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Vinício Carrilho

Carandiru e Urso Branco


Penso que a única vez em que concordaria com Michel Temer, vice-presidente, é quando diz que o "trauma do Carandiru é fruto do sistema autoritário”[1]. Temer ainda avalia que de lá para cá a violência aumentou e o crime organizado se expandiu. Imediatamente após o democídio (assassinato premeditado de parte da população), formou-se uma comissão de juristas a fim de acompanhar o inquérito; entre eles estava Hélio Bicudo, talvez o maior jurista brasileiro com formação na cultura humanista – até porque combateu os antigos esquadrões da morte, correndo iminente risco de morte, e a própria ditadura. Dez anos antes do massacre, mas já em luta pela democracia equitativa, dizia-nos o jurista:

A Justiça é a arte do bom e do equitativo, na sábia definição dos romanos [...] Podemos aceitar, ou não, esse conceito de Justiça, mas está no coração do homem, arraigado desde que ele passou a ter consciência de ser, uma concepção do que é bom e do que é mau. Enfim, do que é justo e do que é injusto [...] Atentemos bem, não é a ciência, mas a arte do bom e do equitativo. Quem administra a Justiça não pode, assim, deixar-se prender pelas palavras da lei – não é um cientista – mas deve ir além delas – é um artista – buscar o seu espírito, levedá-lo com a sabedoria dos mais experientes, para concluir de sorte a dar a cada um o que é seu (1982, pp. 83-4).

 

Este é o eterno sonho de todo jurista-humanista, acreditando que o Estado Jurídico – embalado pelo ideal de justiça – seja uma realidade concreta na sociedade brasileira. Em todo caso, no episódio ocorrido em 1992, oficialmente foram decretados mortos 111 presos pelas tropas da Polícia Militar. À época, o atual vice-presidente assumiria a pasta de Segurança Pública do Estado de São Paulo prometendo investigações. 20 anos depois, a justiça ainda não feita.

No julgamento que deverá se iniciar esta semana, no entanto, é muito improvável que qualquer dos acusados seja condenado. Vinte anos depois do massacre, o júri popular deve estar motivado pela crise de segurança que chacoalha todo dia a capital paulista e assim deve colocar em prática o legado fascista afirmativo de que “bandido bom, é bandido morto”. Ao aplicar esta máxima do Estado de não-Direito, os jurados deverão absolver os policiais que estarão no banco dos réus. Espera-se que isto não ocorra, até mesmo para o bem da justiça paulista; todavia o promotor Márcio Friggiduvida de seu êxito, em razão desse substrato autoritário que está na consciência social.
 

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As botas da segurança pública não deveriam servir para esmagar as pessoas, como se fossem baratas.

O Massacre, que ainda gerou um nível absurdo de instabilidade no sistema prisional, lançou a semente do Mal que resultaria na criação do Primeiro Comando da Capital (PCC) – certamente a pior e maior facção criminosa do país, com ramificações por todo o Brasil, de São Paulo ao Nordeste, de Rondônia a Santa Catarina. Aliás, anos depois, Rondônia viu caso semelhante, apenas menor em proporções absolutas de morte, no episódio conhecido como “massacre do Urso Branco”; fato que levou o Brasil ao banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para refrescar a memória, veja-se uma nota da tortura vista no presídio:

O tampão do Urso Branco é o pior dos castigos que um preso pode passar. Se nas celas superlotadas e imundas é ruim passar, imaginem no tampão, úmido, fétido, escuro, o cara é colocado lá, sem roupas. O que num homem ainda restar de orgulho, de altivez ou de dignidade é esvaído em pouco tempo. Para um homem no tampão não existe Deus, ele se sente só, não existe advogado, nem família, nem amigos. É o retrocesso do homem com ele mesmo, é um ser insignificante, sem valor, sem referências, sem futuro. É nada no espaço. Só escuta o barulho zoando na cabeça, zum...zum. O silêncio toma uma dimensão de barulho. O tempo anda (anda?), lentamente, não sabe em que dia, em que hora está. A água gotejando, intencionalmente, ininterruptamente, cadencia um ritmo constante e melancólico. As baratas fazem parte do novo lar. Os ratos também. O que será que procuram? Ah! Deve ser fezes e urina, que batem no joelho (Braga, 2007, p. 202).

 

Esta situação era descrita em 2007, será que se modificou muito, de lá para cá? Sinceramente, nada significativo foi feito, inclusive porque o Brasil foi admoestado seguidamente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – e continua sendo chamado à atenção – depois do feito. É óbvio que esse sistema prisional em si massacrante não pode ressocializar ninguém – o mais sensato é se esperar pela produção de facínoras ainda mais impiedosos quando soltos. Outra dedução bem lógica diz que o autoritarismo do Estado de não-Direito ainda é muito presente na cúpula administrativa do poder político. O que, enfim, provoca uma última verificação – a de que os governantes literalmente se lixam para a dignidade e para a vida humana de todos nós, os presos e os soltos que não são apaniguados.

 

Bibliografia

BICUDO, Hélio. Direitos civis no Brasil, existem? São Paulo : Brasiliense, 1982.

BRAGA, Jorge Paulo de Freitas. Urso Branco: a porta do inferno. 2ª ed. Ed. ABG, 2007.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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