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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Cultura Jurídica


3ª Parte

Cultura Jurídica

 
 

A expressão cultura jurídica sempre esteve atrelada à ideia de dogmática jurídica, com conteúdos e conceitos legais alçados à condição de dogmas. Também devemos distinguir outras locuções, a exemplo de pensamento jurídico e doutrina jurídica. Pensamento Jurídico é uma hipótese ou conjunto de hipóteses oriundas das técnicas profissionais próprias do meio jurídico e dizem respeito a uma possível natureza e condições específicas ou características provindas deste conjunto técnico – além de se destacar uma função precípua do direito.

Dogmática Jurídica expressa uma determinada fase histórica da cultura jurídica ocidental. Mais especificamente a partir da influência alemã, a locução passou a expressar maneiras de tratar e de expor o direito positivo, relacionando e de forma a se embasar a partir de categorias conceituais (dogmas), tais como “negócio jurídico”, “ato jurídico”, “Estado de Direito”, “Segurança Jurídica”. Dogmática Jurídica ainda expressa um conjunto de técnicas operacionais e interpretativas do direito, baseadas em conceitos e dogmas. Doutrina Jurídica constitui uma parte significativa da cultura jurídica, valendo-se de especificações e de interpretações dos grandes sistemas dogmáticos do direito. Por fim, todas essas locuções devem ser diferenciadas da ciência jurídica:

Essa expressão é empregada de duas formas: (a) uma utilização ideológica em que as formulações dos juristas correspondem, ou devem corresponder a uma sistematização racional inteiramente análoga à das “ciências sociais”; (b) e uma utilização mais fraca, própria da linguagem corrente com a qual “ciência jurídica” é sinônimo de “doutrina jurídica” (Arnaud, 1999, p. 197).

 

Na expressão de Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “a ciência não se limita somente a constatar o que existiu e o que existe, mas também o que existirá, ela tem um sentido operacional manifesto, constituindo um sistema de previsões prováveis e seguras, bem como de reprodução e interferência nos fenômenos que descreve” (1980, pp. 10-11). Nesse sentido, tomemos o direito por ciência. Assim, o direito com capacidade de prevenção (trata-se da previsão) é capaz de prover melhores meios de regulação, onde não haja somente punição e restrição (à liberdade, por exemplo), mas sim emancipação: pode-se pensar aqui na autotutela, na auto-organização, arbitragem, autonomia privada. Desse modo, é esencial a diferenciação entre direito, lei, jurisprudência, costumes, regras e normas sociais. Como alerta Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “a justiça é o princípio e o problema moral do direito” (2003, p. 356). Porém, há distinções mais claras:

...há uma diferença importante entre a norma jurídica e o preceito moral. Enquanto aquela admite a separação entre a ação motivada e o motivo da ação, o preceito moral sempre os considera solidariamente. Isto é, o direito pode punir o ato independentemente dos motivos – por exemplo, nos casos de responsabilidade objetiva – mas isto não ocorre com a moral, para a qual a motivação e a ação motivada são inseparáveis (Ferraz Jr, 2003, p. 357).

 

            É possível ver uma natureza jurídica mais aproximativa do direito aos valores sociais. Antônio José Miguel F. Rosa, por exemplo, procura restringir as diferenças ou discrepâncias entre as regras jurídicas e os valores socialmente acalentados, pois, desta forma, esses valores e princípios também seriam imperativos do direito:

O direito resulta da ordem de vida moral realmente exercida, prepara o comportamento moral dos homens, apóia e arca com seu poder, a ordem moral. O direito vige, portanto, porque se baseia na ordem moral existente historicamente [...] Apenas uma parte dos mandamentos morais são mandamentos jurídicos, mas todo mandamento jurídico é, ao mesmo tempo, mandamento moral [...] O direito surge, portanto, sem dúvida, da vida social, mas se ergue ao mesmo tempo como exigência imperativa da vida, vida que gira em torno de conflitos de valores (1999, p. 20-21).

