Sábado, 20 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

PORTO VELHO, O PETEORO E A MÁQUINA MORAL


Quando os habitantes de Porto Velho decidiram enviar o Agrimensor a terras distantes, um ar de satisfação e entusiasmo tomou conta do escolhido. Ele sabia que era oportunidade ímpar de conhecer outras culturas e outros povos. Depois das costumeiras despedidas, arrumou as malas e os equipamentos e, com o sorriso no pensamento, partiu para seu destino: Pasárgada.

Pasárgada era uma cidade construída às margens do pomposo Rio das Lágrimas. Lá, o Agrimensor deveria catalogar informações sobre as práticas utilizadas para o desenvolvimento e urbanização da cidade, bem como sobre os hábitos da população estrangeira. Deveria registrar tudo para entregar ao conselho administrativo de sua cidade. Para tanto, trouxe consigo o relatório feito por seu antecessor há uns dez anos.

No desembarque na rodoviária, assustou-se com a situação do local. Sujeira, pessoas e malas misturadas em um bálsamo de fedentina e desrespeito. Não acreditou que um ambiente daquele pudesse ser o cartão de boas-vindas de uma cidade. Em ato contínuo, pegou o relatório anterior e o leu: “Rodoviária, 13 de março de 2003: essa horrenda rodoviária é o produto maléfico de uma administração incompetente e corrupta. Local sem as mínimas condições de receber seres humanos...”. Não demorou e parou a leitura. “As coisas não mudaram muito nesses anos”, pensou.

Dirigiu-se ao abrigo de ônibus para ir a um hotel. Não encontrou nenhuma estação. Aliás, encontrou a céu aberto um banquinho feito de quatro ripas e do lado uma placa retorcida sem indicação de rotas e horários dos ônibus. Depois de mais de hora, um velho ônibus parou. Ao entrar, uma sensação de mal-estar devido à situação horrenda do coletivo. Conseguiu, com dificuldades, uma poltrona para sentar. Abriu o texto de seu antecessor: “Transporte Público, 14 de março de 2003: precário, com a frota de veículos totalmente sucateada. O preço da tarifa é um dos mais altos da República”.

Ao perceber que o veículo iria tombar, o Agrimensor olhou para o cobrador e perguntou por que o ônibus balançava tanto. O cidadão lhe respondeu: “É a buraqueira. Essa cidade é um mar de buracos. Por todos os lados crateras e mais crateras. Parece que um meteoro atingiu a cidade. Na verdade, foi um peteoro que nos destruiu. Uma estrela vermelha caiu do céu e destruiu a cidade”. O Agrimensor não entendeu a metáfora, mas registrou para uma posterior consulta sobre esse fenômeno luminoso que aconteceu em Pasárgada e trouxe apenas escuridão...

Por coincidência, quando o ônibus parou em um engarrafamento, a chuva começou e o ônibus se tornou uma panela de pressão. O calor só não era maior do que a indignação de duas senhoras ao lado. “Como pode um cidadão gastar dezenas de milhões com viadutos que simplesmente nunca são concluídos e nós ficamos aqui nesse calor miserável. E ainda no risco de morrermos afogadas”. O olhar do Agrimensor se voltou para fora do ônibus e viu que água da chuva tinha mais de metro. Constatou que toda aquela região estava alagada. Tirou fotos e anotou tudo.

Depois da aventura, o descanso era merecido. Mas o Agrimensor não possuía muito tempo. Em menos de uma hora, já reiniciou o seu percurso. E, dessa vez, foi ao museu político da cidade, para fazer anotações sobre os políticos locais e suas grandes obras. A galeria era imensa. Tantas figuras ilustres que o Agrimensor se espantou com o rol. Cada um deles era lembrado com muitas honrarias e estrelas. Bucéfalo: poeta, engenheiro, prefeito, símbolo da intelectualidade.  Hitler, com seu bigode de ouro, representava a arquitetura moderna da cidade. E o rol de pessoas ilustres não terminava. O Agrimensor chegou a pensar que aquele Povo, pelos seus heróis, deveria ter uma história espetacular.

