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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O glamour da violência


 A violência generalizada, agora com os ataques em Santa Catarina, e a transferência de presos de altíssima periculosidade para Porto Velho, por mais que não se queira, é um tema que nos incomoda porque afronta a consciência.

Na esteira do que vem acontecendo há tempos, para muitos, o México é o Brasil amanhã, em termos de violência e de enraizamento do crime organizado. No México, a proximidade com os EUA fez com que o tráfico de drogas se tornasse uma verdadeira guerra sem limites, tréguas ou, é claro, sem nenhuma regra. A violência ultrapassou a barreira da barbárie: os “inimigos” são desmembrados. No Brasil, são poucos os grupos realmente organizados, mas para agravar nossa crise esses grupos firmam alianças e somam esforços e recursos, ao invés de entrarem em conflito, como no México. No entanto, lá quanto cá, a violência típica do crime organizado é foco de sucesso entre os jovens – mas, apenas o presidente mexicano tem se expressado sobre isso com clareza: “A ideia, disse Sanchez, é a de evitar a glorificação da violência, que já é celebrada em alguns círculos através da música e estilos de roupas. ‘Nós não queremos que a juventude deste país veja o crime como algo atraente ou um bom lugar para aumentar seu status social, econômico"[1]. Este glamour nós já vimos no Brasil em vários sentidos, desde a página pessoal de traficantes, em redes sociais, portando armas de cano longo, algumas folheadas a ouro, e rodeados por mulheres. Também no México se contabilizam pelo menos 80 cartéis em disputa por território controle do tráfico. A crítica ao último governo é de que a ação de extrema violência no combate ao tráfico (a ordem era de matar todos os traficantes presos) fragmentou os grandes grupos, em pequenos e médios cartéis e isto teria acirrado ainda mais a violência na disputa por posições de lideranças nos negócios do crime organizado. Como justificativa da violência social que assola o país, os últimos governos mexicanos têm editado leis de combate ao crime que mais se cercam de leis de exceção. Esta justificativa teria legitimado o Estado a elaborar um verdadeiro modelo político-jurídico de Terrorismo de Estado. Assim, reconfigura-se novamente a luta por reconhecimento social e sobrevivência do poder estatal, agora na vigência do Estado Penal. Como indicado, o México retrata uma realidade de conturbação institucional que é exemplo do Estado Penal – a criminalidade é indicada, literalmente, como decurso de uma guerra e as formas punitivas resvalam na repressão própria ao direito de guerra. No México, há normativa específica para o Estado de não-Direito (Canotilho, 1999) e que se assemelha ao terrorismo de Estado. No México, há instruções normativas em forma de cartilhas de combate à criminalidade, como se fossem manuais de “guerra de guerrilha”.


Glossário do Terror interno (México)

Ainda é possível dividir essa reação das forças públicas em duas esferas: interna e externa. No âmbito externo, a guerra também não é convencional, mas os estratagemas do Estado Penal são diversos. Na guerra digital, trava-se uma luta contra inimigos (internos e externos) “invisíveis”, não-identificáveis. No âmbito interno, combate-se como guerra de guerrilha ou “guerras assimétricas das ruas” (meia-irmã da guerra civil), daí que as cartilhas de combate à criminalidade, como logos da doutrina de segurança nacional, identificam e anulam inimigos de guerra. O terror tem uma linguagem própria, um glossário e nomenclaturas.

  • 1) Guerra contra el narcotráfico. Eufemismo con el que se pretende ocultar: a) la estrategia de un usurpador para afianzarse en el poder; b) el emplazamiento del Ejército en todo el territorio como fuerza de ocupación represiva; c) el apoyo a uno de los cárteles frente a sus rivales a través de una carnicería sin fin; d) el incremento del enriquecimiento inexplicable de una buena parte de la jerarquía castrense, policiaca, judicial, religiosa y de la clase política en general; e) el afianzamiento de la injerencia y control de Estados Unidos sobre México; f) la criminalización de los movimientos sociales; g) la guerra social contra jóvenes y pobres y la guerra sucia contra los opositores. 2) Guerra sucia. Crimen de Estado que al margen de la Constitución tiene como propósito el aniquilamiento de los considerados “enemigos internos” por medio de su localización, seguimiento, captura, interrogatorio a través de la tortura, mantenimiento en cárceles clandestinas, desapariciones forzadas y ejecuciones extrajudiciales por parte de las fuerzas armadas, agentes policiacos, de inteligencia y grupos paramilitares que actúan bajo las órdenes –usualmente– de la sección segunda del Ejército. 3) Estado fallido: a) término utilizado para describir a los gobiernos trasnacionalizados y colaboracionistas que fallan en todas sus tareas sociales, mientras fortalecen sus aparatos y estrategias privatizadoras, desnacionalizadoras y represivas; b) también es utilizado para justificar la ocupación militar de países, obviamente humanitaria y democratizadora, de Estados Unidos, cuyos ejemplos más recientes son Irak y Afganistán.
     
