que a segurança privada cresce na exata proporção em que decresce a segurança pública. A empresa da segurança privada é uma indústria que se abastece folgadamente com a insegurança pública.

O caráter funcional do Direito Penal, pautado na desigualdade, seletividade e fragmentarização, é o reflexo do sistema capitalista que promove a desigual distribuição das riquezas e das relações de poder na sociedade, o que acarreta a hierarquização dos interesses em jogo: a manutenção da vida com dignidade ou a supervalorização e a superproteção da propriedade privada? Isso concorre para que as relações de subordinação e de exploração permaneçam cada vez mais evidentes, sendo o Direito Penal o suporte/mantenedor dessas mesmas relações de subordinação e de exploração dos indivíduos:

A sociedade “afluente transformou-se na sociedade de efluência asfixiante, e a alegada onipotência tecnológica sequer foi capaz de debelar a invasão dos ratos nas deprimentes favelas dos guetos negros [...] (Enquanto prevalecer o poder do capital, o ‘governo mundial’ está fadado a permanecer em devaneio futurológico) [...] O status quo de pouco tempo atrás vem se desintegrando rápida e dramaticamente diante de nossos próprios olhos — basta querer ver. A distância entre a ‘Cabana do Pai Tomás’ e os bairros sitiados da militância negra é astronômica” (MÉSZAROS,1989, pp. 15-20-25-26– grifos nossos).

 

Há muito tempo, como vimos acima, ocorreu uma veemente escolha Estatal a fim de substituir as políticas públicas de assistência às populações carentes, substituindo-as pelo controle social meramente repressivo do Estado Penal. Em segundo lugar, o Estado abandonou essa posição de regulador social com base do registro de nascimento e se recolheu, deixando ao crime organizado o espaço necessário para se desenvolver como “controle social” nas periferias.

Chegamos a tal ponto que, de forma inteligente, o crime organizado concluiu que a violência incontida na periferia não é boa para os negócios e, por isso, sua principal missão neste exato momento é racionalizar a violência e as práticas delituosas. Ou seja, na falta do Estado, o crime organizado produziu regras de controle social e isto reduziu os níveis de violência na periferia paulistana:

Para o pesquisador e especialista canadense Graham Denyer Willis, a facção é responsável pela queda nos índices de criminalidade em algumas regiões da capital paulista. "Os moradores falaram que, quando o PCC chegou, [os criminosos] estabeleceram uma ordem forte do que pode ser feito e do que não pode ser feito dentro da comunidade. “Os moradores falaram que, quando o PCC chegou, [os criminosos] estabeleceram uma ordem forte do que pode ser feito e do que não pode ser feito dentro da comunidade E que se acontecesse alguma coisa tinham que falar com eles. Um sistema de lei e ordem bem diferente. São as regras que estão no estatuto. Já tem dois estatutos, um bem recente. Aí na comunidade não era só quem estava batizado, mas quem morava na comunidade que também não podia desobedecer as regras do PCC. E eles falam que antes era muito pior, [havia] briga entre polícia e bandido, morria muito gente. Não podiam sair na rua à noite. Depois que chegou o PCC, estabeleceu essa ordem. Todo mundo sabe que se desobedecer vai ser julgado, sabe o que vai acontecer. Violar mulher, por exemplo, todo mundo sabe que é um crime muito grave e que o cara vai desaparecer ou vai morrer. Então, as taxas de homicídio nesses bairros caíram muito por causa disso. Na visão da periferia, nas comunidades onde o PCC controla, o PCC tem muito a ver com a queda dos homicídios, desde 2003, 2004. O Gabriel [de Santis] Feltran escreveu um livro ["Fronteiras de Tensão"] muito importante sobre isso. Se você ver os dados de 1999, por exemplo, as comunidades que tinham mais problema com violência, são as que hoje estão dominadas pelo PCC, como Sapopemba, Jardim Angela, Cidade Tirandentes, Capão Redondo, Campo Limpo. Depois do PCC, a taxa [de criminalidade] nessas comunidades caiu muito"[2](grifos nossos).

 

Desse modo, ainda se conclui que chamar a atenção da polícia para as bases territoriais do crime não era produtivo. A própria violência localizada, própria da desestruturação social, familiar, pessoal – gerando brigas e mortes entre moradores – também não era de interesse da facção criminosa, uma vez que a polícia seria chamada. De modo mais radical, grupos de extermínio formados por policiais, ex-policiais e criminosos associados ao fim de contenção social seriam formados. Vejamos bem a lógica da ignomínia social, seriam formados grupos de extermínio para conter a violência:

O pior de dois mundos - Gente de Opinião

(mapa de homicídios)

 

 

O Estado de não-Direito

Na ausência do Estado de Direito nas periferias e nos bolsões de miséria social, o crime organizado decretou seus tribunais do crime como instituição-mor do Estado de não-Direito. Assim, tal qual o Estado de Direito que atualiza sua legislação, também o PCC produziu novo estatuto funcional – sua “bíblia legislativa”. O novo estatuto do PCC traz mais articulação retórica e politização para os seus comandos. 

