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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Assassinos na TV


O Estado Pós-Moderno

A sedução nos 15 minutos de fama
 

 

Não se olha a lua,

Sem fazer política

Augusto Boal

 

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho

Caetano Veloso

 

O julgamento do ex-policial e advogado Mizael Bispo dos Santos, acusado de ter matado a tiros a também advogada Mércia Nakashima, é um marco da chamada razão imagética no Brasil. Certamente, não é o primeiro instante de visualização de como a razão ou a opinião pública são formadas pela mídia.

Retomemos o episódio tornado clássico do que não-fazer no debate envolvendo Collor e Lula, no segundo turno da eleição presidencial de 1989, na voz do vice-presidente da TV Globo na época, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni:

            Folha – o sr. teve participação no debate Collor x Lula?

            Boni – Soltei a gravata e desmanchei o cabelo do Collor para ele ficar mais parecido com o Lula.

            Folha – E na edição do debate?

            Boni – Na edição do “Jornal Hoje”, o Collor ganhava de 3 a 2. Essa edição não satisfez ao dr. Roberto[1]. O Alberico recebeu ordem dele de refazer a edição para o “Jornal Nacional”. Dr. Roberto achou que a primeira edição favorecia o Lula.

            Folha – Isso faz sentido?

            Boni – O Collor foi muito bem no debate, mas a edição me pareceu exagerada. O Armando Nogueira costuma dizer que o Collor ganhou de 3 a 2, e no “Jornal Nacional” apareceu 3 a 0. Não mostrou o gol do adversário. Um dia após o debate, a Folha me procurou e eu disse que não tinha gostado da edição. O dr. Roberto replicou dizendo que o Boni entende de TV, mas não entende nada de política (Carvalho, 16 set. 2000).

           

Assim, se normalmente somos tentados, ou educados, a entender e aceitar que o mal está na obscuridade, nos meandros, nos escaninhos (refúgio dos lobbies políticos), porque então a transparência pode deturpar tanto? Por que a aparição política é tão desfocada pela TV?

A transparência do ato político (ou inatividade) é danosa quando não seguida ou precedida da ação e prática política, quando a práxis não se opõe à imagem (ideologia, aparência, superfície), quando a imagem desobriga a ação, quando a aparente distância ou proximidade desatina a prática coletiva:

A TV coloca em perigo o desdobramento dos Príncipes, no mais elevado grau das visibilidades sociais. O chefe de Estado sedutor tem um corpo a mais: o seu. Já não é possível olhar de través. Apresentações, performances, exibições — o que comprova sua presença, desvaloriza sua autoridade. A crença que liga seu destino à TV será cada vez menos crível, como a própria TV. Por se ter deixado escoar demasiado pela torneira das imagens, a autoridade se liquifica e a estátua do Comendador audiovisual acaba por se afogar em seus reflexos, paródias e escárnios em cascata. Na videocracia, a personalização (física) tende a arruinar a personificação (moral). A transparência liquida a transcendência (Debray, 1994, p. 27 – grifos nossos).

 

Este julgamento, por sua vez, é igualmente certo que é o marco inaugural de algo muito perigoso, pernicioso na ordem do Poder Judiciário e na árdua tarefa da administração e distribuição da justiça. Quem pensa o contrário, me desculpe, mas neste caso é porque não estudou o suficiente ou não o fez de maneira adequada. Quem defende tais procedimentos o faz repercutindo a verborragia de marqueteiros e vendedores de espaço na TV. Dizem que a transmissão ao vivo do julgamento, expondo o corpo de jurados (cara a cara, como se diz) para quem quiser ver, é necessária à publicização da justiça. Ora, o tribunal do júri é público, qualquer cidadão de bem pode assistir aos trabalhos. O jurado não precisa ter sua cara estampada para se obter um espaço público. De outro modo, teríamos de acreditar que a TV inventou o Princípio da Publicidade ou o próprio espaço público.

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Então, se a TV não inventou a publicidade, é porque o reality show da justiça no Brasil é apenas a realização de 15 minutos de fama para advogados, promotores e juízes. Não duvidaria se um deles tivesse cursado algum treinamento de como se expor na TV: tais cores não refletem bem na telinha. Espere para ver, logo será a TV paga, o melhor pay-per-view do país. Já pensou que coisa fantástica a TV Justiça anunciando: “compre aqui o seu pay-per-view para o julgamento de fulano. ”. Confesso que não imaginei tal estado de coisas quando fiz direito e, depois, quando estudei a tal razão imagética, no doutorado. Vi exemplos estapafúrdios e de pura caricatura do que deveria ser o espaço público. Mas, também vi iniciativa geniais, como as do teatrólogo Augusto Boal. De todo modo, temos pela frente uma nova fase da paranoia:

O panopticon é um pequeno teatro onde cada detento aprende a desempenhar seu papel de prisioneiro para um público hipotético[...] Há pouco tramitou no Congresso americano lei na qual as empresas deverão indicar “espiões” contra o terrorismo virtual: um em cada dez “cidadãos” deverá ser vigia. No apogeu da sociedade ocidental que se considera lógica, na qual a ciência prometeu segurança e bem-estar, o atual estágio da acumulação capitalista cria a “civilização do pânico”. Ela vincula-se à passividade e à angústia existencial da perda do controle da natureza e do mundo e ao medo da destruição, relacionando-se ao “delírio” e não ao campo ético — campo este da escolha, da consciência e da liberdade [...] Renunciar às liberdades democráticas em nome do combate ao terrorismo é fruto da “cultura do pânico” e da cultura “panóptica” e de resultados — política “imediatista” e “pragmática”, uma vez que o mais aterrorizador no terrorismo é justamente sua imprevisibilidade (Matos, 2006, p. 21 – grifos nossos).

 

 

Neste teatro hipotético, erigido a partir deste julgamento, será fácil perceber como os “atores” colocar-se-ão como prisioneiros das vestimentas da mídia televisiva, com roupagens e caras e bocas. Não bastassem os salamaleques presentes nas togas e que tais, nos doutos, excelências e data vênias, agora temos uma Justiça Pós-moderna. Portanto, trata-se de outro capítulo do próprio Estado Pós-moderno. O problema é que, e isto não vê o demagogo defensor, os deslizes e os falsetes do Judiciário serão publicados sem maquiagem alguma, expostos cruamente ao próprio julgamento e escárnio popular. Entramos na era da superexposição midiática dos atores da justiça. No primeiro dia de julgamento, assistimos a pirotecnia e ataques e chiliques, sem a menor consideração com o telespectador – parecia programa de auditório, desse mais chinfrim em que se lava roupa suja – “porque sua irmã saia com todo mundo”; “o senhor é safado, vou processá-lo”. Até que uma hora o juiz deixou a juizite e ordenou a suspensão das gravações. Ora, deve pensar o leitor e eu também, se era uma transmissão para tornar tudo público, por que interromper? Nem bem começou o show business e já inventaram a censura. O que, quem diria, o juiz liberalizante aplicando a censura? Logo em seu primeiro dia de celebridade.

Esta celebridade instantânea foi outra cena imortalizada por Andy Warhol(1960), com a mais famosa frase-sentença do mundo trimoderno: "um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama". Ao que acrescentaria, as instituições também têm fama ou pederão sua legitimidade: “como assim, sua repartição não tem pagina no face?”. Será que este juri já tem face? O juiz acredita que quem não tem face, não está no mundo. Ataca-se com toda força o pluralismo jurídico, mas tem face. Esta é sua cultura pós-moderna, é pós, sem ter sido moderno. Se tivesse ao menos esbarrado na modernidade, se estivesse livre do cabresto ideológico do passado patrimonialista, reconheceria a indubitável insuficiente do positivismo e do pragmatismo jurídico. Mas, como o mundo pós-moderno permite que seja o que nao se é, ou seja, o indivíduo é super-moderno, sem conhecer uma linha da modernidade, o juiz que idolatra as câmeras poderá ser o mais conservador possível. É o que se chama de esquizofrenia cultural.

Para embalar este sonho de sair bem na foto, vemos como entramos com tudo, de sola, na mais tola das crenças: a de que uma imagem vale mais do que mil páginas: “atenção todos, chegou a equipe do book, retoquem o que tem de retocar: ”. Quanta tolice em uma só juizite. Uma imagem pode ser captada por qualquer equipamento, desde o mais antigo Daguerreótipo – usado por Dom Pedro II ou a mais primária água refletida do lago que devorou a consciência de Narciso. Uma palavra, que seja uma única palavra, necessita de um cérebro que pense e que seja versado em algumas letras – por menores que sejam suas letras. O que precisamos no Brasil é de educação e de vergonha na cara, como dizia minha avó.

Precisamos acreditar que a verdade nao é verdade porque apareceu na TV – especialmente se for a Globo – ou porque está exposto no facebook. Do mesmo modo, devemos entender e acreditar que “não basta parecer honesto, é preciso ser honesto”, como antigamente se referia à mulher de César. Não basta ter linda imagem, não basta parecer honesto, porque “por fora, linda viola; por dentro, pão bolorento”. Em sua simplicidade, o povo é sábio e já vaticinava contra a mulher de César e ainda mais fortemente contra todos os hipócratas de plantão. “Assistam agora ao Plantão do horário nobre, o juiz faz pose, busca o enquadramento perfeito. Mas, esqueceu-se de que as câmeras procuram o protagonista. O reú, nitidamente midiático, responde às perguntas do juiz, mas olhando fixamente para as câmeras. O que, evidentemente, irrita o juiz que procura o foco da imagem”.

 

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Com toda a parefernalha televisiva, a partir da TV Justiça, é mesmo séria a recomendação do juiz do caso Mércia para que as testemunhas sejam imparciais?

