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Complexo de vira-lata


Complexo de vira-lata - Gente de Opinião


Por William Haverly Martins

Sempre fui fascinado pelo trabalho do paisagista, ou do simples jardineiro, mais de uma vez o criativo Burle Max arrancou de mim as melhores exclamações: quer sejam os jardins dos ministérios de Brasília, os do Rio de Janeiro, ou o da cobertura de um prédio de trinta andares, a genialidade da decoração natural, da mais extensa a mais simples, me entusiasma. O jardim japonês com todas as suas plantas típicas, brilhantemente cenografado por Quentin Tarantino no final do KILLBILL 1, interagindo o som de uma roda d’água primitiva feita de ferro e bambu, com a vegetação, o clima, o gestual das lutadoras a se investigarem a partir dos olhos, provocou-me um verdadeiro orgasmo múltiplo dos sentidos, não canso de repetir a cena na tela da TV só para sentir no âmago aquele barulhinho gostoso, enquanto meu olhos, trabalhando a imaginação, vão buscar as raízes daquele povo e, por um instante que seja, me sinto japonês pela via da emoção. Raízes! Como elas são importantes, elucidativas, como são valiosas na formação da identidade cultural de uma nação, de um estado, de um município, de uma academia, de uma simples associação.

Ainda me preocupa o silêncio dos nossos administradores públicos quanto ao destino do que restou do prédio da prefeitura e câmara antigas, localizado na Ladeira Comendador Centeno. Estamos torcendo pela restauração porque ele faz parte das nossas raízes culturais, seria bem vindo o originalíssimo Museu da Política, a convergência do bem material com o imaterial. Nossos fantasmas políticos, por vocação histórica, também estão na formação da nossa identidade.

Os escombros dos viadutos, raízes da imbecilidade humana, poderão servir de cenário a um curta metragem, sugiro: Os efeitos colaterais de um terremoto administrativo. Cabe ao prefeito caprichar na divulgação do elenco e da direção técnica, os responsáveis por este mico ridículo que nos envergonha.

E para não dizer que não falei de flores! De fato, gosto de jardins, quase sempre o jardineiro mistura várias espécies num mesmo canteiro com resultados surpreendentes, ainda que no fundo se entrelacem silenciosamente diferentes raízes: uma rosa vermelha convive com uma amarela, um cravo aceita uma margarida de parceira que leva para a relação uma begônia. Pesquisas genéticas têm alcançado resultados cromáticos e estéticos sensacionais. Pois bem, assim é a população das nossas cidades, quanto mais variada a etnia, maior a miscigenação, maior a beleza. A diferença está na convivência, jamais na cor ou na espécie, as vertentes oriundas da inconsciência/consciência modificando egos, a razão manipulando subjetividades normais e anormais, geradoras de preconceitos, invejas, hipocrisias, conflitos, amor, guerra e paz, enfim, o fator humano interagindo no relacionamento.

O Brasil talvez seja o melhor exemplo de uma miscigenação bem sucedida, por outro lado desde os primeiros passos da nossa colonização as “raças” envolvidas nesta mistura foram classificadas de inferiores, e me causa espécie intelectuais do inicio do século discutindo a mestiçagem como geradora de incompetência, ou o nosso posicionamento geográfico como indicador de inferioridade, já que as ditas civilizações só poderiam se desenvolver no clima temperado.

A comparação do nível de vida das populações das cidades dos países europeus e do EUA com as cidades brasileiras sempre existiu. Ao longo das décadas fomos sendo classificados de inferiores e desenvolvemos voluntariamente um sentimento de inferioridade, segundo o ponto de vista de Nelson Rodrigues, um complexo de vira-lata. No inicio, o termo referia-se ao futebol, especificamente a copa de 1950, o velho cronista dizia que se o Brasil não se livrasse deste complexo não conseguiria ganhar uma copa do mundo, a crônica na qual ele assim se expressava foi escrita às vésperas da copa de 58 na Suécia, ganha pelo Brasil com folgas. A vitória teria livrado o escrete nacional do complexo de vira-lata no âmbito do futebol, daí pra frente passamos a ser respeitados e admirados nos campos do mundo. E no cômputo geral das relações nacionais e internacionais?

Internacionalmente avançamos pelo cipoal dos descrentes, alcançamos níveis de desenvolvimento econômico que nos colocam a poucos centímetros do patamar do G8. Entrementes, o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – ainda deixa muito a desejar, está baixo, mas estamos progredindo. A maior vergonha continua sendo a corrupção: a classe política não faz nenhum esforço para nos livrar deste terrível complexo de vira-lata internacional, neste cenário, endossamos Nietzsche: a esperança é um sentimento sórdido.

Na relação entre estados ainda persiste o velho bairrismo, estimulado pela concorrência do Norte/nordeste com o Sul/sudeste e pela ignorância de muita gente. Ultimamente há muita chiadeira em torno de opiniões detratoras de forasteiros sobre Rondônia, acho que está na hora de colocarmos um basta nisto tudo e nos preocuparmos com a autoestima de nosso povo. Sigamos o exemplo do Acre, onde ainda existe corrupção, mas a cidade/capital está cada vez mais bonita: o viaduto, as pontes, as ruas, os prédios públicos; a diferença, comparando com Porto Velho, é grande. Responderam com trabalho e amor as raízes à opinião do jornalista Diogo Mainardi, refutando os reclamos de Evo Morales de que a Bolívia havia dado o Acre ao Brasil em troca de um cavalo de raça: “até um pangaré seria um preço alto pelo Acre”.

Em vez de reclamarmos dos rafinhas, dos nazarenos, do doutor num sei o quê, em vez de nos escondermos embaixo das saias da inércia, vamos insuflar a coragem no interior de cada cidadão, reativando o conceito socrático de que não devemos ter medo daquilo que não é preciso ter medo. Vamos promover o mutirão da cidadania e da urbanidade democrática, costurando com amor as individualidades culturais, exigindo o culto e o respeito as nossas raízes para que aflorem na forma de identidade. Vamos balançar os ombros do presidente da Fundação Iaripuna, gritar nos ouvidos do Prefeito, exigir do governador o cumprimento das promessas. Vamos chamar à lide vereadores, deputados estaduais, federais e senadores. Vamos convidar as distantes universidades para assumirem posições de destaque neste mutirão. A ACRM, em breve, estará marcando uma grande assembléia no Mercado Cultural para exigir das autoridades ações pelo fim do complexo de vira-lata, pela melhoria do nosso sofrido IDH. 

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Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, membro efetivo da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e ocupa a cadeira 31 da ACLER – Academia de Letras de Rondônia.

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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