 

No sentido técnico ou mais precisamente jurídico, as diferenças são mais acentuadas e marcadas por quesitos mais rígidos ou funcionais, isto é, o direito tem elementos próprios e restritos à sua funcionalidade (o direito estabelece e regula sua própria função e seu funcionamento) e a moral não apresenta esses elementos técnicos:

Pelo menos, podemos dizer que as sanções morais nunca são conteúdo de seus preceitos, ao passo que normas jurídicas ao caracterizadas por prescreverem expressamente suas sanções. A isso se acrescente outro aspecto: enquanto o direito admite as chamadas normas permissivas de conteúdo próprio, a permissão moral é sempre a contrário sensu, ou seja, permitido é o que não é moralmente proibido. O direito e só o direito permite expressamente [...] Os sistemas normativos jurídicos podem ser auto-suficientes, pois contém normas sobre o reconhecimento, a mudança e a aplicação do próprio direito. A moral não tem normas secundárias, salvo se a jurisdicizamos (Ferraz Jr, 2003, p. 358).

 

O direito também se relaciona com o poder, como forma de imposição, e como busca de um sentido de justiça, que se completaria com a justiça fática. Mas, o que se destaca é sem dúvida o chamado uso da força (e ainda que muitas vezes de forma ilegítima):

O que constitui o direito e que lhe confere realidade é o estabelecimento de relações metacomplementares, hierárquicas, de autoridade/sujeito. Nesses termos, o direito é uma organização de relações de poder. Seu princípio constitutivo é a impositividade autoritária. Todavia, seu princípio regulativo, que lhe confere sentido, é a justiça (Ferraz Jr, 2003, p. 358).

 

Contudo, ainda que limítrofe ao poder, o direito é uma espécie de bom-senso, o eixo de gravitação do direito consensual. De outra forma, no entanto, o arbítrio e a imposição não geram o consenso, um tipo de “senso em comum”, como valor compartilhado. Ao contrário, geram só um ato imposto, nunca requerido e nem aceito. Estes dois parágrafos são eles próprios exemplos do senso comum acerca do Direito: o que pensamos em comum do bom-senso. Direito também é senso-comum: no sentido de consenso (mas ainda temporário, provisório e apenas relativamente duradouro). Neste caso, há uma nebulosa envolvendo nossa percepção do sentido do direito – quando o bom-senso ainda não foi estabelecido. Por isso, direito não é sinônimo de justiça: esta, a justiça, como opção pelo direito correto, pelo melhor; já o direito pode se apresentar como simples consenso, como avaliação geral de que seu descumprimento poderia implicar em punições e aflições. Isto é, nem sempre se cumpre o direito porque se quer, julgando-lhe correto, mas porque é imposto, forçosamente. O direito como “consenso pleno e real”, portanto, é um direito requerido, que se requer – é querido, porque se quer livremente. O direito imposto, no entanto, pode ser cumprido em virtude do bom-senso – o medo é um alerta, um sinal de sobrevivência, uma indicação de que os efeitos da sanção/coerção são por demais aflitivos[1]. O Ddireito imposto, enfim, pode claramente contrariar o princípio de justiça:

A justiça enquanto código doador de sentido ao direito é um princípio regulativo do direito, mas não constitutivo. Ou seja, embora o direito imoral seja destituído de sentido, isto não quer dizer que ele não exista concretamente. A imoralidade faz com que a obrigação perca sentido, mas não torna a obrigação juridicamente inválida (Ferraz Jr, 2003, p. 358).

