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A C L E R

A literatura, a história e a cultura que nos unem


 A literatura, a história e a cultura que nos unem - Gente de Opinião

 

 

Professor Doutor Dante Ribeiro da Fonseca[1].

A literatura, a história e a cultura que nos unem - Gente de OpiniãoPalestra proferida dia 8 de abril de 2011 na abertura oficial do I Encontro Cultural da Fronteira Brasil Bolívia


Antes de iniciar no tema devo agradecer a honrosa atribuição que a ACLER, AGL e SEG concederam-me de falar nesse momento sobre um assunto que tanto interessa a todos nós.

Primeiramente devemos delimitar o nosso tema. Trata-se, a princípio, do que há em comum em termos de História, Literatura e Cultura entre dois países: o Brasil e a Bolívia. É com a Bolívia que o Brasil possui sua maior fronteira, que se estende por 3.423 quilômetros. É muita história nessa fronteira. Se considerarmos apenas duas áreas que hoje compartilham dessa fronteira: o estado de Rondônia, no Brasil e o Departamento do Beni, na Bolívia observaremos uma dinâmica histórica que teve seus ritmos próprios, embora ambas colonizadas intensivamente apenas a partir da segunda metade do século XIX. Assim, decidimos concentrar o objeto de nossas atenções nesse espaço que vai do rio Guaporé, ou Itenez, ao Madeira, que hoje banha o estado de Rondônia. Afinal, trata-se de um encontro fronteiriço que envolve, especialmente, as instituições de Rondônia e do Beni. Evidentemente falarei a partir da perspectiva em que encontro-me, do Brasil.

Em segundo lugar devo estabelecer os recortes conceituais. A História, primeiramente. Socorro-me aqui da Escola dos Annales. Mais precisamente de Marc Bloch, esse grande historiador francês que, prisioneiro dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, antes de ser executado, escreveu um primor de obra que ilumina os historiadores até hoje. Falo de um conjunto de escritos depois organizados com o título de Apologie pour l'histoire ou métier d'historien, traduzido para o português como O que é a História (BLOCH, s/d). Segundo Bloch: História é a ciência do homem, vivendo em sociedade no tempo. De outra forma o objeto da História é o homem, mas não o homem atomizado. O objeto da História é aquele homem que o filósofo grego Aristóteles definiu (A Política) como um zoon politicon ou um animal político. Podemos entender a polis no sentido estritamente político, como o corpo de cidadãos quanto como o espaço urbano, no sentido de cidade. Contudo é principalmente no sentido da sociabilidade que devemos entender esse animal político. Segundo o filósofo um dado natural e, portanto, um comportamento inevitável. Em resumo, para Aristóteles o homem somente exprime sua humanidade como animal político. Por outro lado, a História trata também do tempo, ou das mudanças e permanências nas sociedades humanas. Bloch define o tempo como o ambiente, o plasma, onde estão imersos os fenômenos sociais. Não tratamos a História como a ciência do passado, mas a ciência do presente, de um presente que não inventa, mas reinterpreta o passado dando sentido a si mesmo e ao próprio presente.

Em terceiro lugar a Literatura. Por um longo tempo identificada com a expressão gráfica da língua, a literatura abriga hoje outros espaços da expressão humana. É por isso que podemos falar, por exemplo, em Literatura Oral, embora sua prática seja antiga. Os gregos praticavam essa literatura oral, por exemplo, a Ilíada e a Odisséia. Atribui-se a Homero a forma escrita desses dois épicos, provavelmente por volta do século VIII a.C. Como a literatura escrita, a literatura oral transmite fenômenos reais, fictícios ou ficcionalizados. Histórias contadas de uma geração para outra durante muitas gerações até que, às vezes, são registradas por escrito.

Em quarto lugar a cultura. Nenhum dos termos sugeridos para a presente explanação é mais complexo, polissêmico e polêmico do que o termo cultura. Talvez, o conceito mais apropriado seja o mais amplo possível: cultura é todo o produto humano. A língua, a literatura, os utensílios, as lendas, as técnicas, enfim, tudo aquilo que o ser humano produz é cultura. Como vimos o ser humano se caracteriza por ser essencialmente social, logo, a cultura também o é. Podemos dizer que a cultura é Histórica porque como a história se constrói e se reconstrói pelas sociedades no tempo.

