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Vinício Carrilho

Decálogo do estudante de Direito


Este decálogo (dez razões para um diálogo) é inspirado em muitas experiências na docência e em textos, artigos e livros já lidos: o mais conhecido de todos é Oração aos Moços, de Rui Barbosa. Então, a primeira lição aprendida é que Rui Barbosa, o Águia de Haia, é também o Patrono do Direito no Brasil. Uma de suas frases ou pensamentos mais celebrados assegura que: “A força do Direito deve superar o direito da força”. É dever do futuro bacharel refletir acerca de qual direito e força Rui Barbosa fazia referência. Como é possível um estudante de direito, no segundo período, não ter uma definição ou conceito de direito que tenha incorporado ainda que parcialmente ou de modo temporário? Não dá, é como imaginar um estudante de medicina que não conhece anatomia ou o futuro engenheiro que passava apertado em matemática. É preciso ter consciência do que é o direito ou daquilo que não é e o afronta diretamente: o antidireito, como se diz. Porém, como a intenção é didática, vamos item por item:

1 –é dever acadêmico saber que direito é o culto do bom senso. Como iniciado na reflexão lógica, deverá saber que NUNCA dirá a um(a) professor(a): “gosto muito de sua pessoa, mas espero jamais ter aulas consigo”. O estudante deve estar motivado pelo BOM SENSO, quer dizer um sentido mediado de autocontenção, como sabedoria herdada do popular e que espanta o ridículo. O bom senso, de acordo com a lição dos antigos, é sinônimo de educação e de prudência. Até porque a prudência alegada nos leva a crer que, no futuro, este deseducado pode vir sim a receber novas lições deste(a) professor(a).

2 –O direito é um processo de inclusão. Em hipótese alguma o estudante de direito fará uso do bullyng, nem mesmo sob a alegação do trote. Essas situações constrangedoras, na verdade, escondem (ou revelam) preconceitos (a consciência dos lerdos), racismos, discriminações e xenofobias. Como se sabe, essas são pragas que afloram em regimes nazi-fascistas.

3 –O direito é social. Esta é a lição mais óbvia e, ao mesmo tempo, a mais complexa para se apreender. Uma lição complexa é “tecida em conjunto” (complexus) e o direito é uma teia que enreda a todos e que cresce e se modifica seguindo a própria dinâmica e o tecido social: ubi societas, ibi ius. Todo estudante deve saber disso, deve ter esta clareza, pois em seu desfavor nunca poderá alegar a ignorância das lições de primeiro ano. Quando se estuda em instituição pública a questão é muito mais grave, pois o direito à educação (como direito subjetivo) que lhe é ofertado, é uma garantia constitucional assegurada pelos recursos públicos; o que implica em dizer que as contribuições do povo é que lhe garantem a presença “sem custos” na sala de aula. Dizendo de outro modo, sem que o povo (muitas vezes analfabeto, mas sempre trabalhador) contribuísse, pagando seu assento, jamais alimentaria seu sonho de se tornar bacharel em direito. No assento acadêmico, a consciência deve ser acentuada. Também é claro, mas vale dizer que o social cria o direito para ser cumprido, não apenas uma promessa sem futuro, e isto requer força, determinação. Enfim, para ser cumprido, além de convicção, o direito é coerção.

4 –O direito é luta. Há uma intensa e eterna luta pelo direito. Esta máxima tanto vale para o pensamento histórico que recobre o direito – nas lutas contra a escravidão, a tirania, pela descolonização – , quanto vale para a vida do cidadão comum. O brocardo jurídico assegura que “o direito não socorre a quem dorme” e isto quer dizer que se você tem um direito (ou expectativa de direito) e não luta por ele, somente a derrota estará assegurada. O tempo da prescrição correrá contra a alegação de justiça lançada pelo sujeito de direitos, se não lutar pelo direito. Não é preciso dizer que milhares/milhões de pessoas morreram e outras tantas morrerão por esta crença.

5 –Direito é poder e liberdade. O direito é liberdade para requisitar o próprio direito. Pois, sem liberdade para pensar e agir, não há direito algum assegurado. Sem liberdade, não há nem mesmo o direito de se julgar sujeito de direitos, uma vez que sem a liberdade o sujeito é dominado, tutelado, estando sujeito à vontade dos outros. A liberdade é a gênese do Direito a ter direitos – e isto não é uma tese, é a realidade histórica na origem do primeiro direito, do direito básico, que é exatamente o direito de poder esperar pela conquista de outros direitos. Aliás, sem o direito, o indivíduo não se converte em sujeito de direitos porque aquele que detém o poder irá impor sua vontade contra o direito dos demais. Toda a história da Humanidade nos mostra como o direito precisa da liberdade para ser requisitado e de garantias sociais e normativas para ser exercido. A liberdade do sujeito de direitos é o melhor remédio jurídico contra o uso/abusivo do poder político. Se o direito corresponde ao poder do Estado, então, a liberdade é a garantia de que este poder não será utilizado contra os cidadãos. A liberdade é a garantia de que haverá autolimitação do poder público, em defesa dos cidadãos. A liberdade é o esteio do Estado de Direito: império da lei, separação dos poderes, prevalência dos direitos fundamentais. Como dominação, o direito precisa da liberdade para ser equilibrado, para não ser o mero reflexo do poder dos mais fortes.