 

            O direito seguido da aplicação da sanção é um direito penoso, pesaroso, enquanto o consenso traz como primeiro resultado a negociação e a aceitação. O consenso (direito proposto, debatido, aceito e “promulgado”) é bem dito; em oposição ao arbítrio inerente ao Direito Imposto, sendo uma grande parte do Direito Posto. Se o Direito é requerido, acaba aceito; se o Direito é imposto, acaba contestado. O direito consensual é inerentemente coletivo, já a imposição tem reflexos particularizados: as sanções são implicações afetas a atos específicos. “Vós sois responsáveis por vossos atos”: embora nem todos os responsáveis sejam responsabilizados. O direito construído socialmente (não só promulgado) é desejado e bem vindo; já o mero “império da lei”, a condição de aplicabilidade/aplicação, pode ser mal-sã, pode faltar-lhe a legitimidade essencial. Assim, o direito é tanto o desejo por justiça quanto a repulsa ao arbitrio; mas pode ser inclinação ao abuso da força, justificando “a tirania dos poderosos”. O Bom Direito é um exercício de comando (“efetuar com...”), ao passo que a imposição revela o ato e o autor do mandonismo. O Comando representa, o mandonismo quer simular. O primeiro é a súmula de cada um, o interior “comum a todos”, o segundo é o sumo de um só (seja ele o tirano, seja o Estado):

Podemos entender, desse modo, por que a arbitrariedade é sempre mal vista no mundo jurídico. A renúncia ao sentido comum, ao que pode ser em comum, priva o direito de seu sentido. Um direito estabelecido arbitrariamente constitui-se como tal e pode mesmo servir a alguma finalidade. E, como tal, pode gozar de império, ser reconhecido como válido e até ser efetivo [...] Por isso, também nesses termos, a exigência moral de justiça é uma espécie de condição para que o direito tenha um sentido. A arbitrariedade, assim, priva o direito de seu sentido, porque torna as normas de conduta mera imposição, unilateral, que prescinde dos outros enquanto um mundo comum. Daí a inevitável conotação da arbitrariedade com violência e conseqüente redução do sujeito passivo das normas a uma espécie de impotência confundida com obediência (2003, p. 358).

 

            Esta é a ideia resumida do que se chama de ilícito legal, quando a lei afronta o Ddireito, a justiça, o bom-senso. Neste caso, há o direito ou o dever de resistência à opressão e à injustiça? A resposta é, obviamente, sim, sobretudo se avaliarmos que não pode haver direito ou Estado legítimo sem liberdade e consciência em torno da justiça a ser materializada. Antônio Rosa resume a questão da seguinte forma:

A ideia básica saiu da filosofia de Kant, quando expõe que “o Estado só pode exigir a imposição do Direito até o ponto em que ele pode desejar do cidadão racional o seu livre consentimento”. E encontramos na “Declaração de Direitos”, de Maryland, Estados Unidos, de 5 de outubro de 1767, que “a doutrina da não-resistência ao poder arbitrário e à opressão é absurda, servil, é destruidora do bem e da felicidade da humanidade”. Essas normas morais seriam o fundamento básico, não escrito, de toda e qualquer Constituição  (Rosa, 1999, p. 21).

 

O que temos, enfim, é um claro desacordo entre direito e lei – o que também leva muitos recitarem que no ramo jurídico, a teoria na prática é outra. Estarão dizendo ou reforçando a ideia de que a lei e a prática jurídica (ou judicial) são dissonantes, discrepantes do ideal de justiça. No fundo, diz-se que o debate sobre a justiça pertence à Filosofia do Direito e que a prática processual deve apenas bastar-se com o encontro do dispositivo legal mais satisfatório. Na prática, dizem, o que interessa é ganhar a causa e não filosofar – neste caso, qual é o limite da honestidade? Para estes, o direito é uma disputa de vale-tudo? O Estado tem que ser regulado, até por força do direito internacional:

O desacordo entre direito e lei, entre direito nacional e supranacional, adquire, contudo, uma atualidade trágica no Estado que, levado por uma ideia de missão, opõe sua lei positiva à ideia de direito e à consciência cultural supranacional, persistindo por um lado na execução de seus imperativos contrários à moral, e confirmando, por outro, ao executor de suas disposições imorais, a conformidade ao direito, de seu atuar (Rosa, 1999, p. 22).

