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MEU TESOURO E OLAVO BILAC




MEU TESOURO E OLAVO BILAC - Gente de Opinião 

Sandra Castiel

Ao longo da vida, ouvi com frequência que um dos sinais de que a velhice está chegando é certa constância de nossas lembranças antigas. Além disso, lembramo-nos com mais intensidade e com maior riqueza de detalhes das coisas do passado remoto. Guardadas as devidas proporções, começo a crer que esta máxima é verdadeira, pelo menos no que me diz respeito, pois, aos sessenta anos, no mínimo se está próximo ao portal da velhice, por mais que a mídia nos bombardeie vinte e quatro horas por dia com esse papo furado de melhor idade, etc., etc.

Apesar de ter uma boa memória, não me recordo de, no passado, ser surpreendida tantas vezes, como agora, por lembranças da infância; diga-se de passagem, lembranças não apenas dos episódios marcantes, porém, lembranças completas, uma vez que me aparecem enriquecidas com sons e cheiros: o burburinho da família grande na casa antiga e espaçosa, o movimento dos pratos fumegantes à mesa do jantar, o tilintar dos talheres, as grandes cirandas com as crianças da vizinhança em frente à nossa casa, à luz do luar, as aulas no grupo escolar... O grupo escolar! ... Este, sem dúvida, é o campeão no item de minhas lembranças.

Acordar cedo para ir ao grupo escolar, a pé, caminhando com as coleguinhas por ruas muito estreitas, ladeadas pela mata tropical, representa para qualquer criança experiência inesquecível: maria fecha a porta que teu pai morreu... Lá íamos nós, de uniforme azul e branco, carregando a pasta e a merendeira (eram assim chamadas as lancheiras), enquanto, ao longo do caminho, tocávamos alegremente o mato rasteiro (mais conhecido como maria-fecha-a-porta), cuja folha, orvalhada,  se fecha  ao mais leve contato. Risos e alegria de criança.

O sinal para entrada dos alunos no grupo escolar era o toque de um sino. Ouvido o sino, todos se reuniam no pátio.  As filas e os hinos faziam parte da rotina do início das atividades diárias no grupo escolar. Cada professora organizava sua turma na fila, aliás uma fila dupla; meninos em uma, meninas em outra, tudo por ordem de altura, com os menores na frente, é claro.  Feito isso, fazia-se um silêncio sepulcral, era hora do hino.  

Uma das turmas era escolhida pela diretora para “tirar” determinado hino àquele dia. Isso representava grande responsabilidade, uma preocupação para as professoras; as crianças tinham que saber de cor os hinos. E sabiam.   Lembro-me particularmente de um que dizia: ”Estudante do Brasil/Tua missão é a maior missão/ Trabalhar pela verdade/ Pela tua geração...” E por aí seguia com uma letra que exaltava a categoria estudantil e os sacrifícios que poderíamos fazer em nome do amor à pátria. Nós, as crianças da época, ficávamos emocionadas na hora de cantar o hino, as vozes soavam esganiçadas, quase exaltadas...

Na sala de aula, os alunos postavam-se ao lado das respectivas carteiras de madeira; só se podia sentar após a oração matinal.  Vivia-se um tempo em que a figura do professor era quase santificada; aliás, ouvíamos com frequência que a nossa professora era nossa segunda mãe, daí o respeito absoluto, inquestionável às crianças da época, que, àquele tempo respeitavam muito a figura materna.

