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Serpa do Amaral

O escriba é um adorável mentiroso!


O escriba é um adorável mentiroso! - Gente de Opinião
 

O escritor William Haverly Martins lançou ontem (14/06), às 21 horas, na Casa da Cultura Ivan Marrocos, a obra “Capricho do absurdo – a morte prematura da República Socialista do Guaporé”, um romance de 296 páginas, editado com o apoio da Secretaria dos Esportes, da cultura e do Lazer. O secretário Francisco Leilson, o Chicão (PC do B), prestigiou o evento. Coube-nos fazer apresentação do livro, oportunidade em que apresentamos as seguintes palpitações inspiradas na leitura da obra literária.

Literatura e Realidade

Adorável mentiroso é o escriba. Mente que não sente. Sente tanto, e com tão zelo, e com tal intensidade, e despudor, que desapercebe os raios fúlgidos de seus entes metafísicos tomando corpo nas entranhas do pensamento alheio, criando um magnífico campo significativo de ilusões que são verdadeiras na subjetividade dos que, basbaques, se embebedam a solavanco das essências desfolhadas à guisa de ficções literárias em suas obras permeadas de invencionice bisbilhoteira, com todo escárnio e ironia, como convém a um observador de verve anarquista, ante à comédia que se desenrola no mundo dos homens. E aí de nós se perquirirmos quem veio primeiro: a Realidade ou a Ficção?? Quando inicia aquela e quando termina esta?

E se a alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo, o orgasmo da literatura dá-se na exata medida em que todos os campos da realidade sejam arados em chama homérica, para o regozijo do artista que verdadeiramente tem paixão pela descoberta, pela destruição e reinvenção do campo significativo, descrevendo o auto da epopéia humana, em sendo sua sina perseverar como se Deus fosse, pois escrever é poder tudo, ou quase tudo, é descobrir, desnudar e revelar mundos, submundos e intramundos que traduzem o sublime mister da arte literária; texto e contexto se amam e se odeiam por isso mesmo; cada qual sabe onde o sapato da sordidez aperta na hora do embate entre a palavra e o ser, entre a conjugação radical dos verbos e a adjetivação dos personagens circenses do show da vida. E se a história possui a instrumentalidade do raciocínio causal para dissecar e entender o ato humano, tem a literatura a não menos nobre permissibilidade de voar ao largo do fato, ou de mergulhar na sua intimidade uterina, dando cambalhotas, desenhando elipses, círculos e silhuetas sem pudor algum, como se fosse uma bêbada borboleta semântica brincando de pira com um beija-flor anárquico no quintal da criatividade inglória. Na solidez da cidade das criaturas adultas eclodem enigmáticas bolhas de sabão embasbacando o mirar boquiaberto e perplexo do homem-criança. Daí a necessidade de concretarmos com a argamassa do cimento onírico a selva de pedra que nos é dada a cada noite e dia de vida. Períodos, frases, verbetes e orações se articulam e bailam como pirilampos sob a batuta do escrevinhador. Escrever, portanto, é inventar liberdades e abduzir fantasias e utopias que correm a céu aberto nas veias incertas da América Latina.
 