 

O brocardo jurídico indica que, havendo choque entre direito e justiça, deve-se optar pela justiça. Rosa ainda lembra a jurisprudência da Suprema Corte americana ao julgar os crimes de guerra nazistas:

‘A liberdade de um Estado para definir em seu território o que deve ser direito e o que deve ser injusto, por ampla que seja, não está ausente de limitações. Na consciência de todos os povos civilizados dá-se, apesar das diferenças que mostram os ordenamentos jurídicos nacionais em particular, um certo núcleo do direito, que, conforme a convicção jurídica geral, não pode ser infringido por lei alguma nem por qualquer outra medida governamental [...] pode-se, pois, considerar reconhecido o princípio ‘que as disposições que não perseguem sequer a justiça, que contraíram conscientemente os pensamentos de igualdade e que desatendem claramente as convicções jurídicas comuns a todos os povos civilizados, referidas ao valor e à dignidade da personalidade humana, não criam direito algum, e que as condutas adequadas a tais disposições continuam sendo injustas (Rosa, 1999, pp. 22-23).

 

O direito não pode contrariar o bom-senso, isto é, constitui parte da missão/obrigação dos agentes interessados na transformação do direito, do Estado e da sociedade, obstruírem toda formulação/aplicação de leis injustas. Pois, se o núcleo do direito é também seu guia (como núcleo de verdade ou reserva de bondade), então, o direito não pode fugir a esta constituição em prol da justiça: “Conforme os princípios antes mencionados, as ações que infringem o núcleo do direito, não serão justificadas invocando o direito positivo nacional” (Rosa, 1999, p. 23). É uma resposta clara aos que alegam cinicamente que os direitos humanos não têm força de lei e, por isso, não precisam ser cumpridos – não haveria obrigação, porque não há força. Uma falácia dos que querem esconder a injustiça por trás da lei imoral. Por isso, o direito tanto pode ser o direito Justo (aproximado na moral, dos valores socialmente equiparados ao “correto, reto”), quanto pode ser imoral, contrariando a moral estabelecida como princípio de justiça pela sociedade. O direito social é próximo à moral, o direito como simples poder é o malgrado uso da força. O estudo do direito, enfim, esclarece tanto sobre a justiça quanto acerca do cinismo, da injustiça: “O direito, em suma, privado de moralidade, perde sentido, embora não perca necessariamente império, validade, eficácia” (Ferraz Jr, 2003, p. 359). 

    Mas, se o ideal aponta para a aproximação ou encontro entre moral e direito (legítimo), porque é que a justiça raramente se apresenta munida de império, validade e eficácia? Por que o direito pode ser tão injusto e a justiça tão impotente? É possível reverter este quadro a partir do próprio do núcleo ou reserva de justiça do direito?

Direito e ordenamento jurídico

Há uma consideração plausível e racional entre meios (ações e órgãos estatais) e fins (públicos e/ou privados) que não são excludentes da possibilidade ética:

As relações entre os meios e os fins dos indivíduos justificáveis, por um lado, e da ética social, por outro, podem apresentar todos os padrões logicamente possíveis. A igualdade ideal-racional dos itens individualizados que são valores finais de uma concepção respeitosa de justiça pode aplicar-se tanto aos meios ou às liberdades quanto aos objetivos ou satisfações dos indivíduos (Kolm, 2000, p. 62).

