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Gente de Opinião

Silvio Santos

FLAVIO LOPES FERREIRA - O soldado da borracha sem aposentadoria


 
Em meados do mês de agosto, na eminência de pegar um taxi que me trouxesse da boca do Jamari até Porto Velho, o motorista pediu que esperasse um pouco, pois estava chegando o “Coronel do baixo Madeira”. A voadeira atracou e dela desembarcou um senhor idoso de aparência muito boa e muito bem vestido, chapéu e o que antigamente era chamado de terno, ou seja, camisa e calça de linho muito bem engomadas. O motorista do taxi alertou: “Ele tem muito dinheiro”. Daqui a pouco estávamos viajando no mesmo táxi eu o Jurandir  Costa do CineAmazônia e o seu Flávio. Papo-vai-papo-vem fiquei sabendo que seu Flávio estava lutando para conseguir se aposentar como soldado da borracha. “Acontece que dei entrada faz muito tempo na documentação e agora vieram me dizer que não existe nenhum documento meu lá no INCRA”. Os documentos são cartas de herdeiros dos seringalistas donos dos seringais, confirmando que seu Flávio cortou seringa no tempo da 2ª guerras mundial e portanto, tem direito a aposentadoria como soldado da borracha. Independente desse problema, o que nos chamou atenção foram nas histórias sobre o cultivo de tabaco nas localidades existentes no baixo rio Madeira. “Com 8 anos de idade já fazia serão de tabaco” e sobre benzedeiras e macumba. “Certa vez encontrei uma camisa com a estampa do satanás na minha loja”.

Ao ser indagado se era Cutuba ou Pele Curta, ela acusa o coronel Aluizio Ferreira líder dos Cutubas de irresponsável e imoral. “O Tenente Fernando pegou ele com uma crioulinha no batuque do Samburucu”.

Seu Flávio quando o entrevistamos no último sábado, estava internado no hospital das Clínicas em Porto Velho em virtude de uma hemorragia que segundo ele, já estava praticamente controlada. “Vamos nos encontrar terça feira dia 12, na festa de Nossa Senhora Aparecida em São Carlos”, convidou.

Quer saber mais sobre o último coronel do baixo rio Madeira, é só ler a entrevista que segue.

 

FLAVIO LOPES FERREIRA - O soldado da borracha sem aposentadoria - Gente de Opinião

 

E  N  T  R  E  V  I  S  T  A

  

Zk – Onde o senhor nasceu?

Flávio – Nasci na localidade de Santa Luzia no baixo rio Madeira que a época pertencia ao município de Humaitá no estado do Amazonas.

 

Zk – Vamos falar da sua vida, da sua infância no beradão?

Flávio – Nasci no dia 22 de março de 1925 e já em 1936 com apenas 11 anos de idade comecei a cortar seringa acompanhando meu irmão, lá mesmo em Santa Luzia aonde tinha quatro estradas de seringa, na realidade, essas estradas ainda existem. Antes disso, com 8 anos em 1933 eu já fazia serão de tabaco.

 

Zk – Serão de tabaco quer dizer o que?

Flávio – Quando era tempo de colheita, a gente quebrava a folha de tabaco colocava na palha pra secar, e quando essas folhas já estavam secas, a gente se reunia na boca da noite para arrumar as capas para no outro dia fazer o molhe de tabaco.

 

Zk – O senhor falou sobre uma coisa que sempre tive curiosidade em saber, que é a produção de tabaco nas localidades do baixo rio Madeira. Para quem era vendido o tabaco?

Flávio – É! Naquele tempo a gente trabalhava muito com tabaco, agora quase ninguém mais planta tabaco no baixo Madeira.

 

Zk – Quem comprava o tabaco de vocês?

Flávio – A gente vendia para os proprietários das fábricas de cigarro que existiam em Manaus. Agora, os maiores compradores eram os seringalistas que compravam para vender para os seringueiros.

 

Zk – Como é que se faz o chamado molhe de tabaco, aquele que se vende por libra.

Flávio – O molhe é assim, a gente pega a folha seca faz a capa e depois vai arrumando o tabaco dando formato ao molhe, depois disso passa na corda. A corda na época era feita de manilha, hoje é de sisal.

 

Zk – Hoje ainda se produz tabaco no baixo Madeira?

Flávio – Produz, poucos fazem, mas ainda fazem. Eu compro tabaco do meu irmão. Na ilha de Assunção que também é chamada de Ilha Grande o pessoal trabalha com a produção de tabaco.

 

Zk – O tabaco do baixo Madeira é bom?

Flávio – Acho que é o melhor que tem. É cheiroso e forte. Tenho pra mim que não faz mal fumar aquilo.

 

Zk – O chamado cigarro porronca que é feito com tabaco puro, é forte. Dá para tragar ou é usado apenas para fazer fumaça para espantar mosquito?