Vamos então intentar um esboço da História, da Literatura e da Cultura que nos unem, tomando como guia mestra a História.

Tal como ocorreu com a literatura, consolidou-se no século XIX a concepção de que a História apenas seria possível àqueles povos que dominassem a escrita. Daí o termo pré História ser o equivalente à pré escrita. Se um povo não tivesse escrita não teria História. Havia, simultaneamente, uma concepção de História como Luta de Classes. Esse conceito que colocava as sociedades nativas da América, genericamente, como sociedades primitivas, pois não possuíam classes, logo, não possuíam História. Lembremo-nos da máxima do filósofo alemão Karl Marx: “Toda a História é a história da Luta de Classes.” Contudo, antes mesmo da existência do Império Inca, da Audiência de Charcas, integrante do Vice-Reino do Peru e do Grão Pará, a Amazônia Brasileira, antes mesmo da existência do Brasil e da Bolívia, existiu nessa região uma História, porque existiam aqui homens vivendo em sociedade. Essa história existiu sem manifestação escrita da língua ou sem as classes sociais.

A literatura, a história e a cultura que nos unem - Gente de Opinião
Bispo de Guajará-Mirim, Dom Geraldo Verdier (E) e o Professor Doutor Dante Ribeiro da Fonseca (D)

Ora, os homens é que fazem a História, mas não o fazem a partir do nada, constroem-na a partir de uma base social pré existente e de uma base natural sobre a qual eles agem. Sem essas duas pré condições seria impossível sua continuidade enquanto indivíduo e coletividade. Já havia afirmado em outro trabalho que:

A forma de ver a história que se debruça sobre o aspecto ecológico diz respeito, necessariamente, à interação entre o homem e o seu meio. Se por um lado não podemos aceitar determinismos naturais, tão em voga nas interpretações sobre a Amazônia até as primeiras décadas do século XX, por outro lado constatar que a ação do homem tem efeito sobre o cenário onde é aplicada tende a olvidar o fato de que seus resultados revertem-se sobre o próprio homem e que, se ele decide como explorar o meio natural este, por sua vez, é um dado sobre o qual será feito o cálculo. A proposição continua valendo, mesmo se considerarmos a crescente autonomia humana frente aos processos naturais , ocasionada pela ciência moderna. (FONSECA, 2007, p. 18)

Sendo assim, os termos cultura e natureza representam coisas diferentes, mas não antagônicas, como o queriam os filósofos dos séculos XVII e XVIII. O homem natural e o zoon politicon, o homem político, partem das mesmas bases, uma natureza e uma história em comum. Aqui, nessa vasta região em que vivemos, a natureza e a história tornarão possíveis a emergência de fenômenos semelhantes, embora mantendo suas peculiaridades. Trata-se então de buscar a percepção dialética da unidade na diversidade. Não tentarei aqui quantificar o que há em nós de comum herança moçárabe ou cristã, da parte Ibérica da cultura que compartilhamos. Refiro-me antes aos costumes, valores, o tronco latino e a mútua, e mais tranqüila, inteligibilidade de nossos idiomas. Também não intentarei graduar o que há de comum aos grupos indígenas de Moxos e Chiquitos e do Grão Pará, ocupantes imemoriais de uma área comum que engloba o ambiente natural da floresta amazônica e das planícies pantaneiras do rio Guaporé, as quais também compartilhamos até hoje. Finalmente não tenho, e creio impossível termos, a dosagem de um e de outro. Novamente a escola dos Annales nos demonstrou que os fenômenos de longa duração encontram sua melhor expressão nas mentalidades. Muitas vezes o que temos em comum entre nós e o passado não é imediatamente visível. Hábitos e crenças arraigadas em nós muitas vezes constituem vestígios arqueológicos herdados de antigas sociedades. Assim, não podemos discutir aqui o quantum proporcional de nossa herança comum, mas o que temos em comum, aquilo que é a base da nossa identidade: uma cultura, uma literatura e uma história. Foi essa história, forjada em um meio ambiente específico que lapidou o que somos hoje.

