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Serpa do Amaral

Bossa-Nova: Revolução Burguesa na Música Popular Brasileira



A Bossa-Nova é a última grande invenção musical da civilização brasileira. Diferente do Samba, que emergiu a trancos e barrancos e foi tratado como caso de polícia, a Bossa-Nova nasceu em berço de ouro, ou quase de ouro, num confortável almofadado classe-média da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Nasceu abastada, nos apartamentos de uma burguesia perfumada, liberal, talentosa, inspirada, bem-alimentada e ávida por mostrar sua voz, falar dos seus amores e dores num peculiar cenário da nossa civilização mestiça: a atmosfera desenvolvimentista dos anos JK, os anos dourados.

Cinqüenta anos se passaram. O vinil "Chega de Saudades" é o marco zero. Depois dela - dizem alguns críticos mais azedos - não se fez nada de novo no cenário da MPB. Acham até que ela não é MPB, é muito mais que isso – seria a fina flor do requinte musical da pequeno-burguesia nacional. Portanto, três tons acima do diapasão da música popular brasileira comum.  Música pra poucos, pra gente inteligente, bem informada e de bem com a vida. Com ela o Brasil deixa de cultivar os vozeirões de Orlando Silva, Francisco Alves e Carlos Galhardo e passa a cantar baixinho, quase surrando, confidenciando que se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor. 

 

Se com o velho Caudilho de São Borja o Brasil vivenciou a contestação radical à República Velha, a Revolução de 30 e o assentamento da base infra-estrutural para a sua industrialização, com Juscelino Kubitschek o país cresceria 50 anos em 5, convidaria todas as multinacionais para a festa e planificaria o palco urbano para o descortinamento de ângulos rítmicos e harmônicos até então desconhecidos dos nossos trovadores românticos. No Antigo Regime republicano, registrou Donga, o chefe da polícia avisava ao malandro que na Carioca tinha uma roleta pra se jogar. Era o samba descendo o morro e tentando se firmar no asfalto. No mesmo ano em que Getúlio amarra seus cavalos no obelisco da antiga Capital Federal, um certo compositor batucava numa caixa de fósforo nos botecos cariocas, perguntando com que roupa iria à festa a que fora convidado. Era Noel Rosa, ora pedindo uma média, ora ironizando um gago, ora contrapondo babado sim com babado não. O jazz rondava o terreiro dos tantãs e os nossos compositores já bebericavam aqui e ali um pouco do licor de Paul Whiteman.

 

Certo dia, um brado nada retumbante, porque pequeno, comedido e bem comportado, falou mais alto que o grito do ipiranga. E do berço esplêndido da carioquíssima zona sul partiu o primeiro tiro de guerra – de uma guerra da paz, onde um cantinho e um violão, um amor e uma canção seriam os primeiros festins de uma revolução sem mortos nem feridos, pois no máximo atingiram fisiologicamente os flancos hepáticos de meia-dúzia de revolucionários movidos a álcool; e, poeticamente, despedaçariam, metaforicamente, alguns tantos corações inebriados com as dicas de como viver um grande amor. Afinal, quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu...

 

Bossa-nova é construção tripartite, junção de células, como diria o Bado: das terras de África emprestou-se o ritmo negróide, malemolente, cativante; do Harlem, berço do jazz castiço, importou-se sofisticada harmonia; do torrão de macunaíma, tomou-se emprestado a poesia viniciana, o piano tom-jobiniano, um apartamento no Leblon de onde se via um barquinho a navegar no macio azul do mar, e um violão carlos-lyraniano, capaz de reunir a ação ao sentimento e ao pensamento. Surgia, assim, um jeito bem brasileiro de mostrar ao mundo a força da musicalidade tupiniquim; algo diferente, um plus, uma coisa meio boçal, uma nova bossa, uma bossa-nova. Seu cavaleiro da esperança e mago inventor, diziam as más línguas, era um tal joão de ouvi falar, um joão-ninguém, um joão qualquer do povo, um tímido João Gilberto. Esse joão também era um joão-sem terra, porque tinha de seu apenas sua viola pequenina e um resto de voz que aos ouvidos de todos chegava contida, fanhosa e desafinada. Os acordes que ele inventou, por serem destoantes e dissociados de qualquer seqüência harmônica agradável, agredia a moral e os bons costumes do brasileiro mediano. Não eram sonoros. Feriam aos ouvidos. Eram verdadeiramente dissonantes.  Mas fazer o quê? Se aquilo era bossa-nova, era muito natural...

 

Há quem diga, como o nobre Stancini Cardoso, mineiro de boa cepa, que nos afastados de Diamantina teria o tal joão concebido a poção mágica dessa aventura musical, a desconcertante batida sincopada – que não é pausa, não é breque nem stacato, nem fim nem começo, é mais que ginga ou revorteio de viola, é a cabala rítmica do inusitado desafiando a sobriedade tropical sem ser necessariamente tropicalista, embora tenha sido contemporânea daquele movimento.   Levaria um tempo para a que batida joão-gilbertiana passasse de maldita à charmosa, de caótica à sofisticada, e saltasse do boteco ao Carnegie Hall. Não importava o nome, o melhor mesmo era surpreender o ouvinte, tocando o violão como se um tamborim fosse, sem perder a ternura, mas escolhendo aleatoriamente, no compasso, o tempo sobre o qual devesse, ou não, recair a síncope. 

 

E fez-se a luz sobre a aquarela brasileira! E foi o primeiro dia e a primeira noite da Criação. E vendo o criador que a obra era boa, lançou sementes do caos sobre todas as campinas harmônicas da terra brasilis, para que não restasse pedra sobre pedra do acorde perfeito, maio ou menor. E assim, por obra e graça do espírito irrequieto desse tal joão, o encadeamento dos sons simultâneos transformou-se numa galáxia de infinitas possibilidades, seduzindo a todos os "desafinados" da face da terra. Bóscolis e Menescais viriam depois compor a tropa de elite do movimento. Se 68 é o ano que não acabou, considera-se 58 o ano em que o Brasil foi descoberto pela Bossa-Nova.

 
São muitos os endereços desse fato histórico. Se consultados os Correios e Telégrafo, os carteiros apontarão a rua Nascimento e Silva, cento e sete, onde  uma plêiade de bossa-novistas ensinavam pra Elizeth as canções de "Canção do Amor Demais".

Se indagado aos barraqueiros da zona sul, apontarão para o Bar do Veloso, onde uma coisa mais linda, mais cheia de graça passeava desavisada a caminho do mar de ipanema, enquanto Tom Jobim e Vinícius de Morais se faziam acompanhar do melhor amigo do homem, o uísque – o cachorro engarrafado. Estava feita a Revolução Burguesa na Música Popular Brasileira. 
 
Fonte: Antônio Serpa do Amaral
 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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