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Gente de Opinião

Luka Ribeiro

1894 – CEM ANOS DE FÉ RIBEIRINHA – 1994


                O Alto Guaporé promove anualmente, há mais de cem anos, a festa devocional religiosa do DIVINO ESPÍRITO SANTO, seguramente o evento popular religioso mais importante do Estado de Rondônia. A festa é um acontecimento que sacode a região. Mexe com corações distantes. Devotos de alhures se movimentam para participar das festividades.

                A prática certamente é inspirada no costume português de celebrar o Divino Espírito Santo. Surgiu entre nós, inicialmente, em Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso, desceu o Vale do Guaporé e se firmou como festa popular da região. Completou o seu centenário em 1994.

                Falar da Festa do Divino Espírito Santo é falar da alma guaporense, do jeito de viver de uma gente que coloca na fé a esperança de seu porvir. Nos idos de 1994, tive a graça de participar dessa grandiosa festa, que naquela época começou logo ao zarpar do porto de Guajará-Mirim com destino a Costa Marques, local da celebração das festividades. Éramos 280 passageiros a bordo da embarcação movida pelo rebocador “Costa Marques”, sob o seguro comando de Alípio Fonseca e de sua competente tripulação.

                Desfrutávamos das “armações” cômicas de Joaquim Bártholo Jr., o conhecido CAROLA, amizade antiga; do romanesco das canções populares interpretadas por Walter Bártholo e das tiradas filosóficas do grego Eurípedes Suriadákis, amigo do coração. Também compartilhavam conosco, afavelmente, Jacy Bártholo, esposa de Carola, sua irmã, Juracy, Dalila Saldanha, Moema Lemos, Tereza Azzi, minha irmã, e Mônica aos cuidados de seu genro Josafá, a quem muito prezei em conhecer.

                Custodiava a nossa proteção a “MITRA” de Dom Geraldo Verdier, então “Epíscopos” das terras, rios e lagos do nosso rincão distante. Acompanhavam Dom Geraldo o sacerdote francês Padre Picart e o Dr. Bernard Babion, que estavam em visita à Diocese de Guajará-Mirim.

                A viagem rio acima é uma experiência de rara beleza. O sentido vazante, para quem conhece a região, traz águas das nascentes do Rio Guaporé em terras mato-grossenses que se incorporam às águas da torrente do Rio Mamoré, cujo percurso tem origem em solo boliviano. Juntos, após receber tributários, vão compor o colosso do Rio Madeira para, ao final, tudo desaguar no majestoso Rio Amazonas.

                É causa de espanto e admiração contemplar a força da vazante do “Mamoré” represado, por momentos, a jusante do “Guaporé”. O fenômeno do encontro das águas cor de chá preto guaporense com as achocolatadas águas mamorenses emolduram, por algum tempo, a passagem das embarcações.

                O rio é o mestre da vida ribeirinha. Única via de intercâmbio entre as pessoas e as localidades; por onde passa, acrescenta novo elo na corrente humana da solidariedade. Irmãos na espécie se tornam irmãos na convivência. É comum as embarcações reduzirem a velocidade para atender canoas com produtos de plantio local, como macaxeira, verduras, bananas, cocos e também carnes salgadas de caça ou de pescado, fazendo a troca por sal, leite em pó, açúcar, óleo diesel e, eventualmente, alguma roupa ou medicamento de uso e de efeitos conhecidos.

                As noites são geralmente frias, sujeitas que estão ao fenômeno da “friagem”, muito comum na região. Baixam-se as sanefas e o frio é controlado; porém, a perturbação dos “carapanãs”, em espécie de orquestração sinfônica sem maestro, é incontrolável.

                Fatos pitorescos aconteceram na viagem e mereceram destaque no pequeno “jornal” editado a bordo. As notícias eram hilariantes sobre o proceder dos passageiros, cutucando “cacoetes”, manias e o jeito pessoal de cada um. O destaque maior ficou por conta do embarque de dois suínos que, protestando, arredios e teimosos, se atiraram n’água, por certo pressentindo o alvoroço das panelas em cantoria frenética de boas vindas ou, quem sabe, a formação da guarda de honra dos espetos de churrasco, em acolhida condigna. Sabe-se lá o que se passa na cabeça de um porco. A pesquisa científica registra opiniões abalizadas sobre a peculiar inteligência suína. Já se deu até o caso de um Varrão Barbilongo assumir um Tabelionato a lavrar escrituras e notificações públicas, com muito acerto e competência.