  • 4) Crimen organizado: a) empresa diversificada y floreciente que constituye la faceta clandestina y delincuencial del sistema –también organizado– de explotación imperante; b) corporación paralela que retroalimenta la economía formal a través de una constante circulación o flujo de efectivo; c) modus vivendi de al menos 500 mil familias mexicanas. 5) Comandante supremo. Grado que recurrentemente ostenta Felipe Calderón a través de casacas militares de tallas grandes, quepis de cinco estrellas y una águila, en ceremonias, ejercicios y desfiles marciales en los que expresa su vocación frustrada o su trauma por no haber jugado de niño con soldaditos de plomo. 6) Búnker presidencial. Costoso y supuestamente secretísimo espacio donde juega Felipillo a la guerra.
     
  • 7) “Vamos ganando la guerra”. Estribillo repetido por el ocurrente comandante supremo ante el incremento anual en el número de muertes que hasta ahora ofrece más de 34 mil bajas en lo que va de su sexenio; esta declaración puede variar con otras frases igualmente ingeniosas y originales como “la violencia viene de los violentos”, “haremos retroceder a la delincuencia”, “los mexicanos estamos en pie”, etcétera. 8) Retén militar. Bloqueo en calles y carreteras del país utilizado por el Ejército para asesinar a civiles indefensos, a quienes sin excepción se culpa de ser parte del “crimen organizado”. 9) Daño colateral. Otro sarcasmo manejado por los voceros de Sedena y los medios desinformativos para justificar los asesinatos de civiles inocentes y desarmados, que incluyen una alta proporción de mujeres y niños y que son perpetrados por fuerzas militares o policiacas en enfrentamientos armados diarios.
     
  • 10) Fuero militar. Permiso para matar; protección ilegal e inconstitucional para garantizar la impunidad de los militares en los numerosos casos de abusos y asesinatos de población civil. 11) Recomendaciones de la Comisión Nacional de Derechos Humanos y de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Documentos siempre condenatorios que las autoridades civiles y militares mexicanas tiran al cesto de la basura sin haberlos leído. 12) Iniciativa Mérida: a) negocio redondo de Estados Unidos y sus socios menores mexicanos en el que se otorga dinero al gobierno mexicano para que lo gaste comprando equipos, servicios y armas a empresas casualmente estadunidenses; b) medio a través del cual agentes de todos los servicios de inteligencia de Estados Unidos se establecen en México con funciones operativas sancionadas por la Constitución pero apoyadas abierta o solapadamente por el gobierno colaboracionista de Felipe Calderón.
     
  • 13) Armada de México. Cuerpo castrense –los marines mexicanos– afín a Estados Unidos, cuyos comandos operan cuando en una plaza en pugna el Ejército está tan involucrado con los chicos malos que no resulta confiable; se espera que en poco tiempo este grupo de elite tampoco sea confiable. 14) Procuraduría General de la República, Secretaría de Seguridad Pública y Agencia Federal de Investigación. Organismos costosos e inservibles para contener el avance del crimen organizado, las ejecuciones de los cárteles de la droga en México y garantizar una seguridad pública efectiva, profesional y respetuosa de los derechos humanos de los ciudadanos; por esta razón, el comandante supremo utiliza a las fuerzas armadas que –como se ha demostrado en estos cuatro años– tampoco pueden con la delincuencia organizada, incrementan en gran número las ejecuciones sumarias, no garantizan la seguridad pública de extensas regiones del país y, sobre todo, no respetan los derechos humanos. 15) Estadística aplicada. Incremento sostenido en: a) la cantidad mensual de muertos por violencia en México; b) los ingresos irrestrictos de la industria y el comercio de armas en Estados Unidos.

