Terça-feira, 17 de junho de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Fernandinho Beira-Mar: O teólogo do século XXI


Faz alguns dias que vejo uma ou outra nota dizendo que Fernandinho Beira-Mar, um dos maiores traficantes e talvez o mais violento assassino que tenhamos conhecido na história recente do país, quer se tornar teólogo. Aliás, ouço isso desde seu último julgamento, quando foi condenado a mais de 80 anos de prisão – fora os tantos anos que ainda para cumprir da pena atual e das condenações que ainda advirão, nos julgamentos futuros.

 Fernandinho Beira-Mar: O teólogo do século XXI - Gente de Opinião

Aprovado no vestibular da FTBP (Faculdade Teológica Batista do Paraná), Beira-Mar realizará o curso à distância, por meio de apostilas [...] Como já havia um detento cursando teologia dentro do presídio, o capelão sugeriu que se inscrevesse no vestibular [...] A mensalidade, no valor de R$ 242,00, será paga pela Igreja Batista do Bacacheri, que decidiu doar uma bolsa de estudo ao traficante [...] Na semana passada, durante julgamento no Rio de Janeiro que o condenou a mais 80 anos de prisão por ordenar assassinatos, Beira-Mar revelou que estava cursando teologia, admitiu alguns crimes, disse que sofria muito e queria pagar o que deve à Justiça[1].

Se me perguntar se apostaria minhas fichas na teologia de Beira-Mar, diria que não. Que noções ou exemplos de “profecia” teria Beira-Mar para nos transmitir? Porém, condenado a algumas centenas de anos de prisão em regime fechado, em presídios de altíssima segurança, o que ele tem a perder? Imagino como seria o Fernandinho Beira-Mar estudando sobre a vida de Santo Agostinho (o Santo Pecador) ou o Estado Penal, nas aulas de sociologia.

Antes mesmo dessa última matéria já tinha me chamado a atenção este desejo súbito (ou não) de arrependimento ou remissão da alma. Há muito tempo, aliás, ainda em 2011, fiz uma pergunta nessa linha a alguns alunos no grupo de estudos: Fernandinho Beira-Mar poderia se converter à vida social, seria capaz da ressocialização?

Na época, disse-lhes que minha convicção pessoal não me deixava acreditar. O que, diga-se de passagem, não quer dizer nada, porque a ressocialização de ninguém depende mim, depende dele mesmo e das condições objetivas a que estiver sujeito. Todos nós, no fundo, passamos por um processo intenso de ressocialização: quem se habituou a trabalhar durante uma década, de uma forma, hoje é sério candidato ao desemprego se não se amoldar às novas contingências. Lembro-me que um taxista me disse que as “moças” atendentes de chamadas estavam em processo de treinamento, porque o sistema estava sendo informatizado, e algumas se mostravam incapazes de assimilar as novas técnicas. Ou seja, é provável que algumas tenham sido demitidas. No ensino privado – muito mais do que no público – professores são desafiados pelas novas/velhas tecnologias e, se não respondem como querem seus alunos (seus clientes), podem ser reprovados na metodologia e assim também são ameaçados de demissão.

Assim, independente de responder se Fernandinho Beira-Mar será capaz de se tornar um teólogo, pergunto a você leitor(a): “você está pronto para atender à necessidade da ressocialização?”. Quando me mudei para cá, vindo de São Paulo, há quatro anos, sabia que precisaria me “reinventar”. Só eu sei o que foi preciso para ver minha própria ressocialização. Então, você está pronto para se ajustar aos desafios éticos, tecnológicos, culturais, sociais colocados pelo século XXI? Pois é, como se diz, o buraco é mais embaixo.

 Sumariamente, a pena de prisão precisa ensinar uma lição básica: restaurar o desejo de ser livre e incutir a vontade de viver em sociedade; mas, hoje é incapaz de ressocializar, portanto, é incapaz de produzir o óbvio: a aspiração de conviver em liberdade. A prisão precisa, no mínimo, incutir o receio de reincidir; para isso, o indivíduo teria de ter apreço pela liberdade; precisaria não querer estar preso, precisaria ver na liberdade a chave que o levaria a viver com aqueles a quem tem maior amor. Para isso, no entanto, precisaria amar a liberdade. A maior ironia, sem dúvida, está em que o preso não queira ser livre, ainda mais porque, em muitos casos, até já matou para ficar livre.

De algum modo, a prisão precisa fomentar o arrependimento pessoal, à espera da reconversão social, para iniciar a construção de novos valores. Ou seja, a prisão só funciona quando impede o regresso da infração criminal, seja pela convicção do arrependimento seja pelo temor de perder a liberdade - sobretudo para aquele que está acostumado a agir sem as restrições habituais da lei e que se sente totalmente livre para fazer o que quiser.

Em nossos tempos modernos, mas muito antigos em vários sentidos, como a falta de bom senso, o Estado Penal supõe que não haja a formação de outra perspectiva, que não seja aquela que motivou o crime. Então, se não há ressocialização, é óbvio que a prisão perde significado.

Contudo, insistindo mais uma vez, é o mais grave, se as pessoas não temem perder a liberdade, se já não presam o desejo de estar libertas, é porque algo muito ruim se passa do lado de fora das grades. Se o preso não se importa de estar preso, é porque a sua vida livre era uma droga. Para o preso, nesta sociedade doente, a prisão não é pior do que a vida da maioria das pessoas. O infrator não quer para si a rotina da maioria das pessoas; mas tem o sonho do consumo. Daí também não se importar se não estiver livre e nem se você ou eu estivermos vivos ou não. É uma doença social muito maior do que saber se o Fernandinho ou qualquer outro inho vai se recuperar. A teologia é o menor dos nossos problemas.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo



[1]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1248704-fernandinho-beira-mar-comeca-a-estudar-teologia-em-presidio-federal.shtml.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoTerça-feira, 17 de junho de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Dia da Criança

Dia da Criança

Hoje não é Dia da Criança. Ou melhor, todo dia é dia da criança – e é nosso dever denunciar, lutar e combater o trabalho infantil.           Afinal

Forma-Estado na Constituição Federal de 1988

Forma-Estado na Constituição Federal de 1988

No texto, relacionamos algumas tipologias do Estado (Teoria Geral do Estado) com suas subsunções no Direito Constitucional brasileiro, especialmente

Educação Política

Educação Política

Em primeiro lugar, temos que verificar que sempre se trata de uma Autoeducação Política. Parte-se do entendimento de que sem a predisposição individ

O Livro Teorias do Estado: Estado Moderno e Estado Direito

O Livro Teorias do Estado: Estado Moderno e Estado Direito

A Teoria do Estado sob a Ótica da Teoria Política, do professor Vinício Carrilho Martinez - oferece uma leitura acessível e profunda na formação, es

Gente de Opinião Terça-feira, 17 de junho de 2025 | Porto Velho (RO)