Comecemos então pelo ponto em que duas culturas continentais se chocaram. A conquista da região por nós delimitada seguiu dois vetores. O vetor espanhol, descendo do Altiplano Andino e o vetor português subindo o Amazonas e seus afluentes, ambos em direção ao centro da América do Sul, para as planícies e florestas adjacentes aos rios Madeira, Mamoré e Guaporé. O marco para a expansão até o Oriente Boliviano foi a descoberta casual da mina de prata do Potosí em 1545. Através de Real Cédula de 1559 foi criada a Audiência de Charcas, área que, com algumas modificações, viria a ocupar a atual Bolívia. A Audiência de Charcas se expandia territorialmente até a Província de Moxos, inserida no atual Departamento do Beni. Certamente, a descoberta de uma quantidade tão enorme de prata que provocou a maior inflação já ocorrida na Europa, pois que o valor da moeda caiu violentamente, inflamou ainda mais a imaginação de espanhóis e portugueses, já agitadas por notícias de reinos fabulosos.

As informações dos indígenas conduziram a acreditar na existência de reinos fabulosos nessas terras: o Eldorado, o Gran Paititi, o País da Canela. Foram os espanhóis os primeiros a explorar o rio Amazonas, em busca dessas quimeras, e os primeiros a denominá-lo. Em 1500 Vicente Yáñez Pinzón batizou-o Santa María del Mar Dulce. Em 1541, uma expedição comandada por Gonzalo Pizarro desceu os Andes em busca do Eldorado e do País da Canela. Um participante dessa expedição, o violento conquistador Francisco de Orellana, toma o comando de parte do grupo. Nessa época o rio era conhecido por vários nomes Grande Rio, Mar Dulce e Rio da Canela. Carvajal, cronista de Orellana, com um olho vazado por uma flecha indígena vê, em certo momento, inúmeras mulheres guerreiras atacando sua embarcação. Denomina-as Amazonas e ao rio, rio das Amazonas. Trata-se de uma analogia com a lenda das mulheres guerreiras gregas, as amazonas. Contudo, sabemos hoje que, a exemplo de muitas crenças análogas àquelas compartilhadas pelos europeus, como a crença da terra sem males, dos grupos Tupis e Guaranis, o paraíso cristão, os índios também possuíam suas amazonas, as Icamiabas. Em 1561 foi fundada Santa Cruz de la Sierra, ponta de lança para o avanço colonizador espanhol até o rio Guaporé e retaguarda defensiva do avanço português a oeste do meridiano de Tordesilhas.

Embora já no século XVII os portugueses promovessem assaltos às aldeias chiquitanas, vizinhas a Moxos, com o objetivo de apresar os nativos, as primeiras missões na região das províncias de Moxos e Chiquitos foram implantadas pelos jesuítas a serviço do rei espanhol. Falemos, especialmente das missões de Moxos. Já em 1682, foi fundada a missão de Loreto, à margem esquerda do rio Ivari que aldeava os índios Mojos. Conforme afirmou D’Orbigny em sua Descripción Geográfica, Histórica y Estadística de Bolívia: “Su poblacion, compuesta de indios moxos, ascendia, en 1691, al número de dos mil doscientos cincuenta y tres, y en 1824 vino esta mision á ser capital de la provincia.” (D’Orbigny, 1992). Daí até a véspera da expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses (1759) e espanhóis (1767), fato que marcou o início da decadência das ações missionárias nas colônias dos dois países, as missões espanholas na fronteira guaporeana não somente cresceram, mas progrediram enormemente.
 

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Fonte: Meireles, 1989, p. 65.

