Domingo, 5 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

ANTROPOFAGIA DE CATIRINA E CAZUMBÁ



O Gigante Sagrado, sob as toadas do Amo Sílvio Santos, levou seu pajé e seus bravos guerreiros ao Arraial da Câmara Municipal. Lá, ao som do batuque e com a naturalidade típica da sabedoria popular, o folguedo escreveu no chão do terreiro uma eloqüente catilinária cultural movida a folkcomunicação. Perderam a aula alguns analfabetos políticos que compõem a nossa democracia representativa.

Lembrei, imediatamente, da pajelança mameluca ocorrida nos Estados Unidos da América do Norte há alguns anos, quando assim registrei:

"A fuzaca cabocla aterrissou de mala e cuia em Nova Iorque. Todo mundo viu pela TV. Na verdade, foi só um ensaio geral. O mega-show que vai fazer a Quinta Avenida delirar ainda está por vir. A pajelança de Arlindo Júnior e David Assaiague invadiu a sofisticada metrópole americana e não só surpreendeu os brazilianistas, como deixou boquiabertos os rebentos do Tio Sam.

Os bois-bumbás Caprichoso e Garantido, depois de percorrerem uma longa trajetória que começou há muitos anos nos currais de chão batido, em Parintins, passando depois pelos melhores palcos do eixo Rio-São Paulo e Europa, finalmente conseguiram se apresentar na Meca do capitalismo ocidental, apetrechados com seus balangandans tupiniquins, a compassada toada dos Maués e o charme discreto das cunhãs, com o firme propósito de mostrar ao mundo que a velha máxima da dialética se impõe a qualquer contexto histórico: quem domina também é dominado. Valeu para os romanos, com sua política expansionista em relação à Grécia – sendo irresistivelmente seduzidos pelo helenismo -, vale hoje em dia para o império americano em relação aos povos da floresta, submetidos ao capitalismo selvagem terceiro-mundista, fruto da política hegemônica dos Estados Unidos na América Latina.

O boi-bumbá que ganhou o bredo nas ruas novaiorquinas, todavia, não é originalmente o mesmo boi encenado por autênticos atores populares cujo desempenho na execução do auto embeveciam e encantavam tanto os adultos quanto a meninada de trinta anos atrás, fazendo apelos tragi-cômicos na encenação daquela peça mambembe. Para se tornar um fenômeno de massa e faturar alto no mercado fonográfico e cênico do show-business, os famas de Parintins lançaram mão de alguns recursos dantes nunca cogitados no teatro espontâneo e popular dos antigos bois de Catirina, Cazumbá e Pai Francisco. O boi de Parintins teve que receber o impulso da iniciativa privada e da máquina turística do Estado do Amazonas. Além disso, aquilo que foi proposital e racionalmente sugerido pelo modernismo de Mário de Andrade como elemento catalisador da diversidade circundante, se alimentando e a tudo liquidificando para provocar a sui generis síntese universal do que viria a ser o novo –o antropofagismo à la Geléia Geral– foi por estas bandas intuitivamente colocado em prática pela invencionice ribeirinha, na ânsia de conceber o inédito. Para conquistar o direito de se mostrar na cidade que tanto amou, reverenciou e até homenageou o maestro Antônio Carlos Jobim, Garantido e Caprichoso tiveram que superar a miopia que os fazia enxergar somente até o limite da cerca de seus antigos currais. Deixaram o conservadorismo de lado e aglutinaram elementos da musicalidade praticada nas metrópoles à estrutura rítmico-melódica, revolucionaram a linguagem cênica e, com uma rica e cativante coreografia, buscaram uma interação público-artista até então nunca praticada. A nova coreografia, aliás, nos libertou das amarras do remelexo imposto pelo domínio baiano do axé-music. Com ela, proclamamos nosso independence day. É claro que numa apreciação mais radical do mérito dessas mudanças percebe-se que, paralelamente às conquistas alcançadas, a nova maneira de brincar e fazer boi-bumbá trouxe inúmeras e lamentáveis perdas à forma e ao conteúdo do auto, causados pelo antropofagismo cultural caboclo, pois é no auto que o Brasil mostra sua cara e se desnuda a pretexto de uma folia pagã. Bem antes de Augusto Boal se dar conta, o teatro do oprimido já era uma talentosa vertente da dramaturgia de saltimbancos confeccionada pelo mameluco para satirizar o cristianismo, a xucrice de nossas elites e a historiografia oficialesca e, de resto, toda superestrutura da tenda circense brasileira, da cana-de-açúcar ao capitalismo digital.

Na teatralização do velho boi, o objetivo maior dos brincantes era divertir pequenas platéias acotoveladas nos confins da Amazônia. A pândega de então, movida a espontaneidade e ingenuidade, tão-somente norteada pelo princípio do prazer e escárnio, não decodificara as conotações e denotações da sociedade de consumo, suas leis, lógica e selvas. O boi era pré-capitalista, anárquico e feliz, como convém ao não-alinhamento de quem se quer livre. Tudo era muito simples e não havia a malícia da produção, do faturamento, nem do espaço propagandístico, nem da mídia, e muito menos da conquista de mercados. Apesar disso, o fato é que ver o boi-bumbá em Wall Street significa muito mais que uma aparente apresentação do nosso exótico folclore em plagas norte-americanas. Soa como um revide à política mass mídia praticada pelo neo-colonialismo ianque em terras de Pindorama. O grande desafio é passar uma rasteira nos estereótipos forjados pela máquina publicitária do turismo –como a Vitória-Régia, o Teatro Amazonas, a Cobra Grande, a Pororoca e tantos outros– e proporcionar ao mundo a oportunidade de conhecer e participar da pajelança estética, musical, folclórica e coreográfica que, em suma, é a exuberante folia do bumbá. A inquieta, extravagante e ávida Nova Iorque foi escolhida de propósito para servir de passarela à quizomba dos que falam em nome de uma região cansada de ser conhecida apenas por seu exotismo paisagístico. A mestiçagem não quer mais apito. Quer mostrar ao mundo todo poder de sua veia invencioneira, seu espírito macunaimesco, sua capacidade de reagir dialeticamente à dominação e sua vontade de co-participar da globalização cultural neste pulsante milênio".

 Do quintal do parlamento municipal para o mundo, soam os tambores que um dia embalaram as noites mágicas de Santa Bárbara e Samborucu, descrevendo numa ária popularesca a força da antropofagia beradeira de Catirina e Cazumbá. 
 
Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 5 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

A origem do nome das Três Marias – as estrelas cintilantes da nossa identidade cultural

A origem do nome das Três Marias – as estrelas cintilantes da nossa identidade cultural

Em Porto Velho, todo mundo sabe que as caixas d’água instaladas numa praça do bairro Caiari são popularmente chamadas de Três Marias! Porém, ninguém

 Brasil e o Guaporé, tudo a ver!

Brasil e o Guaporé, tudo a ver!

A obra do jornalista Zola Xavier, Uma Frente Popular no Oeste do Brasil, que será lançada em breve na Casa da Cultura de Porto Velho, desponta hoje

Os Trapezistas do Circo da Fuleragem Assaltaram o Mercado Cultural

Os Trapezistas do Circo da Fuleragem Assaltaram o Mercado Cultural

O bafo sonoro do berimbau de lata repercutiu azedo e cativante ao mesmo tempo, enquanto Dom Lauro verbalizava um canto tribal, tomando para si o cocar

Gente de Opinião Domingo, 5 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)