 

            Do mesmo modo nos alertava o clássico jurista alemão do século XX que, o direito violado (deliberadamente ou não) pelo Estado deve ter o direito reintegrado à ótica diretiva da justiça e assim receber a devida indenização pelo mal provocado por órgão ou agente do Estado:

Se o direito for violado por um ato antijurídico do órgão, o objetivo do processo pode ser a anulação do ato antijurídico; se o direito for violado pela omissão antijurídica de um ato do Estado prescrito pelo Direito, o objetivo do processo pode ser o de obter reparação pelo dano causado antijuridicamente. Tais direitos de pessoas privadas contra o Estado existem, não apenas no Direito civil, mas também no Direito constitucional e administrativo, no chamado Direito “público” (Kelsen, 1998, p. 289 – grifos nossos).

 

            No direito moderno, o soberano não reina só, ainda que do alto do chamado Poder Extroverso do Estado, pois não se reconhece soberania sem legitimidade e Justiça, ou seja, de nada vale a segurança da estatalidade sem a liberdade do indivíduo que, realmente, assegure a soberania popular. Neste caso, a desigualdade traria conformidade à própria lei, destacando privilégios no ponto de partida da ação do Estado – este é o caso, por exemplo, do privilégio explícito em que a lei privada já nomeia o destinatário em seu caput. Portanto, a discriminação positiva (essencial à República), tem de ter no caput e no espírito da lei a motivação da igualdade – com o que, então, seria possível falar-se de desigualdade. Um aspecto formal, mas fundamental ao Estado de Direito Republicano é sua sujeição ao binômio da liberdade/igualdade[2]. Outro fator meramente formal, mas preponderante no Estado de Direito Republicano é a limitação dada pelo princípio da legalidade:

[...] o próprio do Estado de Direito, como se sabe, é encontrar-se, em quaisquer de suas feições, totalmente assujeitado aos parâmetros da legalidade. Inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em seguida, aos próprios termos propostos pelas leis, e, por último, adstrito à consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie, expedidos pelo Poder Público. Deste esquema, obviamente, não poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de “poder” discricionário (Mello, 2003, pp. 10-11).

 

O Estado de Direito Republicano terá de suportar plenamente o princípio da igualdade na lei, a regra da bilateralidade da norma jurídica, isto é, o Estado está sujeito às leis criadas para o conjunto dos cidadãos:

A grande novidade do Estado de Direito certamente terá sido subjugar totalmente a ação do Estado a um quadro normativo, o qual se faz, assim, impositivo para todos – Estado e indivíduos. Se fossem buscadas as raízes produtoras da feição própria do Estado de Direito, poder-se-ia encontrar a seguinte matriz: O Estado de Direito é resultante da confluência de duas vertentes de pensamento: o pensamento de Montesquieu e o pensamento de Rousseau (Mello, 2003, p. 11).

 

Portanto, para que a discriminação seja positiva, no rumo da Justiça, é preciso que alguns fatores sejam muito bem expressos, inclusive, em conformidade com os Princípios Gerais do Direito e/ou princípios constitucionais fundamentais. Sem esse mínimo de igualdade (material e formal), que possa nortear tanto a Justiça Formal quanto a Justiça Material, não é possível pensar na República. Mesmo assim é preciso especificar que as normas discriminadoras (o discrímen legal) fazem parte de um ordenamento jurídico e que, portanto, devem ser vistas como integradas e não como vontade isolada quer seja do príncipe, quer seja do legislador. Significa dizer que o Direito – como ordenamento jurídico – é um complexo: “Essa organização complexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa, portanto, que uma definição satisfatória do Direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico” (Bobbio, 1999, p. 22)[3]. É isto que diferencia a ação afirmativa, a discriminação positiva ou discrímen da mera segregação ou das medidas de exceção que só fazem agravar a desigualdade e o não-ingresso digno na vida social. Aliás, é também o aval atribuído a estas garantias do livre gozo dos direitos o que diferencia o ato do tirano, da ação soberana, forte e decisiva em prol da Justiça: “Para tanto, excluído qualquer apelo à autoridade tirânica do Estado, a comunidade política deve ter outras fontes” (Audard, 2000, p. XV). Neste sentido dado à interpretação do grande jurista americano, na fase madura da produção intelectual, como bem acentua Audard, a Justiça é um consenso capaz de equiparar, de modo equidistante, direitos e interesses individuais ou, seguindo o próprio Rawls, já nas primeiras linhas deste compêndio da fase adulta: “Essa concepção política da justiça não pressupõe nenhuma doutrina abrangente particular [...] Dessa forma, ela pode ser a base para um consenso, proveniente de uma superposição de doutrinas, em favor das instituições democráticas” (Rawls, 2000, p. XI). Então, ou temos a Justiça que se coaduna com a equidade e o respeito e cumprimento dos direitos (individuais, sociais, coletivos, públicos) ou só nos resta lamentar pelo vigor e vigência dos antigos moldes já patrocinados pela retórica oportunista da exceção:

Para resumir, poderemos dizer que o político é constituído para proteger a esfera bem mais vasta do não-político, do privado. O outro pólo, na constituição do político, é o da violência e da dominação, ameaças “existenciais”, como diria Schmitt[4], que obrigam os indivíduos a estreitar seus laços e a aceitar a ação coercitiva do Estado com vistas a preservar ou restaurar a ordem e a segurança [...] Daí a emergência do político, que, em razão do caráter quase sagrado de sua missão, escapa necessariamente ao controle da opinião e domina a sociedade civil (Audard, 2000, p. XVII).

 

Quando aproximado da cultura, o direito não admite exceção, mas deve patrocinar a diferença. E nem a omissão administrativa ou o erro judicial podem ser desculpas ou impedimentos diante dessa busca. Os direitos difusos e coletivos já trazem o significado nos próprios termos, são direitos que se difundem pelo social, pelas coletividades — não são direitos/deveres (como obediência diante do soberano, no exemplo das leis injustas e do excipio) em que o civil e o indivíduo naufragam e vêem o direito soçobrar. Desse modo, é preciso que haja uma justaposição entre direito e Justiça, entre meios e fins: “...podemos conceber para o direito quatro grandes finalidades: a justiça, a boa conduta, o serviço dos homens e o serviço da sociedade” (Bergel, 2001, p. 22). Veja-se que o serviço dos homens não contradiz o sistema social justo, o nervo axial (eixo central) da Justiça Social. O direito requerido aqui parte do contraditório, como expressão livre de vontades e interesses diacrônicos:

Consagrado por todos os direitos ocidentais, o princípio do contraditório, ao qual já faziam referência Aristóteles e Sêneca, é ligado à própria noção de justiça que é uma obra de confrontação (Bergel, 2001, p. 445).

 

Porém, isto não configura a contradição e suas fontes de negação — como requerem a lógica e a filosofia:

O individualismo, fundamentado na doutrina filosófica que afirma a realidade própria dos indivíduos em detrimento dos gêneros e das espécies, expressa-se pelas teorias que vêem no indivíduo o valor essencial no plano político, econômico e moral e implica o desenvolvimento dos direitos e das responsabilidades do indivíduo. O coletivismo, ao contrário, concentra-se na doutrina e no regime social fundamentados na propriedade coletiva dos meios de produção e de troca e nos poderes do Estado (Bergel, 2001, p. 29).

 

Assim, é essencial retomar não só os Princípios Gerais do Direito, mas igualmente suas finalidades:

É por demais freqüente deixar de lado o estudo das finalidades do direito [...] Nem os profissionais nem os teóricos podem abstrair-se das finalidades do sistema jurídico ou das regras de direito para lhe compreender o sentido, guiar-lhe a interpretação, orientar-lhe a aplicação ou prover-lhe a evolução (Bergel, 2001, pp. 21-22).