                Tivemos celebrações da Santa Missa e rezas do Terço, com a participação de todos que, apesar da alegria das brincadeiras, não se descuidavam de que a viagem era uma romaria religiosa.

                Chegamos a Forte Príncipe da Beira. A unidade militar se estende perpendicularmente à margem do rio, tendo ao lado as ruínas do Forte, antiga edificação portuguesa, símbolo colonial contra eventuais ataques dos espanhois. Pode-se dizer que é um colosso da engenharia colonial perdido na selva. Paredes de metro de espessura, masmorras subterrâneas, paiol rústico e canhões adormecidos que evocam um passado histórico esquecido.

                A chegada a Costa Marques foi emocionante. Os ares da festa começaram a se manifestar. Devotos, claramente espiritualizados, davam início às festividades. Pessoas aglomeradas na palafita e na parte firme do porto, seriam cerca de duas mil, muitas dentro d’água ou com o corpo parcialmente submerso. Algumas exibiam objetos que demonstravam a graça alcançada. Muitos abraços chorosos num reencontro de fé e de esperança.

                Conforme a tradição, o barco em que vinham a COROA, o CETRO e a BANDEIRA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO, que havia nos aguardado na margem boliviana do rio, começou o procedimento de atracar. É um cerimonial simples, mas muito significativo. A barcaça faz três voltas na pequena enseada do porto, com salvas de tiros de um mosquete rústico. O som é de uma explosão surda e forte. O povo, então, é chamado a acolher os símbolos devocionais.

                Para acolher os símbolos do DIVINO, estavam autoridades do lugar, o IMPERADOR, a IMPERATRIZ, o ALFERES DA BANDEIRA, os FOLIÕES com instrumentos de cantoria e os incontáveis romeiros. Seguiram todos em procissão até o Santuário do Divino Espírito Santo, onde foi celebrada Missa campal de acolhida, presidida por Dom Geraldo Verdier, acompanhado por vários sacerdotes, entre eles, Padre Paulo, Padre Damião e Padre Jean. Após a Missa, os símbolos foram colocados em destaque ao lado do Altar, tendo início, a seguir, a vigília diária.

                O templo do Santuário de Costa Marques impressiona. A cobertura tem a forma de uma pomba com as asas abertas sobre um semicírculo. É como se a pomba segurasse uma hóstia. A coincidência arquitetônica com um dos símbolos do Espírito Santo, certamente, contribuiu para a magnitude das festividades.

                Na manhã seguinte, teve início a procissão da ESMOLA, que se prolongaria pelos oito dias posteriores, tendo à frente os Símbolos conduzidos pelo Imperador, acompanhado pela Imperatriz e pelo Alferes da Bandeira, dos Foliões Cantadores e dos “Remeiros”.

                Os “REMEIROS” são figuras de escol da festa. A eles cabe a tarefa de conduzir os Símbolos em embarcação a remo, tendo como força motora apenas o vigor de seus braços. Sua função é deslocar as relíquias devocionais do local onde se realiza a festa atual até o porto da festa do ano vindouro, que sempre é definido por sorteio natural inspirado pelo Divino Espírito Santo, como se verá mais adiante.

                A procissão vai de casa em casa, fazendo a visita do Espírito Santo. As pessoas fazem ofertas de esmolas. Colocando dinheiro na Coroa ou fixando cédulas de dinheiro nas fitas coloridas que adornam o mastro da Bandeira peregrina. Também fazem ofertas de alimentos, da forma em que cada um pode e quer dar. A multidão caminhante é sempre recebida nas casas visitadas, com algo de comer e beber (café, chocolate, refrescos e biscoitos artesanais). E assim vão fazendo as visitas em que os devotos recebem a imposição da Coroa na cabeça, beijam o Cetro e a Bandeira e, então, fazem a sua oferta devocional de esmola. O período das procissões se estende até o dia anterior ao da Festa, perfazendo nove dias.

