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Vinício Carrilho

O nazista bate à porta


Praticamente todo dia, fico indignado com alguma barbaridade ou estupidez que bate à porta da informação. Há algum tempo, pensei que não mais me sentiria chocado com a bestialidade. Se bem que, neste caso, há uma esperança, porque se ainda nos indignamos é sinal de que há vida inteligente dentro de nós. Infelizmente, conheço alguns que só reagem com cinismo se seus interesses mesquinhos são violados.

Enfim, o que me chocou dessa vez foi a matéria abaixo, com a foto de mendigo, morador de rua, riscado, marcado com a suástica nazista, feita com cacos de vidro. Isso mesmo, não bastasse a ignomínia de saldar o nazismo, o agressor tatuou sadicamente a vítima indefesa.

Diante de coisas assim, como é que alguém ainda defende a tese de que vivemos em uma sociedade perfeita, pacata, ordeira, civilizada, sem preconceitos e racismos?

Será que vivemos em dois países diferentes? Realmente, vivemos em realidades discrepantes, uma para os incluídos e outra para os não-humanos, as pessoas assim taxadas pela indiferença global que os esquece à beira do abismo moral, social. Jogados fora, como lixo não-reciclável, essas pessoas podem ser tatuadas com os símbolos da morte ou simplesmente mortas – como o índio queimado vivo em Brasília, por jovens de classe “média”. Se essa é a média, imagine só o que está por baixo:

Segundo a polícia, o trio agrediu, queimou e gravou, com caco de vidro, uma suástica, símbolo nazista, nas costas da vítima, que dormia no coreto de uma praça. O morador de rua Sebastião Costa, 42, está internado no Hospital Regional de Presidente Prudente (558 km de São Paulo) desde então, com 20% do corpo queimado. Ele permanece inconsciente e em estado grave[1].

 

Parece literatura, filme, mas é a tragédia humana que não nos abandona – aliás, é um caso exemplar do porquê sempre ser necessário bater na mesma tecla, contra os regimes políticos de exceção, como foi o nazismo. Porque sem essa insistência em debelar o Estado de Exceção e a cultura da morte por ele representada, esses tipos de indivíduos reduzidos à bestialidade só irão prosperar.

O nazista bate à porta - Gente de Opinião

Símbolo da suástica é gravado nas costas de morador de rua
em Presidente Venceslau (SP)

 
O nazismo é uma praga que infestou a consciência humana e manchou irreparavelmente a condição humana, por isso o que temos de fazer é denunciar sempre seus efeitos para que nunca mais a humanidade tenha outro pesadelo como esse.

Como se sabe, Kafka travou uma luta pessoal em três frentes de batalha: a) contra o menosprezo do próprio pai (chamava-o de escritor medíocre); b) contra a depressão profunda provocada pela tuberculose (daí a importância de se valorizar sua biografia); c) contra o nazismo que já se avolumava na Alemanha.

A tragédia humana que nos persegue

Franz Kafka é um dos grandes gênios do século XX e por isso continua a atrair a atenção de jovens estudantes de diversas áreas do conhecimento, como literatura, filosofia, ciências sociais. Suas obras são consagradas, a começar do livro/romance “O Processo” até a novela chamada “Da Colônia Penal”, passando por muitos contos, como este que vamos trabalhar mais: “Josefina, a cantora ou O Povo dos Camundongos”.

O conto O Povo dos Camundongos (1924) foi confiscado pela polícia repressora da época e isto mostra como eram aqueles tempos pré-nazistas. Além de sua luta pessoal, Kafka tem de ser lembrado como um combatente da liberdade, como um autor que se divertia escrevendo, mas que sofria ao ver as barbaridades que o regime político alemão já orquestrava.

No conto, Josefina é uma tirana que não admite ser contestada por seus súditos, apesar de ser questionada quanto à sua qualidade musical. Portanto, o conto nos revelaria um pouco os meandros do regime e da personalidade autoritária.

Kafka não é um autor muito fácil de se ler, porque os livros mais densos costumam enredar o leitor pela trama afora. Sem dúvida, isto é sinal de sua riqueza detalhista, mas também cansa um pouco. Porém, de bons desafios é do que mais precisamos, se queremos melhorar nossa política e nosso país.

Por isso, a seguir, veremos uma metáfora dessa relação/oposição Direito X Arbítrio, utilizando-nos de uma metáfora de Kafka. Na metáfora, em suma, veremos que há um processo de culpabilização das vítimas.

O não-Direito em Kafka

Em Kafka vemos o Estado de não-Direito como categoria política negativa do Direito como fato social. No polo positivo do antagonismo, poderíamos ver o Estado Jurídico como negação do não-Direito. Os caminhos para esse tipo de abordagem são inúmeros, porém utilizaremos uma das muitas metáforas de Franz Kafka que, além do romance O Processo, escreveu contos que nos permitem essa mesma leitura, a exemplo de Josefina, a cantora ou O Povo dos Camundongos.

As metáforas de Kafka, portanto, serão aqui empregadas como antíteses do não-Direito, ou seja, como negação do arbítrio e da violência que se desencadeia a partir da negação inicial. Trataremos de algumas características do que chamaremos de Estado K., como um tipo de Estado de Exceção.

 

Bibliografia

KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal. (4ª ed.). São Paulo : Brasiliense, 1993.

______ A metamorfose. 18ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

­______ O Processo. 9ª Reimpressão. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

______ Um artista da fome - A Construção. 2ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 2002.

______ Narrativas do Espólio. São Paulo : Companhia das Letras, 2002b.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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