Flávio – Se tragar faz mal. Se não tragar não faz mal nenhum. O beradeiro usa apenas para fazer fumaça para espantar mosquito e também para sentir o cheiro da fumaça que é muito cheirosa. Tragar é uma barbaridade. O Gostoso do cigarro é puxar e soltar a fumaça, tragar é muito danoso.

 

Zk – Vamos voltar ao seu trabalho como seringueiro. O senhor trabalhou em quais seringais?

Flávio – Morando mesmo em Santa Luzia, trabalhei no Prosperidade seringal do seu Fortunato Ramos e trabalhei no seringal Iporanga. Tinha carta do Baraúna porque a gente vendia borracha pra ele. Nós tivemos uma desavença com o velho e meu irmão do meio foi trabalhava com o Baraúna no seringal Santa Cruz no rio Candeias e o segundo mais velho veio trabalhar comigo no Iporanga que era do Lopes

 

Zk – Onde fica Iporanga?

Flávio - Fica entre Cujubim e Aliança pela margem direita do rio Madeira. Aquela estrada que abriram agora, que faz da boca do Jamari até Porto Velho aquilo tudo era várzea, aquele palhal era fechado, pois aquilo tudo pertencia ao Iporanga. Antes do palhal era tudo estrada de seringa, tinha mais de dez estradas.

 

 Zk – E em São Carlos tinha seringalista?

Flávio – No meu tempo tinha o Alfredo Barbosa, tinha o Antônio Gaspar em São José, Berlange no Itapirema. O Albino Henrique freqüentava muito o Jamari. Ali onde hoje a gente pega voadeira para atravessar para São Carlos, na boca do Jamari do outro lado, era uma Vila muito grande que era chamada de Vila do Jamari cujo proprietário era o Albino Henrique.

 

Zk – O senhor conheceu meu avô Bento Macedo?

Flávio - Conheci muito seu Bento Macedo ele era amigo do meu pai. São Carlos era o principal porto do Madeira lá os grandes navios encostavam para desembarcar e embarcar mercadoria. As pilhas de mercadorias chegavam a ser mais altas que uma casa.

Zk – O senhor lembra o nome dos navios que ancoravam em São Carlos e de onde vinham?

Flávio – Eram os chamados “Gaiolas”, tinha o Rio Jamari para 200 toneladas, Iracema 500 toneladas, o Alegria, Andirá e o Tefé fora os da Amazon River que também traziam muitas mercadorias para os seringalistas.

 

Zk – Os seringalistas compravam mercadorias aonde?

Flávio – Eles compravam mais em Belém do Pará. Depois que acabou a máquina a vapor Belém perdeu sua força e então as compras passaram para Manaus-AM.

 

Zk – O Senhor estudou?

Flávio – Estudei! Em 1949 fui para São Paulo onde fiquei até 1978. Lá fiz o ginásio e o clássico e vários cursos, entre eles o de técnico em metalurgia, mineralogia e fiz vestibular para engenharia no Mackenzie e não passei. Não passei porque cometi um erro, em vez de fazer o clássico deveria ter feito o científico e na hora do vestibular para engenharia, meus conhecimentos de matemática, física, biologia e química eram poucos, por isso não consegui êxito.

 

Zk – Quando o senhor voltou para Rondônia, veio morar em Porto Velho ou em Santa Luzia?

Flávio - Fui direto para Santa Luzia e comecei a plantar melancia, jerimum, ganhei dinheiro para me manter e depois entrei na Sudepe. Depois veio o IBAMA e incorporou a Sudepe, IBDF e a Superintendia do Desenvolvimento da Pesca e então fiquei como funcionário do IBAMA. Devo lembrar que entrei para a Sudepe através de concurso público.

 

Zk – E hoje?

Flávio – Hoje sou aposentado como funcionário público federal. Esse dias veio uma ordem de Brasília dizendo que tenho que devolver R$ 44 Mil que segundo eles, supostamente recebi ilegalmente, isso foi problema do SIAP eu não tenho a obrigação de pagar e muito menos de pagar juros absurdos que estão cobrando. Através dos advogados do Sindsef estamos recorrendo.

 

Zk-Vamos voltar aos antigamentes. Santa Luzia fica perto de São Carlos?

Flávio - Santa Luzia fica no meio da viagem entre São Carlos e Nazaré em frente de Guarani e Cavalcante mais pra cima um pouco de Curicaca.

 

Zk – Morando perto do Lago do Cuniã. Como é a pesca do Pirarucu?

Flávio – Nunca fui pescador de Pirarucu, porém via os pescadores atuando. O Pirarucu é pescado de duas maneira, de anzol quando o lago ta cheio e de arpão quando ta seco. A mais interessante é a pesca de arpão, o pescador precisa ser bom de verdade no manejo do arpão para não perder o peixe.

 

Zk – Como é a pesca de arpão?

Flávio – O Pirarucu bóia e solta uma espuma e mesmo o pescador estando longe dá tempo para chegar perto e arpoar o peixe. Acontece que quando o peixe espuma é porque está parado, o pescador chega e joga o arpão, dificilmente erra a arpoada. Um Pirarucu pesa em média 120 Kg.

