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Serpa do Amaral

OS FILHOS DA DITADURA E OS GAROTOS DA DEMOCRACIA


Quem sintonizar seu aparelho de televisão na Rede Globo, a partir das 23 horas de sábado, vai dar de cara como programa Altas Horas, antigo Programa Livre, do SBT, apresentado por Serginho Groisman, que ensina a geração coca-cola a protestar na tribuna livre e a ter vida inteligente.

Aparentemente, Altas Horas é colocado no ar como apenas mais um programa de auditório da nossa mídia televisiva. Mas a aparência às vezes não ensina nada. Para se compreender a importância desse inteligente espaço cultural é preciso dissipar as nuvens enganosas da ilusão ótica e conceitual, contextualizando o passado e o presente e focalizando a formação de duas gerações: os filhos da ditadura e os rebentos da democracia.

O regime militar instituído no Brasil, a partir de 1º de abril de 1964, deixou um salto histórico muito questionado e analisado hoje em dia. Tomados da paranóia de que a Cortina de Ferro avançaria pro sobre a América Latina, via Revolução Cubana, de Fidel Castro, Camilo Cienfuego e Che Guevara, os militares tomaram o poder de assalto e lançaram mão da tortura e do terrorismo, perseguiram e assassinaram líderes sindicais, políticos, religiosos e até jornalistas, como foi o caso de Vladimir Herzog; cassaram os direitos políticos de muitos parlamentares e fecharam o Congresso Nacional, acabaram os partidos políticos, extinguiram e depredaram o prédio da União Nacional dos Estudantes/UNE e impuseram o terror cultural através da censura prévia às produções artísticas.

Amordaçada a nação, pelo controle rígido da manifestação do pensamento, a geração dos anos 60 (aquela famosa década marcada pelo movimento da contra-cultura, o Paz e Amor, as profundas mudanças de comportamento, o Rock and Roll e as tiradas filosóficas de Paul Sartre e Simone de Beauvoir) se viu de mãos amarradas diante de um regime que veio para negar todas essas bandeiras de liberdade. As gerações posteriores, dos anos 70 e 80, também seriam forjadas sob o manto do silêncio, da ausência do debate, da falta do exercício da liberdade de pensamento, da carência do participar, do influir nas decisões políticas e do cultivar a cidadania como valor fundamental. Suas músicas foram censuradas, suas peças teatrais foram tripudiadas pela ação de grupos de extrema-direita, os jornais que leram tiveram suas páginas cortadas pela tesoura da censura, seus músicos tiveram que fugir para o exílio, a exemplo de Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, e suas passeatas foram brutalmente reprimidas pelas forças de segurança do Estado. Esse foi o universo social e político que os militares reservaram para criar e educar os filhos da ditadura.

E os filhos da democracia onde estão? Estão lá no programa Altas Horas, meio perdidos e enchendo a cara de liberdade, mas opinando sobre tudo e sobre todos os temas, conversando com músicos, produtores culturais, questionando políticos de todas as matizes ideológicas, interrogando intelectuais, pondo em xeque velhos preconceitos, através de entrevistas com negros, empresários, produtores culturais, travestis, atores, líderes sindicais, religiosos, refletindo sobre a pichação, o problema do índio, da mulher, da velhice, da juventude, da droga, da economia, repressão policial, violência urbana, e muitos outros tema polêmicos. Os garotos e garotas (dá gosto e inveja de ver) falam abertamente de sexo, um velho tabu que a ditadura sempre escamoteou, em nome da “moral e dos bons costumes”. Os filhos da ditadura, como não tinham uma televisão crítica, nem um teatro, nem um cinema, nem um jornal livre, nem espaço para o exercício do pensamento, faziam da mesa de bar a grande tribuna panfletária da existência e da crítica.

É óbvio que um simples programa de televisão não fará a revolução cultural que historicamente reclama a república brasileira, pois para isso precisaríamos, em primeiro lugar, de um governo capaz de promover com radicalismo as transformações que o país requer, mobilizando todos os setores e segmentos sociais da nação nesse sentido. Enquanto isso não acontece, ou acontece em parte com as importantes obras do governo petista na área social, vale o elogio à criatividade e à sensibilidade do Fala Garoto, de Serginho Groisman, ex-apresentador da TVE, onde nasceu o Altas Horas com o nome de “Matéria Prima”, passando depois a chamar-se “Programa Livre”, no STB.  Silvio Santos viu que a idéia era boa, comprou a briga e pôs o programa no ar – sem dúvida o melhor golpe do baú do ex-camelô. Roberto Marinho comprou o passe de Serginho e o levou para a Rede Globo. E hoje, uma vez por semana, há vida inteligente na madrugada deste país. Sãos as vozes dos garotos da democracia.

 Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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