Antes da escolha dos jurados, o juiz Leandro Jorge Bittencourt Cano pediu para que os jurados fossem imparciais durante todo o julgamento. "O caso tomou uma repercussão monstruosa, e meu temor era de que isso influenciasse os jurados. Mas, aqueles que se sentarem ao meu lado, serão os mais imparciais", disse[2].

 

Como resposta à ironia do poder constituído, os próprios jurados pediram para não ter seus rostos aprisionados pelo sensacionalismo. Outra demonstração da capacidade cerebral e moral do povo, e que falta às autoridades nacionais, nos três poderes. Será que tinha de ser gênio para saber que os rostos dos jurados não deveriam ser anunciados para todos os matadores de aluguel? Se um dia tivermos pena de antecipação da morte, a execução será depois da meia-noite, com restrição para menores de 16 ou 18 anos? Até lá, é bem possível que a menoridade também seja rebaixada e que possamos assistir ao eletrochoque de um jovem de 16 anos. “Amor, traz uma cerveja pra mim? Ô bem, você não prefere champagne, para celebrar a morte desse desgraçado? Claro que sim, mas porque mesmo é que ele foi condenado?”

 

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Felizmente, o Brasil tem gente inteligente. Contra este curso, já atuou um Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, e que se desdobraria no Teatro Legislativo — contando, inclusive, com o uso recorrente às mídias, à rede, à comunicação direta com o público sobre temas de origem política[3]. Em uma das experiências do teatro legislativo, em Londres, participantes, atores e cidadãos brasileiros encenaram (isso mesmo, encenaram) suas propostas de iniciativa popular e as “encaminharam” via Internet às casas legislativas em Brasília. É claro que se tratava de experimentalismo na representação e na dramaturgia, mas é igualmente evidente que se procurava afinar a persona – do antigo teatro grego – com a notória representação popular na democracia parlamentar.

O Brasil, com atraso de ao menos cinquenta anos, embarcou definitivamente na era midiática conhecida como videosfera, quando a esfera pública é tornada refém em definitivo pelas mídias, sem capacidade de oposição crítica. Esta videosfera, quando se emparelha com o Poder Público, gera o que também se denominou de Estado Sedutor pelo sociólogo francês Régis Debray – ministro da cultura no governo François Mitterrande ativista presente na Revolução Cubana.

Se me perguntar se sou anti-moderno, é óbvio que não sou, mas acredito que muitas respostas estão na história – na história de homens e mulheres comuns e na visão de profundidade lançada pelos clássicos. Os clássicos olham para nós com o olhar de Tandera, só que de cima pra baixo; clássicos como Newton subiram em ombros de gigantes para ver mais longe. Assim como Júlio César e seu “Vim, Vi, Venci”. O César viu porque tinha equipamento cerebral para ver, conquistou porque tinha virtù, deveria ter dito Maquiavel. Ou seja, nenhum deles foi vítima da oratória – tão frequente em sua época. A juizite de agora, guardadas as proporções, indica que o juiz é refém da retórica vazia do seu tempo: alguém deverá ter-lhe dito para passar um pó na calvície, para não dar brilho nas câmeras. Outro vai querer tirar as sobrancelhas e assim vai. E quem vai querer ser o bond boca?

Portanto, quando olho para todas essas tolices, prefiro o futuro ao passado e ao presente. Isso porque sou de uma geração que ainda foi educada para esperar pelo futuro, a esperança estava no futuro que deveríamos construir – hoje se educa para o consumo, imediatismo, portanto, os jovens não passam do presente. Também não me afino ao passado, apesar dos clássicos, porque foi lá que cometemos todos os nossos erros. Essa visão é o que se convencionou chamar de Modernidade Tardia. Não é simples, mas não é confusa – apenas não é pós-moderna e por isso desaprovo toda a tolice orquestrada neste julgamento televisivo.

 

Bibliografia

CARVALHO, C. M. A Globo segundo Boni. Folha de S. Paulo, 16 set. 2000. Caderno Especial, pp. 10-11.

DEBRAY, Régis. O Estado Sedutor: as revoluções midiológicas do poder. Petrópolis-RJ : Vozes, 1993.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Educação, Política e Tecnologia na Formação do Cidadão. Dissertação de Mestrado em Educação. UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências : Marília- SP, 1993-1996.

_____ O cidadão de silício. UNESP - Faculdade de Filosofia e Ciências : Marília- SP, 1997.

_____ A rede dos cidadãos: a política na Internet. Tese de doutorado em Educação. São Paulo : Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), 2001.

MATOS, Olgária. Educar, a última chance do Brasil. Jornal o Estado de S. Paulo, Caderno 02, p. D2, 17/12/2006.

______ Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. São Paulo : Nova Alexandria, 2006.

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo

http://www.gentedeopiniao.com.br/colunista.php?news=104

 

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