De repente, um ancião perguntou em tom afirmativo ao Agrimensor: “O senhor não é daqui? Não é não! O senhor não conhece a história desse pessoal que está aí homenageado?”. O viajante respondeu negativamente e convidou o idoso para explicar qual seria a história verdadeira. “Quando elegeram Bucéfalo, todos estranharam o rabo dele. Depois de dezenas de perícias, descobriram que ele era apenas um cavalo. Fomos enganados pela propaganda. Quanto a Hitler, não preciso nem falar. Ele matou a cidade, deixou o cadáver a céu aberto, lançou flores e dissimulou o luto. Em agradecimento a seus atos, ganhou nome de rua e é símbolo das grandes obras da cidade: metrô, viadutos, museus, teatros. Além desses dois, houve os que ficaram milionários com esquemas de corrupção e, mesmo filmados com propina e tudo mais, foram reeleitos para cargos públicos e todo ano são homenageados pela cidade como referência de honestidade”. Depois, o idoso sorriu com ironia.

O Agrimensor deu boa-tarde e se afastou do idoso que não parava de ri. Saiu do museu com a impressão de que aquela cidade estava em maus lençóis. Abriu novamente o relatório anterior e observou: “Política, 18 de março de 2003: a reiterada reeleição para cargos públicos de pessoas sem a menor carga ética revela o eloqüente amor pela servidão e pela ‘esculhambação’ dos pasargadianos. A grande máquina moral desse Povo é o respeito pelos corruptos e desonestos”. O Agrimensor ficou silente. Por morar em uma cidade gerida por pessoas honestas, não assimilava como crível aquele cenário.

Cansado, resolveu ir para o seu hotel. Caminhou pela principal rua da cidade e se espantou com a quantidade de lixo jogado pelos cidadãos: plásticos, garrafas de vidro, latas e tudo que é dejeto. E viu o córrego de esgoto que passava ao lado da suja calçada. Por curiosidade, reabriu o relatório do seu conterrâneo: “Limpeza Urbana, 20 de março de 2003: na principal avenida, no centro da cidade, esgoto transita ao lado das pessoas que, irresponsavelmente, jogam muito lixo ao solo todos os dias”. O Agrimensor resolveu voltar para Porto Velho.

Na audiência pública para apresentar o seu relatório, o Agrimensor foi enfático: “Caros patrícios, creio que meu relatório é desnecessário. As palavras de meu antecessor são suficientes para descrever as enfermidades que fizeram e fazem Pasárgada sucumbir lentamente. Porto Velho não pode ser tornar a triste Pasárgada do Rio Madeira. Devemos lutar todos os dias para melhorar esta Capital que tanto nos orgulha e nos faz feliz. Sejamos vigilantes contra todas as formas de fascismo”.

Respeitem Porto Velho!!!

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSábado, 20 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

A origem do nome das Três Marias – as estrelas cintilantes da nossa identidade cultural

A origem do nome das Três Marias – as estrelas cintilantes da nossa identidade cultural

Em Porto Velho, todo mundo sabe que as caixas d’água instaladas numa praça do bairro Caiari são popularmente chamadas de Três Marias! Porém, ninguém

 Brasil e o Guaporé, tudo a ver!

Brasil e o Guaporé, tudo a ver!

A obra do jornalista Zola Xavier, Uma Frente Popular no Oeste do Brasil, que será lançada em breve na Casa da Cultura de Porto Velho, desponta hoje

Os Trapezistas do Circo da Fuleragem Assaltaram o Mercado Cultural

Os Trapezistas do Circo da Fuleragem Assaltaram o Mercado Cultural

O bafo sonoro do berimbau de lata repercutiu azedo e cativante ao mesmo tempo, enquanto Dom Lauro verbalizava um canto tribal, tomando para si o cocar

Gente de Opinião Sábado, 20 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)