A desídia com o interesse social e o desrespeito completo à soberania e livre-determinação dos povos ainda acarretaria um tipo específico de combate entre Estados. Além da própria “guerra assimétrica das ruas”, um tipo de atualização da clássica guerra civil – ou uma nomenclatura que quer justamente ofuscar o problema da guerra civil – vê-se aflorar uma guerra digital ou “guerra de pressão”, absolutamente assimétrica quanto ao espaço e território, totalmente marcada pela imprevisibilidade e insegurança.

 

Terrorismo de Estado e democídio

Para especialistas, trata-se de uma nova doutrina esta aplicada pelo ELP, apelidada de “guerra de pressão direcionada” (com o intuito de deixar o adversário paralisado, utilizando a tática do Titan Rain (um programa especial: “Chuva de Titã”). A tática invasiva tem fases elaboradas, tipo passo a passo:

  1. Escolha de alvo: hackers identificam computadores suscetíveis à invasão. Os EUA são o alvo central por causa de seu próprio “gigantismo”: operam 3,5 milhões de computadores em 65 países.
  2. Formas de ataque: a) força brutahackers invadem os sistemas e descobrem as senhas centrais; b) oportunistas – aproveitam-se de falhas já existentes com o intuito de invadir os sistemas. Costumam invadir computadores periféricos meramente administrativos para, em seguida, aproveitar de suas deficiências e pular aos demais que articulam a cadeia de comando.
     
  3. Objetivo: não apenas invadir os sistemas para “roubar” dados, mas principalmente para levar esses sistemas ao colapso. Esse hacker altamente especializado infecta e procura adquirir o controle de milhares ou milhões de computadores domésticos, “escravizando-os”, para que sejam redirecionados ao alvo central do ataque. Esta força multiplicada, aliada a programas invasivos de última geração, sobrecarregam o sistema e o levam à falência das operações.
     
  4. Conseqüências: parte da rede do Pentágono travou por sete dias, numa “batalha silenciosa” que durou meses. A meta principal tem duplo efeito: obter informações e destruir comunicações.
     
  5. Doutrina: esta modalidade de guerra pela hegemonia da Razão de Estado está montada na surpresa e na capacidade inicial de invadir e neutralizar bancos de dados. Em seguida, procura-se impedir o funcionamento dos recursos de comando e controle, criando insegurança e decepção na população, ante um “inimigo invisível”.
     
  6. Suposições: acredita-se que algo em torno de 120 países estejam envoltos na tentativa de avançar nesta modalidade de “guerra cibernética” (com destaque também para Arábia Saudita que não “criminaliza” a ação hacker). A China espera dominar a guerra no ciberespaço em 2050[2], tendo criado um “exército especializado”[3](Norton-Taylor, 06/09/2007).
     
  7. A Guerra do Futuro: “Pense bem: um dia os 11 milhões de clientes dos bancos de Londres acordam e encontram suas contas esvaziadas. Horas depois, é a energia que desaparece sem explicação. No fim da tarde será o caos – e a batalha terá sido vencida sem um só tiro” (Godoy, 06/09/2007).
     
  8. Razão de Estado ou ciberterrorismo: além dos tradicionais ataques e contra-ataques, dos segredos de Estado, do próprio terrorismo de Estado, há a eterna mania persecutória (por vezes anti-industrialista: o que é irônico) e amplamente baseada no conservadorismo (ou anti-intelectualismo). No fundo, um resumo do pensamento fascista: o futuro precisa de ordem e o presente de controle[4]. Porém, em Mianmá, a junta militar iria se deparar com uma avalanche de “contra-ataques tecnológicos” e que fez a base do terror tremer de medo. Pois, não lidava mais com o mundo antigo, como na revolta de 1988, em que os monges massacrados não tiveram repercussão e apoio internacional:

Costumava ser mais fácil: fechar as fronteiras, montar os bloqueios de estrada, parar os trens, cortar as linhas telefônicas e então reprimir seu povo com impunidade [...] Na semana passada, quando um soldado atirou e matou um repórter japonês, Kenji Nagai, alguém no alto de um prédio filmou a cena [...] Elas enviaram mensagens de texto SMS, e-mails e postaram em blogs diários, segundo alguns dos grupos de exilados que receberam as mensagens. Elas postaram anotações no Facebook, o site de rede social. Elas enviaram mensagens minúsculas em e-cards. Elas atualizaram a enciclopédia online Wikipedia. As pessoas também usaram versões de Internet de "pombos-correio" - os repórteres mensageiros que no passado transportavam filmes e notícias, entregando o material para embaixadas ou organizações não-governamentais com acesso a conexões de satélite [...] E então, na sexta-feira, o fluxo de imagens parou [...] "Eles finalmente perceberam que este era seu maior inimigo e o abateram", disse Aung Zaw [...] Seu site foi atacado por um vírus, cujo momento sugere a possibilidade de que o governo militar conte com alguns poucos hackers habilidosos em suas fileiras [...] Mas em uma batalha pela alma de seu país e pelo apoio do mundo, a junta está perdendo mesmo enquanto vence, disse Xiao Qiang, diretor do Projeto Internet China e um professor adjunto da Escola de Doutorado em Jornalismo da Universidade da Califórnia, em Berkeley [...] "Ao derrubarem a Internet eles mostraram estar errados, que têm algo a esconder", ele disse. "Nesta frente, mesmo um blog desativado é um blog poderoso. Mesmo o silêncio na Internet é uma mensagem poderosa" [...] "Hoje, todo cidadão é um correspondente de guerra", disse Phillip Knightley, autor de "The First Casualty" (a primeira baixa), uma história do jornalismo de guerra que começa com as cartas enviadas por soldados na Criméia, nos anos 1850, à "guerra na sala de estar" no Vietnã nos anos 70, quando pessoas puderam assistir uma guerra pela televisão pela primeira vez. "Os celulares com vídeo com capacidade de transmissão possibilitaram a qualquer um noticiar uma guerra", ele escreveu em uma entrevista por e-mail. "Basta apenas estar lá"[5].

  1. Mundo da vida: a sensação é de que realmente vivemos uma espécie avançada, sofisticada, com regras, lógicas sedutoras que nos levam direto à “colonização do mundo da vida”, com extrema xenofobia, uma eterna sensação de vigilância e castração. Como isto vem aplicado e se desenvolve por meio da tecnologia, muitos nomes já foram sugeridos, como: sociedades controlativas (Deleuze 1992), pensamento único (Ramonet, 1995), pensamento maquínico (Guattari, 1991), Estado Sedutor (Debray, 1993) ou Estado de Sítio Virtual[6].
     
  2. Terrorismo de Estado: a Razão de Estado, alegando “a questão da segurança nacional” tanto usa das armas convencionais, como expõe táticas e estratégias de “guerrilha cibernética” em seu menu: “plantar dúvidas e falta de confiança”. O mais interessante é que isto é descrito como um achado da América, de uma “inteligência maquínica superior” aos pobres hackers e “guerrilheiros virtuais do Islã”, como se o excesso de confiança não fosse uma vulnerabilidade[7].
     
  3. Há uma guerra de quarta geração, em que se debatem o Império e as forças contra-hegemônicas, em luta acesa por sobrevivência econômica e ideológica – como se vê em análise postada em Nuestramerica: “Los movimientos traumáticos (sean económicos, militares o "terroristas") enel tablero mundial no están marcados por caprichos personales de eventuales gobernantes sino por necesidades estratégicas de supervivencia inmediata que tienen los Estados imperiales y el sistema capitalista [...] Bien empleada, la herramienta "terrorismo" (un arma que combina la violência militar con la Guerra de Cuarta Generación) tiene como objetivo central: Generar una conflicto (o una crisis) para luego aportar la solución más favorable a los intereses del que la emplea [...] Por ejemplo: El 11-S (activado por la CIA) en EEUU fue el detonante del conflicto, y la "guerra contraterrorista" posterior, y las invasiones a Afganistán e Irak, fueron parte de la alternativa de solución [...] El reciclamiento de las amenazas de "Al Qaeda" en Asia, África y Medio Oriente, las denuncias de Obama y los líderes europeos sobre complots "terroristas islámicos" en marcha, las detenciones masivas de "sospechosos" en EEUU y Europa, son piezas operativas del lanzamiento (y aggiornamiento) de una nueva fase de la "guerra contraterrorista" a escala global.