O escriba é um adorável mentiroso! - Gente de Opinião


Gênese da civilização Karipuna

Para acomodar interesses de nações, instalou-se a Estrada de Ferro no coração da selva. Com ela, veio o homem. Com o homem, o amontoado, que se fez casario, vilarejo e posteriormente cidade. Cosmopolita, por sinal, feito uma babel de inúmeros falares, múltiplos costumes, culturas e anseios. Iniciou-se, então, o inexorável processo civilizatório às barrancas do pachorrento Rio Madeira - testemunha silenciosa da luta entre o homem e a natureza hostil, entre o homem e o homem, dizimando a nação Karipuna; entre o homem e a peste, vitimando milhares de combatentes de um exército ensandecido e quixotesco, comandado por Percival Farqhuar. Desse amor em desatino, do Homem pela exploração econômica de sua Estrada nos sertões bravios da Amazônia, nasceu o rebento Porto Velho, rebento filho de uma epopéia transnacional e berço da peleja dramática e apaixonada entre Peles Curtas e Cutubas, um teatro de relações em que um marginal tenentista, oriundo das plagas paraenses, torna-se aqui um potentado da política, dando origem, a mando e desmando, ao primeiro grupo núcleo de poder hegemônico no advento do Território Federal do Guaporé. O grupo aluizista era a tese, de cujo útero emergiria a antítese formidável encabeçada por Joaquim Vicente Rondon e, mais tarde, pelo cavaleiro da esperança dos descamisados ribeirinhos, o aguerrido médico e humanista Renato Clímaco Borralho de Medeiros. Assoalhadas essas contradições, estava pronta a base para a decolagem da nave onírica que lançaria aos corações irrequietos o gosto pela persecução das utopias nos igapós desbravados por Rondon.

Gênese da História do Homem

Diz-se que não éramos. Era o Verbo e era o Caos, mas não fôramos ainda. Houve um momento, entretanto, em que a história se fez razão e a razão se fez história, e foi a tarde e a manhã do primeiro dia em que Prometeu roubou o fogo dos deuses e o regalou aos homens. E fez-se a palavra e a palavração no espírito do caniço pensante, e nunca mais as calendas deixaram de trotar em avalanches por sobre as hordas, tribos, ondas e nações mundo afora, forjando fervorosas, ao troar das trombetas quânticas e cronológicas do cosmo, a sanha do homem, bicho ludicus, animal faber, ser sapiens, homo economicus, ente politicus, inventador de idéias e ideologias, cultor de governos e governantes, farsante e faceiro, tapeceiro de peças sociais, trapiches e dramas, conceptor do Estado e mentor dos exércitos e de estadistas, escultor de renatistas e aluizista, paridor de maiêuticas e feitor de bens, sistema político, classes, economias, shoppings e idiossincrasias. O fogo se fez verdade mitologicamente revelada. A realidade viria a ser o palco e todos nós, cativos ou libertos, conservadores ou progressistas, espertos ou libertinos, ladinos, latinos ou suínos da espécie, vítima ou algoz, haveríamos de nos tornar agentes – condenados que fomos a ser livres – do nosso próprio novelo existencial, cada qual se conectando ao seu fio de Ariadne, na busca incessante do desenho mágico que signifique a vida. E o último a sair ligou de soslaio o motor do tempo, catapultando sementes de cronos a todas as searas da atividade humana. Tempo que anuncia a vida, tempo que prescreve a morte, tempo que fita a caravana dos homens escalando o desfiladeiro do presente. E eis que a palavra criadora se fez pena que, nas mãos espalmadas de um escriba, transmuta-se em resenha graciosa ou trágica, submissa ou insurreta, recalcitrante ou mocoronga, a dizer ou desdizer das peripécias chaplinianas que nos acometem a todos os mortais.
 

A utopia da República Socialista do Guaporé

A História, por ser um circo, tem no tempo e no espaço seus malabaristas prediletos, totens do descalabro ou efígie de grandes feitos na Antiguidade Clássica, na Era Medieval, ou aqui mesmo na República Socialista do Guaporé, a Rosa Antropofágica do Norte; República que os karipunas idealistas tentaram criar, não por deleite vão, mas por terem sido tocados por cupido, que lhes introjetou nas veias o amor pela humanidade amazônida. Com ela sonhou Renato Medeiros, Carmênio, Dionísio Xavier da Silveira, Bola Sete, João Lobo e muitos outros sonhadores. Tantas foram as Repúblicas inventadas ao longo do nosso processo civilizatório que os nossos comunistas, socialistas, idealista, humanistas, progressistas, anarquistas e democratas e ativistas tentaram pegar no bonde da história a oportunidade de quem sabe também construir nestes rincões uma que tivesse a cara da nossa gente, uma que fosse proporcional à sede de identidade e de justiça social que pairava por sobre a nossa realidade; daí conceberam o grande sonho de que trata esta obra: a República Socialista do Guaporé.

