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Vinício Carrilho

O direito de ser vendido


Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 

Uma matéria trazia o seguinte lide: “Milionários chineses estão à procura de esposas. Cerca de três mil candidatas participaram de um concurso [...] mas apenas 200 foram selecionadas. Para contratar o serviço de procura matrimonial é preciso desembolsar pelo menos 15 milhões de dólares. Os menos afortunados podem optar por inúmeras agências de casamento em Pequim”. Quer dizer, os mais pobres ficam solteiros ou procuram o SUS sentimental.O direito de ser vendido - Gente de Opinião

Vamos tentar ver esses casos sob o olhar dos direitos humanos. É possível vermos como se opõe a noção ocidental de direitos e a própria realidade dos direitos humanos em nossas sociedades. Não se trata de uma situação isolada da sociedade chinesa, nem se refere às diferenças extremas (?) que possam haver entre Oriente e Ocidente. No fundo, esse tipo de ocorrência bem poderia ser noticiada como tendo ocorrido em São Paulo ou em Paris. Na verdade, o que menos conta é onde ou como ocorreram, e sim o porquê de tais ocorrências.

O que conta é a relação bastante espúria que muitas vezes se estabelece entre o direito e a economia. Em outros casos, o Estado admite que se negocie com a vida: a saúde, a vida, depende da cobertura dos planos de saúde que se tem ou não, vendem-se bebês, órgãos humanos, derivados de sangue. Muitos são pagos para testarem novos medicamentos.

No exemplo chinês, se fosse negado a essas mulheres o direito de dizer sim ou não, é óbvio, seriam casos de tráfico de mulheres e, portanto, de escravidão. Se lhes fossem dadas pequenas quantias em dinheiro seriam consideradas como prostitutas. Mas, como são milhões para os agenciadores e um casamento legal, sob a supervisão do Estado, e valendo muitos milhões às noivas, aí são apenas uma excentricidade milionária de uma sociedade problemática.

Digamos que se trata de uma nova fase do direito à vida. Historicamente, o direito ao “bem maior” foi conquistado junto ao Estado que, literalmente, dispunha da vida e da morte dos súditos. Ou seja, o direito à vida coincide com a formação do cidadão, com a proclamação da liberdade e da igualdade de pobres e ricos, homens e mulheres. Debate-se, contudo, se este direito foi doado ou conquistado e se, na prática, há liberdade e igualdade. É claro que, na realidade, constituíram-se como igualdade jurídica (“todos são iguais perante a lei”) e da liberdade de compra e venda. Poucos se lembram que quem decide é aquele que detém o poder econômico de comprar, de dizer sim à relação econômica.

Em todo caso, o direito à vida teria sido doado porque o Estado, pressionado pela economia, percebeu que era mais lucrativo manter a vida do que impor a morte. Hoje, então, que o diga a indústria farmacêutica: só no Brasil são 50 bilhões de reais por ano. Até a indústria bélica produz com a lógica de provocar ferimentos e não propriamente matar, pois um soldado ferido precisa de dois para transportá-lo; além do custo medicamentoso de sua recuperação. Portanto, a vida é mais lucrativa do que a morte e assim o direito deveria ser declarado.

É óbvio que as noivas contempladas estarão em felicidade maior como esposas de milionários. Por isso, não cabe aqui a discussão de saber se o casamento faria bem ou mal a essas pessoas que se veem como objeto de compra e venda. As noivas-mercadorias, mesmo que ricas, abdicam de sua integridade, portam-se como produtos prontos a serem consumidos. As noivas-produtos não podem ser expostas como carne no açougue.

Em todo caso, parece-nos, sobretudo pela lógica, que o direito à vida não pode ser vendido. Do mesmo modo que não se admite, ontologicamente, isto é, pela lógica criada no curso evolutivo da história, que alguém se coloque “livremente” como escravo. A consciência que criamos historicamente não mais nos permite, com um mínimo de respeito à lógica, imaginar que um homem livre abdique de sua liberdade.

Se hoje sabemos, com plena consciência, que não há vida inteligente sem liberdade, com mais razão concordaríamos que sem dignidade não há direito à vida. Enfim, ninguém pode ser comprado ou vendido, nem por muito nem por pouco dinheiro. É preciso revelar a hipocrisia que ainda existe no sistema jurídico.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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