 Preocupados com um território que, juridicamente, ainda não era seu, ou seja, toda área a oeste do meridiano de Tordesilhas, em 1722 enviou o governo português uma expedição, liderada pelo militar paraense Francisco de Melo Palheta para investigar os estabelecimentos espanhóis na área guaporeana. Já então existiam na região três missões próximas à fronteira pretendida pelos portugueses: a missão de Exaltación, fundada em 1704 no baixo Mamoré para aldear os índios cajuvavas; Santa Maria Madalena, fundada em 1717 no rio Itonamas para aldear os índios de mesmo nome e São Miguel fundada no rio Baures para aldear indígenas mores e baures, cuja data não conseguimos precisar. Palheta visitou as missões de Santa Cruz e São Miguel. Na fronteira oeste, nesse momento, o Guaporé representava o limite das máximas pretensões portuguesas, e a missão de Palheta está inserida nesse processo. Tanto é assim, que ao despedir-se Palheta avisou aos padres que não passassem para o lado oriental daquele rio, pois que, pertencia a Portugal.

A reação espanhola não se fez esperar. Assim é que em 1724 o vice-rei do Peru concedeu armas para que os indígenas mojenhos defendessem a fronteira castelhana.

De fato a União Ibérica (1580 a 1640), período em que o governo de Portugal esteve em mãos dos monarcas espanhóis, facilitara o avanço português. Durante esse período foram criadas as seguintes capitanias portuguesas a oeste da linha de Tordesilhas.

Ano

Capitania

Donatário

1621

Grão-Pará

Capitania Real

1627

Caeté

Feliciano Coelho de Carvalho

1634

Caeté

Revogada em favor de Álvaro de Sousa

1637

Camutá

Feliciano Coelho de Carvalho

1637

Cabo Norte

Bento Maciel Parente

Ao permitir a criação da primeira dessas capitanias já no primeiro ano do seu governo (1621), o monarca espanhol Felipe IV (1605-1665), abriu um sério precedente às pretensões territoriais portuguesas. Com o fim da União Ibérica, o mesmo monarca confirmou as doações de terras feitas aos portugueses em território espanhol na América do Sul. É importante dizer aqui que a Capitania do Grão Pará no final da União Ibérica, não possuía a extensão territorial que abrangeu a capitania do Grão Pará em 1750 (Tratado de Madri).

A expedição de Palheta não ocorreu apenas pelo desejo da coroa portuguesa de expandir suas possessões na América do Sul, um outro elemento de fundamental importância impeliu seus desígnios: a pesquisa e descoberta de ouro no rio Cuiabá entre 1721 e 1722. Resultou dessa experiência a criação da missão jesuítica portuguesa de Santo Antonio das Cachoeiras em 1728, no rio Madeira, quase defronte da foz do rio Jamari, que logo depois foi abandonada. Nessa época a principal produção do Pará era o cacau nativo, extraído da floresta onde era encontrado fartamente, particularmente no rio Madeira. As expedições extrativas portuguesas, ao chegarem à primeira cachoeira do rio Madeira, a cachoeira de Santo Antonio, já haviam coletado cacau suficiente e dali voltavam. Do lado espanhol os jesuítas coletavam cacau até o trecho encachoeirado. Tanto assim é que em 1751, vindo de Belém do Pará em direção ao Mato Grosso, Rolim de Moura, primeiro Capitão General daquela capitania, encontrou várias feitorias de cacau e a inscrição nas pedras informando a posse daquelas terras pelo rei da Espanha, já caducada naquele momento em função do Tratado de Madri. O Capitão General concluiu então que os espanhóis continuavam a explorar o cacau naquela região.

A pesquisa mineral partindo das Minas Gerais avançou para oeste até que em 1733 os irmãos Fernão e Arthur pais de Barros descobrem ouro no rio Guaporé. Três anos depois o governo português impede a navegação naquele rio (1736), fato curioso porque legislava sobre navegação em terras de Espanha. Apesar disso, é nesse o momento que se inauguram, de fato, as relações entre os colonos nessa fronteira. Como é possível deduzir, essas relações são ambíguas e contraditórias. Ao mesmo tempo em que o conflito de terras se prolongará até o século vinte, sendo herdado pelas nações surgidas naquele território colonial, há também muita colaboração, apesar das proibições. Essa colaboração é forçada pela carência.