Neste sentido, também pode-se falar de um verdadeiro cardápio de novas tipificações sociais excludentes e punitivas, bem como de verdadeiro atentado aos princípios do Estado Democrático de Direito. O estado da pena nos revela uma penalização do público e do privado, mais ou menos como a ética invasiva do Estado Ético, no dizer do constitucionalista brasileiro:

Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um “Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (Silva, 1991, p. 100 – grifos nossos).

Ocorreu, instrumental ou estrategicamente, uma confusão deliberada entre Estado de Direito e de uma concepção de que a justiça, necessariamente, só seria válida se identificada com o aparato estatal: chama-se Estado Judicial. Esse fascismo deveria prover a moral oficial. Os ideólogos dessa atualização da RAZÃO DE ESTADOna Modernidade Tardia, em exemplo mais do que simbólico, alegam suposta legalidade do Estado de Direito Internacional (confundida com legitimidade conquistada sob o jugo do Império) para justificar a eliminação de Bin Laden em ação violadora da soberania nacional do Paquistão e o desinteresse pelo direito internacional. Com as medidas extremas do poder público, aniquilando as liberdades civis e a ética jurídica, o que não muda é a realidade de exclusão e de miséria social. Neste campo, o que temos em comum é o crescimento do lumpemproletariado (os totalmente excluídos da economia, do mercado de trabalho, das redes de inclusão social e política) à frente da violência sistêmica. Juridicamente, o lumpem se equivale a uma figura institucional do direito romano: o homo sacer. Este “homem sacro” poderia ser abatido por qualquer um, porque não poderia ser reconhecido por ninguém. Morto, era vivo. Morto na política dos homens e vivo unicamente na biologia. Surge como uma espécie de mitologia do direito penal, como se fosse a mais antiga aplicação do direito de repressão e morte. Neste mitológico direito penal, certos crimes abalam a solidez social ou, oportunamente, podem ser aplicados contra inimigos eleitos: “sacratio o resíduo enfraquecido e secularizado de uma fase arcaica na qual o direito religioso e o penal não eram ainda distintos, e a condenação à morte se apresentava como um sacrifício a divindidade...” (Agamben, 2002, p. 80). Quando o Estado se vê na condição de editar leis de exceção é sinal claro de que esta guerra está perdida, ao menos com este tipo de combate a céu aberto, vitimando muito mais inocentes do que criminosos ou soldados. Além de ser a pior crise de militarização da sociedade que se vê desde o fim da Segunda Guerra Mundial, momento em que, é bastante óbvio, todos os Estados envolvidos tomaram medidas de exceção, incluindo-se o Brasil e os “campos de concentração” criados para deter cerca de 3.000 pessoas de origem alemã, italiana e japonesa em sete Estados brasileiros (PA, PE, RJ, MG, SP, SC e RS). Não há como não ver o Estado de Exceção na legislação mexicana, mas igualmente presente em inúmeros casos pelo mundo afora.

 

A exceção inclui a exclusão

No Estado de Exceção suspende-se o ordenamento jurídico para que toda a força desmedida (não-controlada externamente, como na teoria da divisão dos poderes) possa ser exercida. Assim, quando se prevê no Estado de Direito a figura do Estado de Sítio, pode-se dizer que a exceção está prevista (dentro) do ordenamento jurídico. Entretanto, no instante exato em que se aciona esta cláusula de sobrevida do poder, imediatamente todo o direito posto estará suspenso, exatamente para que o poder possa fluir livremente, sem obstáculos ou limitações. No final da ação, após a decretação da intervenção forçosa do poder, dir-se-á que a exceção está fora do alcance do Estado de Direito, uma vez que todo o ordenamento encontrar-se-á suspenso: “O paradoxo da soberania se enuncia: ‘o soberano está ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’ [...] A especificação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei” (Agamben, 2002, p. 23). Em resumo: exceção é um conceito limítrofe, “conceito de esfera extrema”, por isso sua definição não se configura na normalidade, mas sim no limite, no caso limítrofe. Seguindo-se Agamben (2002), e aplicando-se a tautologia (ele chama de paradoxo da soberania), pode-se dizer que a lei está fora dela mesma, afinal a autoridade não precisa do direito para criar o direito (basta-lhe o poder). O controle pluripotenciário[8]ou institucional (divisão e controle dos três poderes), no fundo, também não responde satisfatoriamente à necessidade específica que gera exceções e que traz imbricações para a soberania. Diante da anormalidade, é preciso a ação eficaz do poder soberano — daí a dificuldade de se limitar a competência:

Se houver êxito na descrição das competências conferidas para o estado de exceção – seja por meio do controle recíproco, seja pela delimitação temporal, seja, enfim, como na regulamentação jurídico-estatal do estado de sítio por meio da enumeração das competências extraordinárias -, a questão da soberania será reprimida em um passo importante, mas, obviamente, não resolvida (Schmitt, 2006, p. 12).

 

O poder é mantido em detrimento do direito porque o Estado de Exceção é um “Leviatã fora da ordem”, em grave luta por autoconservação — a essência da soberania. Por isso, não-contraditoriamente, a competência excepcional busca a lógica da normalidade para definir que a exceção pretende evitar o caos jurídico: o que não elimina a ironia[9]. De todo modo, em conseqüência, defende-se o status quo, o establishment. Isto transformou a teoria do direito à exclusão em uma teoria sistêmica do status quo; apesar da redundância, não por acaso, status (firme) derivou a figura do próprio Estado, ou seja, a teoria da exceção procura a paz na Razão de Estado. Seguindo esta linha, para Carl Schmitt, a dominação estatal está baseada no monopólio decisional acerca do próprio uso do poder/coerção. Apesar da teoria da exceção se valer da lógica formal (mas provocando-nos com o raciocínio indutivo), a razão em que se baseia o Estado de Exceção, não é a Razão da autonomia. De acordo com o raciocínio da exceção, basta ter suficiente razão/coerção. Portanto, dado que há o poder que se quer estabelecido, a exceção não está fora, mas dentro da regra e de sua lógica — “para se excluir, a regra se incluiu”:

A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral [...] A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta [...] Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex capere) e não simplesmente excluída [...] Deleuze pôde assim escrever que “a soberania não reina a não ser sobre aquilo que é capaz de interiorizar[10]” (Agamben, 2002, p. 25).

 

O Estado de Exceção é um limiar — entre caos[11]e normalidade, dentro e fora, certo e errado, interno/externo. É uma nebulosa que serve ao status. Neste caso, o poder soberano é capaz de capturar o que está fora e, ao mesmo tempo, excluir o que está dentro, fazendo uso desta nebulosa. Por isso, a nebulosa coloca-se entre caos e ordem. Pode-se dizer que “incluiu-se a exclusão”: “A tendência jurídico-estatal de regular o estado de exceção de forma mais aprofundada possível significa somente a tentativa de descrever, precisamente, o caso no qual o direito suspende a si mesmo” (Schmitt, 2006, p. 14). Mas, para fechar sua defesa do preceito, Carl Schmitt utiliza-se de um aparente paradoxo e assim busca manter acesa sua retórica, buscando evitar a desmistificação da falácia da exceção.

 

O caos social que não se conclui

Também é óbvio que o Estado mexicano já reconheceu a guerra civil em que se meteu, depois de ditadura constitucional chefiada pelo corrupto Partido Revolucionário Institucional, invitando-se a agir com leis de exceção e na base do Terrorismo de Estado. em 2012, em meio à violência extremada da capital paulista, chegou-se a supor o resgate da Lei de Segurança Nacional[12]– certamente, esta lei de exceção forjaria o Terrorismo de Estado que se implantaria no epicentro da guerra civil. Diferentemente do Brasil, na região de Chiapas, no México, o Terrorismo de Estado chegou perto de um democídio, com a eliminação de parte da população: “assassinato de qualquer pessoa ou pessoas por um governo, incluindo o genocídio, politicídio e assassinato em massa. Democídio não é necessariamente a eliminação de todos os grupos culturais, mas sim grupos dentro do país que o governo acredita que devem ser erradicados por motivos políticos e por causa de suas ameaças futuras”[13]. No democídio, o Governo mata os seus cidadãos[14]. Comparativamente, primeiro que, no Brasil, a violência está espalhada por todo o território e não concentrada em regiões – como Ciudad Juaréz, no norte do México –, depois, nossos cartéis não estão em guerra declarada entre si, por fim, como a violência está diluída em conta-gotas que não seca, parece que temos o crime controlado. Este faz de conta alimenta a hipocrisia pública e impede que se perceba a gravidade da guerra civil nacional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2002.