As Repúblicas Brasileiras

No devaneio da ideologia positivista, nasce para os tupiniquins a primeira coisa pública, a República das Espadas. Deodoro, tomado de ardente paixão pelos dogmas quase religiosos da primeira escola sociológica, inaugurada por Auguste Comte e Durkheim, chuta o balde do monarquismo e declara amor ao princípio da Ordem, tendo por meta precípua o Progresso como base de uma sociedade justa, fraterna e progressista. O delírio do velho Marechal, entretanto, não tem abrigo na arte da política, por isso ele, despido de qualquer resquício de lucidez, manda fechar o Congresso Nacional. E naufraga assim a primeira grande utopia do racionalismo moderno em terras de Pindorama.

A República positivista, então, lançou mão do porrete, e trouxe para ribalta do show da vida política Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro. Ora, ferro nos olhos dos outros é refresco, por isso, consolidada a República a ferro e a fogo, a patente militar entrega a chave da casa para as elites Paulista e Mineira, para que elas possam também, provando as delícias do poder e as mordomias e benesses da aristocracia, edificar a sua República, nascendo nesse contexto a República do Café com Leite, que só seria derrocada por uma Revolução, possibilitando a Getúlio Vargas emplacar também a sua República do Estado Novo. Em 1964, os militares voltam à tona e impõem a República Ditatorial, para servir aos interesses do anti-comunismo, do capitalismo e do nacionalismo conservador. Decorridos 21 anos de ditadura militar, eis que surge no horizonte do berço esplêndido a Nova República, sob o comando da velha raposa mineira, Tancredo Neves. A República Collorida tentou fazer o povo de palhaço, mas sucumbiu ante a onda avassaladora de indignação que tomou conta de todo o país. Com um torneiro mecânico que se tornou presidente tivemos a concepção da República Vermelha de Lula e Dilma Roussef.

Se a Política tem por berço etimológico o vocábulo pátrio pólis, que se refere à cidade dos homens, então ver-se tratar desde logo da arte do que é humanamente possível e impossível. Na pólis, pena e política são quase farinha do mesmo saco. Se esta cria o fato, aquela outra o descreve; se uma por capricho forja a trama, a outra por deslize escreve o drama, simbolizando o cordão umbilical conector de dois elementos que alimentam cotidianamente a fantástica viagem da existência: literatura e realidade – o pão-nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje que nos é presenteado a bico de pena no competente e efervescente desvario de William Haverly Martins, lembrando-nos ele com todo capricho que o absurdo requer, que, ante a loucura, todos nós temos um pouco de Erasmo de Rotterdam.

E por falar em Erasmo de Rotterdam, vamos fazer a chamada geral: o espírito de Clidenor Moreira Jorge – PRESENTE! O espírito de Renato Medeiros – PRESENTE! O espírito de João Lobo – PRESENTE! O espírito de Bola Sete – PRESENTE! O espírito de Dionísio Xavier da Silveira – PRESENTE. O espírito do Velho Serpa do Amaral – PRESENTE! O espírito de Luís Lessa – PRESENTE! O espírito do turco Chaquian – PRESENTE! Demais espíritos que conspiraram para que a utopia se fizesse realidade entre nós – PRESENTES. Eis o palpitar de quem leu o delírio inoxidável do escritor William Haverly Martins. Eis, presentes entre nós, os espíritos que idealizaram o sonho da justiça social, da paz e da fraternidade. Só nos resta, então, recomendar a leitura do livro, e dizer: Viva a República Socialista do Guaporé!!! Parabéns, Professor William, pela produção dessa inventiva peça literária.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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