Um exemplo marcante está na aventura de Manuel Félix de Lima, minerador falido que em 1742 desobedece a ordem real e parte com outros amigos de infortúnio do arraial minerador de São Francisco Xavier, no rio Sararé, afluente do Guaporé, para visitar as missões de São Miguel e Santa Maria Madalena (Vide mapa abaixo). Conseguido o intento navega até Belém onde é preso e enviado a Portugal. Qual era a intenção do minerador? Certamente estabelecer comércio com as missões religiosas, cuja farta produção abrangia produtos agrícolas e pecuários, tecidos e até mesmo objetos de fundição.

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Mapa formulado pelo professor Ms. Emanuel Pontes Pinto (ACLER).

 A escassez de todo gênero nas lavras e faisqueiras de ouro da região guaporeana, é compreensível, pois era mal abastecida por um incerto comércio monçoeiro. Essas expedições comerciais encontravam grandes dificuldades no caminho: grande distância, já que partiam de São Paulo, naufrágios, ataques indígenas, doenças. Todas essas dificuldades eram compensadas pela lei da oferta e da procura, terreno favorável para a ganância e o risco. Além do comércio monçoeiro, essa insatisfeita demanda encontrava naquele momento o rumo certo das missões espanholas, pela via do contrabando. O historiador britânico Southey (SOUTHEY 1977) constatou, baseado na memória da expedição de Manoel Félix de Lima, a existência de bandos de homens que ganhavam a vida contrabandeando produtos do lado espanhol para o lado português e vice versa, escondendo-se das autoridades nas ilhas e matas dos rios fronteiriços.
 

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Observe-se a diversidade da produção agrícola nas missões castelhanas. Cana de açúcar, café, cacau, milho e algodão. Fonte: Meireles, 1989, p. 83.

 Agregue-se ao ouro um outro elemento para explicar esse adensamento da população colonial naquela fronteira, até então território quase exclusivo dos colonos espanhóis. Falamos das reformas estruturais produzidas pelo primeiro ministro do rei de Portugal o Marquês de Pombal (1750–1777) durante o chamado Período Pombalino. Citaremos brevemente algumas delas para demonstrar o aumento da mecânica dos intercâmbios nessa fronteira. Antes, porém, alertamos que esses intercâmbios não eram exclusivos da fronteira aurífera, por exemplo, nessa mesma época o gado muar produzido no rio Paraguai encontrava mercado certo nas minas do Potosi.

As alterações no quadro geopolítico fronteiriço iniciam um pouco antes desse período quando em 1743 é criado o distrito de Pouso Alegre nas margens do rio Guaporé que depois é elevado à categoria de município com o nome de Vila Bela da Santíssima Trindade. Essa intervenção se dá em função do alerta que causou a fundação da missão espanhola de Santa Rosa, na margem direita do Guaporé. Logo depois, em 1748, é criada a Capitania de Mato Grosso, cujos lindes se estendiam até a fronteira guaporeana. Finalmente, em 1750 foi assinado o Tratado de Madri confirmando entre as duas potências européias a fronteira Guaporé-Madeira. Em 1752 chega ao Mato Grosso o Capitão General D. Antonio Rolim de Moura e começa a erigir a primeira capital daquela capitania, Vila Bela. No mesmo ano, por provisão régia, o rio Madeira é tornado caminho obrigatório entre as minas guaporeanas e Belém. Em 1755 é criada a Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão.

Ora, qual a importância dessas inovações sobre as relações entre os súditos de ambas as potência na fronteira guaporeana? Esses intercâmbios já existiam antes das Reformas Pombalinas, os efeitos dessas inovações vieram a reforçá-los. Recorremo-nos aqui de um excelente estudo sobre esse aspecto realizado pela professora Luiza Rios Ricci Volpato (VOLPATO, 1987), da Universidade Federal do Mato Grosso. Nele a professora demonstra que embora ambas as coroas proibissem o intercambio de seus súditos com os súditos estrangeiros, de fato essa era uma proibição que não encontrava meios de ser respeitada na realidade guaporeana. Quando o rei torna o rio Madeira via única de comércio para o norte da capitania do Mato Grosso, modifica ao mesmo tempo o vetor de abastecimento, fazendo surgir a monção do norte, Belém-Vila Bela, substituindo nessa área a monção do sul São Paulo-Vila Bela-Cuiabá. A criação da Companhia de Comércio, monopolizadora do abastecimento de produtos de além mar para todo o Grão Pará e Norte de Mato Grosso, cria condições para a importação regular de produtos.
 