____ Estado de Exceção.São Paulo : Boitempo, 2004.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.

MARTINEZ, Vinício C. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP/Marília, 2010.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte : Del Rey, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2013-02-11/nova-abordagem-de-presidente-mexicano-contra-violencia-e-questionavel.html

[2]Em 2007, os gastos militares “não-convencionais”, em alta tecnologia militar, elevou-se a 17;8%, num total de US$ 45 bilhões, e já disponibiliza de uma outra unidade de guerra de informação.

[3]A China já testou mísseis anti-satélites e os EUA já têm “aviões de guerra não-tripulados”.

[4]É como pode-se ler esta declaração do chefe de polícia de Nova Iorque: "A Internet é o novo Afeganistão’, disse Kelly, ao divulgar um relatório sobre a ameaça dentro do país de extremistas islâmicos. ‘É o terreno de treinamento de fato. É uma área de preocupação.’ O relatório concluiu que o desafio para as autoridades ocidentais foi identificar e prevenir ameaças domésticas, o que é difícil porque muitos dos eventuais terroristas não costumam cometer crimes em seu caminho para o extremismo. O relatório identificou quatro estágios até a radicalização, como a pré-radicalização, a auto-identificação, a doutrinação e a ‘jihadização’. Ele diz que a Internet é o veículo desse processo”. Em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1833475-EI4802,00.html.

[6]http://www.gobiernoelectronico.org/node/5147

[7]"Não é possível capturar, matar ou encarcerar idéias’ (sic), disse o tentente coronel Joseph Felter, diretor do Centro de Combate ao Terrorismo na academia militar em West Point [...] Frank Cilluffo, diretor de segurança da Universidade George Washington, disse que a Internet criou um ‘grande mundo sem fronteiras’. ‘Salas de bate-papo na Internet estão suplementando mesquitas, centros comunitários e cafés como pontos de recrutamento e radicalização de grupos terroristas, como a Al-Qaeda’, ele disse. Para combater isso, Cilluffo apontou táticas para invadir as comunidades online e utilizar sua própria natureza como vantagem para os Estados Unidos. ‘É possível que um oficial de inteligência se passe por um simpatizante e se infiltre em uma comunidade extremista, por exemplo’, disse o diretor. ‘Confusão, dúvida e falta de confiança também podem ser plantadas para destruir os laços entre os indivíduos extremistas e impedi-los de se transformarem em um grupo coeso e perigoso." Em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1592998-EI4802,00.html.

[8]Poder-se-ia pensar na proteção do direito internacional, a fim de que não ocorressem abusos demasiados na aplicação do “direito de exclusão”, já a partir da Paz perpétua de Kant. Porém, exemplos recentes como da Guerra dos Bálcãs e a invasão do Iraque, mostram-nos o oposto.

[9]Faz-se a “suspensão do Estado de Direito” para evitar o caos jurídico.

[10]Refere-se ao Deleuze dos Mil Platôs.

[11]O regime democrático é capaz de suportar o acaso, mas a exceção o interpreta como caos, por desconhecer completamente a flexibilidade e a tolerância, necessárias ao envolvimento deste acaso, até sua absorção.

[12]A LEI Nº 7.170, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1983 estabelece:Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I - a integridade territorial e a soberania nacional; Il - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; Ill - a pessoa dos chefes dos Poderes da União. (grifos nossos).

[13]http://real-agenda.com/2012/02/23/democidio-quando-o-governo-mata-os-seus-cidadaos/.

[14]De modo diverso, o genocídio é lembrado pelo assassinato seletivo de determinadas etnias ou culturas.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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