Nos primeiros momentos da aula, diariamente, copiava-se com gosto o cabeçalho, procurando caprichar na caligrafia. O lápis precisava estar muito bem apontado, e a borracha sempre à mão, pois não era de bom tom apresentar caderno com borrões. A criança que esquecia em casa lápis ou borracha passava pelo constrangimento de levantar a mão, enquanto todos já estavam com a cabeça inclinada, concentrados e escrevendo, para comunicar a situação à professora. Isto era considerado uma negligência, pois todas as crianças, no início do ano letivo, recebiam o material escolar: três lápis número 1, uma borracha daquelas em duas cores, uma régua, um apontador, três cadernos Bandeirantes (brochura que apresentava, na contracapa, o Hino Nacional, ou o Hino da Independência ou o Hino da Bandeira) e uma caixa de lápis de cor com seis lápis. Não posso esquecer-me de acrescentar à lista o caderno de desenho, um item importantíssimo, pelo menos para a criança que eu fui, uma criança metida a desenhar__ aliás,  sem o menor talento, mas com uma grande e única inspiração: um céu estrelado, uma casinha  com uma menina na porta, uma árvore  com passarinhos ao lado da casa e flores no jardim. Algumas escolas também forneciam o caderno de caligrafia, este considerado de suma importância para o êxito escolar. Porém, o objeto de maior relevância de toda a lista era, sem dúvida alguma, o livro de leitura. Este era um capítulo à parte e até hoje corre na frente na raia de minhas lembranças.

MEU TESOURO. Este era o nome do livro de leitura que recebíamos anualmente. A chegada do livro ao grupo escolar era esperada com bastante ansiedade pelas crianças. Nesse dia, uma semana após o início do ano letivo, a turma ficava alvoroçada, frenética. A professora entregava o livro, e nós, as crianças, curiosíssimas, mal podíamos esperar para observar-lhe todos os detalhes. A capa era um dos mais importantes destaques. Lembro-me de uma cuja gravura, desenhada, reproduzia a entrada de uma linda escola azul e rosa, onde os alunos, muito brancos, dirigiam-se à entrada. Uniformizados e com livros na mão, aqueles alunos simplesmente me encantavam, subindo a pequena escada de acesso à escola.  Havia nos alunos da capa detalhes que para nós faziam toda a diferença; não nos identificávamos com aquelas figuras sempre loiras e agasalhadas, entrando em uma escola que mais parecia um palácio  e  que  em nada lembrava  nosso grupo escolar.  Porém, o que nos mobilizava era vislumbrar um cenário que fazia parte de um mundo distante, um mundo que, certamente, nós, crianças daquela longínqua Amazônia, não conhecíamos.

Completamente seduzidas pelo Meu Tesouro, levávamos horas, minhas irmãs, as crianças da vizinhança  e eu devorando os textos reunidos  naquele livro para a escola primária da época. Havia prosa e verso. Os textos em prosa comumente referiam-se a figuras históricas. Lembro-me de um que contava a morte de Soror Joana Angélica, morte terrível, pois ela teve o peito atravessado pela baioneta de um soldado, cujo pelotão tentava invadir o convento dirigido por ela. “_ Para trás, Vândalos!” _ gritou com voz enérgica a Soror. “_Respeitai a casa de Deus! Antes de conseguirdes  vossos infames desígnios, passareis sobre o meu cadáver!”  Estas foram as suas últimas palavras, antes de cair ensanguentada,  morta  com um golpe certeiro de baioneta no peito.

 A cena sanguinolenta da morte trágica de Soror Joana Angélica, uma história contada de maneira dramática, povoou muito tempo minha imaginação infantil. Aliás, essa heroína tornou-se personagem imprescindível em minhas brincadeiras de faz-de-conta, ocasião em que eu amarrava um lençol na cabeça para interpretar a freira.  Outros textos em prosa contidos no Meu Tesouro também marcaram minha infância. Porém, tanto tempo depois, reconheço que nada foi mais impactante em minha vida escolar do que os versos de Olavo Bilac. Reproduzo um por um até hoje: “Tal como a chuva caída/ Fecunda a terra no estio/ Para fecundar a vida/ O trabalho se criou/ Feliz quem pode orgulhoso/ Dizer: Nunca fui vadio/ E, se hoje sou venturoso/Devo ao trabalho o que sou/ É preciso desde a infância/ Ir preparando o futuro/Para chegar à abundância/ É preciso trabalhar/ Não nasce a planta perfeita/ Não nasce o fruto maduro/ E para ter a colheita/ É preciso semear.”