6 –O direito é uma superestrutura. Como realidade social ampliada, ainda mais atualmente em que o mundo da vida está absolutamente globalizado, a superestrutura jurídicadecorre/depende de uma infraestrutura necessária, determinada e independente. O mundo da vida, o mundo do trabalho, as condições reais, objetivas, concretas de vida, do trabalho e da produção em que as pessoas se encontram devem ser pensadas como condicionantes da realidade jurídica. Não é o direito que determina ou que transforma a realidade, é exatamente o contrário, uma vez que os ideais podem instigar-nos, mas será a práxis a dar o impulso e a conferir a força necessária às mudanças mais profundas e significativas.

7 –O direito é reto. Do latim directus, e directo no português do século XIII, o direitosegue regras pré-determinadas ou preceitos determinadosno caminho da Justiça. Ainda que se possa dizer que a definição de Justiça está na cabeça de cada um, que há muito subjetivismo em sua alegação, é preciso saber que nenhum direito ou decisão em seu nome pode provocar injustiças. As chamadas leis injustas devem ser espancadas até que tenhamos vergonha de um dia as termos praticado. Neste caso, cabe a Desobediência Civil, como não-cumprimento da ordem injusta.

8 –Direito não é lei. O direito engloba a lei, assim como regulamentos, normas sociais, hábitos, portarias, costumes e práticas sociais. Além da jurisprudência, doutrinas, princípios gerais do direito. A definição de que o direito é o conjunto, a soma das regras jurídicas não encanta nem mesmo o mais severo ou ingênuo dos positivistas.

9 –O direito é positivo. Como processo inclusivo, reflexivo, o direito tem um efeito direto e imediato, afirmando-se como processo civilizatório. Isto é, com o direito em curso afirmativo no seio social, outras formas de convivência social como a violência, as tradições, o regionalismo cedem gradativamente espaço às conquistas racionais, universais do direito. O direito é positivo sem ser, necessariamente, positivista.

10 –Direito é razão. Este item talvez indique a mais teórica das dimensões do direito. Guiados por este argumento muitos alegam ser o direito uma ciência e não ideologia ou “disciplina axiológica”. Requer-se o status de ciência jurídica. Sob este prisma, poderíamos afastar as críticas de que o direito serve tão-somente de cursor para as ideologias dominantes, sendo o próprio direito a ideologia dos grupos ou das classes dominantes. Portanto, se o direito é razão, implica em dizer que se trata de uma construção consciente, elaborada, pensada, lógica e não imposta por outra força que não seja a própria razão. Afinal, não há razão sem liberdade; com liberdade e razão para crer, o consentimento é obtido com o convencimento. A força da lógica, do melhor argumento é a essência da razão que alimenta o direito. Com razão, o direito é convencimento, uma resposta inteligente às formas não-razoáveis do poder. Convencimento é vencer com, vencer junto, e isto indica que o direito é um poder que soma, pois vencemos juntos. Com o direito, vencemos coletivamente. De acordo com os clássicos, desse modo, o direito permite escapar da chamada “soma-zero”. Pois, se vencemos em conjunto é porque todos ganhamos com a presença do direito. Logo, com vitórias sociais agregadas, nunca haverá um resultado negativo. O direito, portanto, é capaz de racionalmente gerar valores, instigar uma soma conjugada de práticas que animem positivamente um círculo virtuoso. Mesmo que alguém perca uma demanda, todos, inclusive o perdedor, ganharam indubitavelmente com a presença e atuação do direito. A mesma razão do bom senso nos leva a concluir que o direito deve ser justo, e isto revela suas bases morais e éticas.

Agora, sem a crença de que o direito pode/deve ser o guia da vida comum das pessoas, a forma de regular o poder e a dominação exercida sobre outros homens, não há como discutir e nem supor a existência do próprio direito. Em suma, o direito é a crença na qual acreditamos como um meio legítimo, racional, equilibrado, justo, como o melhor meio para regular nossas vidas. O direito é uma ficção, porque acreditamos mais no que está escrito na forma da lei do que nas práticas sociais que constroem esta mesma base legal. Quando Rui Barbosa diz que “a força do Direito deve superar o direito da força”, quer expressara crença no direito. Mas, um pragmatismo jurídico preguiçoso, piegas, nos leva a acreditar na lei e não exatamente no direito. De certo modo, acreditamos mais na promessa da lei do que no direito construído, conquistado, porque este requer reflexão e a lei está pronta, editada e à espera de ser citada para garantir a conquista de um suposto direito. O que, por fim, exige de todos os estudantes, quer sejam alunos ou professores, uma aproximação sempre crítica ao direito. Estudar o direito exige uma postura crítica, sempre criativa, pois é só assim que se constroem referências justas. Todo estudante de direito tem até o primeiro ano de curso para ter essas informações, se não as tem é porque ainda não é um estudante do direito.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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