A “bíblia” da facção tem 18 artigos, sendo o último deles específico sobre vinganças contra policiais que ajam contra integrantes da organização e como servidores do Estado opressor: “Todo integrante tem o dever de agir com serenidade em cima de opressões, assassinatos e covardias realizadas por agentes penitenciários, policiais civis e militares e contra a máquina opressora do Estado”. Soa retórica de advogado (e devem ter recebido auxílio jurídico), mas não há maior coerência no absurdo do crime organizado protestar contra a máquina opressora do Estado, afinal de contas, egressos das malhas sociais do despojo capitalista, a maioria dos associados ao crime conhece bem a atuação do Estado contra os “marginais sociais”.

Na introdução, o documento ainda traz a consciência operacional da facção criminosa: “Nós revolucionamos o crime impondo através de nossa união e força […] Nossa responsabilidade se torna cada vez maior, porque somos o exemplo a ser seguido”. A primeira versão já falava em Estado Democrático de Direito, agora só faltou questionar o terrorismo de Estado ou o terrorismo social. Também devem estar referindo-se à crescente responsabilidade de organizarem a violência nas periferias, a partir dos seus tribunais do crime.

            Além disso, a racionalidade exigida pela aplicação cega do Princípio da Eficiência, pelo Estado de São Paulo, impede na prática que os policiais tenham possibilidades reais de ascensão profissional. Desse ponto de vista é um desastre, pois se o Estado é incapaz de levar racionalidade e controle social às periferias, ao mesmo tempo a racionalidade técnica praticada é um impeditivo à progressão funcional de seus servidores, especialmente os policiais que não conseguem ascender por meio de outros concursos complementares[3].

Desse modo, o crime organizado nos impõe gradativamente a aceitação, a regularização de uma espécie de Hobin Hood invertido, capitalista que rouba de pobres e ricos para si mesmo. Seu “Estado de Direito”, como se sabe, é muito mais severo do que o nosso, aplicando-se a pena de morte, por exemplo. Sua racionalidade não é expansiva, nem deve embalar qualquer romantismo, pelo simples fato de que não produzem nada de bom. Contudo, a ingenuidade produzida pelo Estado fascista que abandona a periferia a sua própria sorte, não é diferente, não é menos nociva, como vimos na “pacificação social produzida pelo PCC”. Este é o modelo que se espraia pelo Brasil todo.

O pior dos mundos, portanto, associa a perda da sensibilidade humanista (o que é a Humanidade) e o crescimento das ações desprovidas de legitimidade. O chamado humanismo, vaticinado antes dos humanistas do século XVIII, nos ensinou que organização e controle social estão muito além do que se facilitou denominar de repressão:

Começou a desenvolver a ideia de que o homem pode usar suas forças para transformar o mundo físico. Num certo nível, isso deu origem à concepção dramática do magus, o mágico benigno que emprega suas artes ocultas a fim de revelar os segredos da natureza. Esse personagem fáustico é o verdadeiro herói da Oração sobre a dignidade do homem, de Pico, na qual ele é exaltado como o mais genuíno filósofo, e conclamado a trazer à luz “os milagres escolhidos nos recessos do mundo, nas profundezas da natureza, e nos depósitos e mistérios de Deus” (Skinner, 1996, p. 119).

 

Parece que perdemos a magia da sociabilidade, desintegrando-se a perspectiva de que a Humanidade só é perfeita se todos os cidadãos são dignos de humanidade. Para nós, abaixo da linha do Equador, o PCC racionalizou o crime, propondo elevar sua categoria a novos patamares de organização e de funcionalidade. Porém, com a imposição de regras e a formulação de estatutos, inclusive para a população circunvizinha a seus redutos, o PCC apenas estandardizou o que o “nosso” Estado de Direito não foi capaz de estatizar.

 

Bibliografia

MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. 2ª Ed. Editora Ensaio : São Paulo, 1989.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo




[1]Vide o crescimento da segurança privada e do panótico social sob o Estado Controlativo: criminalização das relações sociais, total invasão da privacidade.

[3]http://www.nytimes.com/2012/12/02/opinion/sunday/in-brazil-poverty-is-deadly-for-police-officers-portuguese.html?pagewanted=1&_r=2&ref=sunday.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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