Versos educativos sobre a importância do trabalho, versos cujo ritmo facilitava a memorização, versos inegavelmente belos no que tange à singeleza de seus propósitos. Por que hoje esse propósito é considerado anti-artísitico pelos grandes entendidos em literatura?  Aprende-se nos cursos de letras que não deve a literatura para crianças ser explicitamente educativa, trazer lições de moral, posto que é arte e, como tal, tem obrigação de ser sutil, levar as crianças ao subjacente,  sem induções. Tudo bem, não vou aqui, modesta professora que sou, criar polêmica em nome da educação, longe disso! Mas o que faço com o poema Ave Maria, de Olavo Bilac, que lia, diariamente, aos nove anos de idade, no Meu Tesouro, e que incutiu em meu espírito o hábito da prece ao fim do dia e a certeza da consciência tranquila para conseguir dormir em paz? 

“Meu filho! termina o dia/ A primeira estrela brilha.../Procura a tua cartilha/ E reza a Ave Maria/ O gado volta aos currais/ O sino canta na Igreja/ Pede a Deus que te proteja/ E que dê vida a teus pais/Ave Maria!... Ajoelhado/ Pede a Deus que, generoso/ Te faça justo e bondoso/Filho bom e homem honrado/Que teus pais conserve aqui/ Para que possas um dia/ Pagar-lhes em alegria/ O que fizeram por ti/Reza e procura o teu leito/ Para adormeceres contente/ Dormirás tranquilamente/ Se disseres satisfeito:/ Hoje pratiquei o bem/ Não tive um dia vazio/ Trabalhei, não fui vadio/ E não fiz mal a ninguém.”

Certamente tais versos produziam um efeito educativo nas crianças, numa época em que não se tinha vergonha de educá-las, seja na escola ou em casa. Olavo Bilac escreveu uma série de poemas para a infância, todos de cunho educativo. Enfatizou, inclusive, a importância do respeito aos animais, com seu Pássaro Cativo, e A Borboleta, em um tempo que não havia a mínima consciência ecológica, não se falava em meio-ambiente ou em preservação de flora e fauna.  

Uma amiguinha de minhas irmãs maiores, que se chamava Dora (Dorinha), não perdia oportunidade de recitar, com seu fortíssimo sotaque nordestino (a família dela era proveniente daquela maravilhosa região), o Pássaro Cativo, evidentemente, descoberto no Meu Tesouro. Em plena festinha de aniversário, todos paravam para ouvi-la declamar, compenetrada: “Armas num galho de árvore um alçapão/ E em breve, uma avezinha descuidada/ Batendo as asas cai na escravidão...” Algumas crianças lagrimavam,  com dó do passarinho escravizado.

Quando adulta, o poeta de minha infância foi-me revelado como um dos parnasianos mais duramente criticados pelos modernistas de 22.  Como observa a professora Vera Lúcia Villas Boas, Mário de Andrade chegou a considerar os versos de Bilac uma ”melodia ultrapassada” e a afirmar que ele representava “uma fase destrutiva da poesia”. Oswald de Andrade, em Serafim Ponte Grande, afirma: “o mal foi eu ter medido o meu avanço sobre o cabestro metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias_ Bilac e Coelho Neto.” Manuel Bandeira, poeta modernista, através de seu poema Os Sapos, faz uma das mais contundentes críticas aos parnasianos; numa cadência satírica, refere-se à mensagem contida no poema Profissão de Fé, de Olavo Bilac. 

O conjunto de tão ardorosas críticas, sobretudo a oposição acirrada do movimento modernista ao parnasianismo, focada esta na contestação ao  exagero da técnica e à  busca pela perfeição,  acabou provocando uma espécie de aversão do leitor brasileiro aos poetas desse período.  É uma pena...

Hoje, chegando ao portal da velhice, percebo que aprendi muito mais com Meu Tesouro e com Olavo Bilac, naqueles singelos anos do Grupo Escolar Barão do Solimões, do que com os  densos volumes que percorri ao longo de minha vida inteira. A propósito, o material que recebíamos na escola trazia também uma tabuada.  Era tempo de se estudar...    

Fonte: Sandra Castiel Fernandes /  Membro da  Academia de Letras de Rondônia  

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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