 

Além disso, a doutrina da geração e/ou dimensão dos direitos não se baseia na supressão de uns direitos (civis e individuais, por exemplo) por outros mais modernos (coletivos e/ou difusos, neste exemplo concreto), mas sim sua incorporação e integração dialógica/dialética promovendo o próprio reequilíbrio do ordenamento jurídico (Bonavides, 2002 & 2004). Se houvesse esse sentido, superar aqui significaria tão-somente recuperar (o direito) para equiparar (o dado gravoso à Justiça). Para Roberto Lyra Filho (1999), o direito expressa a luta pela liberdade. Desse ponto de vista, o direito não é um produto findo, acabado, não é uma completa sistematização do ordenamento jurídico. Direito não é sinônimo de lei: direito é resultante da combinação ou embate entre legalidade e legitimidade. Segundo Roberto Lyra Filho (1999):

A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido (...) Quando falamos em Direito e Antidireito, obviamente não nos referimos a duas entidades abstratas e, sim, ao processo dialético do Direito, em que as suas negações, objetivadas em normas, constituem um elo do processo mesmo e abrem campo à síntese, à superação, no itinerário progressivo (p. 08-74).

 

            O direito é, sendo! O direito vem se fazendo historicamente. Mesmo o chamado Direito Posto, o que se verifica na realidade histórica do país, está sempre sendo posto, não é meramente depositado, é sempre visto e revisto. É histórico. Porém, ainda que se depositem tantas ressalvas, pode-se destacar alguns aspectos considerados essenciais ao direito – e essa sistematização é uma das enormes contribuições de Lyra Filho:

            I – O direito tem raiz internacional e matriz filosófica[5]: “o princípio de autodetermiação dos povos[6]e as soberanias nacionais (que, aliás, o imperialismo a todo instante ofende escandalosamente) não impedem a atuação, até, das sanções internacionais, na hipótese das mais graves violações do Direito” (Filho, 1999, p. 72).

            II – Desse embate global surge uma possibilidade real para que os pobres e oprimidos formulem seus reclamos, suas demandas (exemplo: Carta de Argel, de 1977).

            III – O aspecto classista não esgota a problemática jurídica: há a questão das raças, religião, sexo, condições físicas, faixa etária. Há o direito das minorias, dos segmentos sociais.

IV – As organizações sociais também apresentam um perfil ou padrão jurídico em que se apresenta ou se sustenta uma maior ou menor legitimidade. Com Lyra Filho (1999): “A passividade das massas não legitima, por si só, uma organização social, assim como o estabelecimento duma legalidade não importa, por si só, na legitimidade do poder” (p. 74).

V – Assim, o Direito é parte ativa do processo social global e interfere ou interage com as demais resultantes sociais, políticas, culturais, econômicas:

O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. Por isso, é importante não confundi-lo com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social (Filho, 1999, p. 88).

 

Por isso, direito também é luta social, denúncia da opressão e conquista da liberdade. O direito deve combater as injustiças, mas não é o que vemos com a aplicação da maioria das leis, ou seja, se há um Direito Justo, também há um Direito Posto que é causador de inúmeras injustiças. Ou seja, para o bem e para o mal, servindo à opressão (Antidireito) ou à emancipação (liberdade) o direito será sempre fonte inesgotável de poder. Então, o direito pode ser luta, uma espécie de luta para que não mais ocorram distorções como as chamadas leis injustas ou o próprio antidireito, luta pelo direito? O direito também pode ser entendido como uma luta pela liberdade? Seja como fonte de emancipação jurídica, norteando-se pela via da luta política, seja como opressão, o direito está encarnado na cultura.

 



[1]Veremos adiante outros comentários envolvendo o binômio Direito/coerção.

[2]Como se sabe, não há igualdade sem liberdade – um escravo nunca será igual ao senhor.

[3]Veja-se a íntegra em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9308.

[4]Lê-se na primeira página, quase epígrafe do livro: “Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção Permanente” (Schmitt, 2006).

[5]Os maiores pensadores do Direito (os clássicos) foram os filósofos, como Platão, Kant, Hobbes, Rousseau.

[6]Art 4º, III, da CF.

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