 

Zk – O senhor gosta de comer Pirarucu fresco ou seco?

Flávio – Quando eu podia comer, gostava dele seco. Pirarucu é gostoso de todo jeito, cozido no leite da castanha é uma delícia, desfiado ou frito também é bom.

 

Zk – O senhor disse que hoje não pode comer Pirarucu porque a carne dele é reimosa. Quais outros peixes têm a carne reimosa?

Flávio – Por exemplo, Jatuarana, Curimatã, peixe de couro. No meu caso que tenho próstata, só posso comer Sardinha, Branquinha e o chamado Chorão.

 

Zk – Na sua opinião, as barragens que estão sendo construídas no rio Madeira vão atrapalhar a produção de pescado?

Flávio – Atrapalha por uma parte e melhorar de outra. Se barrarem mesmo o rio, vai virar pantanal. Acho que não vão barrar. Aliás, o povo anda desconfiado, no baixo Madeira a maioria comenta que isso é exploração de ouro, porque segundo me falaram, estão quebrando pedra aonde não vai ser barragem. Deve ter um segredo aí no meio.

 

Zk – Agora vamos falar de família. O senhor é casado, tem filhos?

Flávio – Tenho 85 anos de idade e nunca casei. Acontece que o tempo que era para casar passei em São Paulo e via aquela vida pobre, então pensava, casar para morar em favela não é correto. Agora no beradão gostava de freqüentar as festas, apesar de nunca ter dançado porque peguei um golpe de machado no pé e meu dedo ficou torto e eu não podia calçar sapato. Geralmente participava cantando, tocando o cheque-cheque.

 

Zk – O senhor começou a trabalhar como seringueiro desde os 11 anos. Conseguiu se aposentar como soldado da borracha?

Flávio – Aí é que ta o segredo. Em 1978 quando voltei de São Paulo o Francisco Assunção de Oliveira me falou da possibilidade de me aposentar como soldado da borracha. Eu tinha quatro cartas assinadas pelos herdeiros dos seringalistas pra quem trabalhei. Dei entrada nessas cartas no INCRA e o Assunção ficou acompanhando e depois eu mesmo comecei a acompanhar o processo, certa vez cheguei lá e disseram que não tinha nada lá, as cartas desapareceram. Acho que alguém tem alguma coisa contra minha pessoa porque tudo que é documento meu desaparece. Na Sudepe e no IBAMA foi a mesma coisa. Tem alguma coisa estranha aí.

 

Zk – Por falar nisso. O senhor acredita em rezadeira, macumba, essas coisas?

Flávio – Acredito em macumba, benzedeira, acredito em tudo isso. Conheço a dona Preta famosa curandeira do baixo Madeira, mas, nunca fui me consultar com ela. A benzedeira que freqüento é a dona Maria lá em Humaitá.

 

Zk – Quem é dona Maria?

Flávio – É uma sulista que veio para a Amazônia e trabalhou no rio Machado com a gente e continua curando até hoje. Não cura mais porque hoje ela mora fora da cidade no quilometro 180.

 

Zk – O senhor foi curado de que com ela?

Flávio – Ela me operou da próstata, do coração e também a procurei para me curar de uma infecção proveniente de uma bactéria. Ela me curou dessa bactéria pseudo mona depois que passei nove dias tomando remédio num hospital particular. Só sei que ela me receitou uma bocado de remédio natural, raiz, sumo de vassourinha e outros. No hospital particular me cobraram R$ 5 Mil, por isso fui atrás dela e me curei praticamente sem gastar nada. Certa vez achei uma camisa na minha loja com a estampa do satanás e depois que peguei naquela camisa tudo começou a dar ruim pra mim.

 

Zk – E dona Maria desfez o trabalho?

Flávio – É, fui lá e o espírito que baixou nela pra tirar a macumba foi uma tal de Mestra Zenina. Tive que comprar umas velas especiais para fazer o Despacho. A vela preparada para espocar, espocou, mas a macumba não saiu não porque continuo com problemas.

 

Zk – Vamos encerrar essa prosa. O senhor era Cutuba ou Pele Curta?

Flávio – Eu era udenista (partidário da UDN). O Aluizio Ferreira eu tinha ele sempre como ladrão, uma pessoa imoral. Pegaram ele com uma crioulinha no batuque do Samburucu da Chica Macaxeira. Dizem que ele associado com CIA, foi um dos responsáveis pelo desaparecimento do Tenente Fernandes Gomes de Oliveira.

 

Zk – Amanhã é o dia de Nossa Senhora Aparecida e em São Carlos acontece uma grande festa. O senhor vai lá?

Flávio – Se me derem alta aqui do hospital das Clínicas, vamos nos encontrar na festa de Nossa Senhora Aparecida lá em São Carlos.

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 Fonte: Sílvio Santos - [email protected]  
 
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