                As refeições para todos, indistintamente, são oferecidas, graciosamente, por pessoas que cumprem promessas ou pelo Imperador e sua Imperatriz que arcam com esse compromisso. Nas jornadas diárias das procissões chega-se a atingir quinze quilômetros de caminhada de casa em casa.

                Contagiante mesmo era o clima das procissões. Muitas pessoas aparentando ser extremamente simples, algumas de chinelo, outras de pés no chão. Umas frágeis pela idade avançada, outras com embaraço no andar em razão de necessidades especiais. Mas todas esbanjando vigor físico nutrido pela fé. Quanto mais andavam, mais se dispunham a caminhar. Uma senhora bem idosa, em meio à multidão caminhante, por vezes se colocava ao meu lado, alegre e rezando o tempo todo. O objeto que conduzia nas mãos era o “Terço de MARIA SANTÍSSIMA”, um dos muitos que eu distribuíra na embarcação.

                Terminadas as procissões de esmola, seguiu-se a cerimônia do Mastro. A Bandeira, a Coroa e o Cetro já estavam à frente da procissão, a ela se integrando no caminho o Imperador, a Imperatriz, o Alferes da Bandeira e o Capitão do Mastro, a fim de recolher o Mastro e conduzi-lo à Praça do Santuário. Era uma multidão enorme percorrendo as ruas da cidade, com velas acesas. Passava, qual vazante de um rio, comprimindo as pessoas, umas às outras, com luminosidade natural nas mãos e labaredas espirituais nos corações. De repente emergiu da multidão o Mastro da Bandeira do Divino. Uma peça trabalhada artesanalmente do tronco de um açaizeiro com vinte e cinco metros de altura, ostentando vários anéis nas cores vermelha, azul e branca, conduzida com extremo carinho pelo toque dos dedos das pessoas, principalmente dos “REMEIROS”.

                Quando a procissão chegou ao Largo do Santuário, o Mastro foi erguido pelos “REMEIROS” e fincado no local, com o auxílio de três forquilhas de sustentação. A operação era complicada e dava a impressão de que não iriam conseguir. Mas reza a tradição que o Mastro sempre é colocado já na primeira tentativa e nunca aconteceu de o Mastro cair. Então, a Bandeira do Divino foi içada e, no topo do Mastro, tremulando, indicava a região de Rolim de Moura como sede da próxima Festa do Divino Espírito Santo. Palmas e algazarra de alegria incontida dos romeiros, principalmente de rolimourenses presentes.

                Na manhã seguinte, às nove horas, houve a celebração da Santa Missa, com a presença participativa de todas as comunidades do Divino Espírito Santo, concelebrada por dois bispos, um monsenhor e mais e sete sacerdotes. Dom Geraldo fez a acolhida, passando, a seguir, a presidência a Dom José Vieira de Lima, na época, bispo diocesano de Marabá, no Estado do Pará. Em homilia ungida, de pastor que conhece as necessidades do rebanho, Dom José, muito à vontade, pois, como padre, militou durante anos na região, falou da espiritualidade da festa, de sua importância histórica para a região, da força que brota do seio materno guaporense para o sustento da fé de um povo, que poucas vezes pode se reunir para celebrar a vida. Disse, também, da generosidade divina, através da natureza, que contribuiu com tempo bom nos dias de festividades.

                A cerimônia foi concluída com uma ensurdecedora salva de palmas. Pessoas davam testemunho de graças alcançadas, com abraços regados a lágrimas de muita fé. A luminosidade multicolorida dos fogos de artifício, em pleno dia, emolduraram os abraços, de amigos antigos e de outros semeados na festa, numa despedida com um “até breve”, talvez um reencontro em Rolim de Moura. A Festa do Divino Espírito Santo chegava ao seu final, orgulhosamente centenária.

                Essas lembranças, renascidas do arquivo pulsante, nos recordam amigos e amigas, parentes de sangue e do coração, que estiveram nessa jornada e que hoje, no descanso eterno, brilham na FESTA DEFINITIVA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO.

                A todos eles, merecido tributo.

               

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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