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Fonte: Pinto, 2003, p. 33.

 Ocorre então aqui um fenômeno peculiar. Embora as duas coroas impedissem o comércio fronteiriço, as duas, secretamente, estimulavam o contrabando. Qual o motivo desse comportamento? Bem o lado português, bem ou mal, produzia ouro, e o lado espanhol produzia prata. O comércio de importação era realizado com moedas de prata. Assim, ambos os países procuravam abastecer-se, pela via do contrabando, dos metais de que careciam. O que os espanhóis compravam dos portugueses? Produtos importados, tecidos finos, vinhos, vinagre, peças religiosas, ferramentas, enfim, uma variedade de produtos. Vejam os senhores como a História é o campo das eternas mutações, hoje somos nós, herdeiros da colônia portuguesa é que atravessamos a fronteira para adquirir importados em Guayaramerim. O que os portugueses compravam dos espanhóis? Principalmente alimentos, produzidos nas missões religiosas, pelo menos antes que elas entrassem em uma lenta agonia após a expulsão dos padres jesuítas. A zona aurífera não produzia, ou produzia muito pouco, alimentos em razão de ser contraproducente alocar um escravo de origem africana caríssimo, mão de obra predominante no setor minerador do ouro, nas lides agrícolas. Aliás, o fenômeno do desabastecimento é comumente observado em todo extrativismo de alto valor agregado e na plantation, unidade agrícola especializada na monocultura de exportação. Mesmo as autoridades coloniais desrespeitavam a proibição ao trocar informações e favores, como no caso em que um capitão general enviou ao lado espanhol um cirurgião para que lá cuidasse da autoridade. Em resumo:

Embora a política colonial portuguesa tenha sido suficientemente hábil para interiorizar no conjunto da população o compromisso de defesa territorial, as questões individuais de sobrevivência muitas vezes falavam mais alto. Nessas oportunidades, portugueses e espanhóis esqueciam-se de seus compromissos de populações limítrofes e se buscavam mutuamente. O objeto do segundo capítulo é salientar as diversas formas que assumiu esse relacionamento de fronteira, quando os interesses pessoais eram mais fortes do que a fidelidade ao rei. (VOLPATO, 1987, p. 28)

Alem disso, outros intercâmbios, escravos africanos fugiam para o lado espanhol, índios fugiam para o lado português, foragidos da justiça acoitavam-se em um e no outro lado da fronteira.

A lenta agonia do ouro mato-grossense teve seu final com o raiar do novo século. O fato, aliado à decadência das antigas missões, ocasionada pela expulsão dos jesuítas diminuiu em muito os intercâmbios fronteiriços. Os portugueses brancos abandonaram o Guaporé e Vila Bela deixou de ser capital por volta de 1821. Em meados do século XIX um novo movimento vem a estimular grandemente esses intercâmbios. Trata-se do surgimento da borracha como produto industrial, o chamado I Ciclo da Borracha.

Esse é um momento importante para a História dos dois países, agora já independentes. A partir do momento em que a borracha é demandada crescentemente pelo mercado internacional e que seu preço a torna interessante, seringais são abertos por toda a Amazônia. O rio Madeira era uma das áreas mais ricas em reservas de seringueiras nativas e, assim, nele e em seus afluentes foram abertos uma infinidade de seringais. Seja pela proximidade física, seja por outros motivos quaisquer, como a decadência da produção da quina extrativa em concorrência com a quina agrícola inglesa, por volta de 1870, o fato é que os bolivianos iniciaram a investir na abertura de seringais no rio Madeira.

Já nessa época o rio Madeira corria totalmente em território brasileiro, em razão do Tratado de Ayacucho de 1867. Ocorre que antes desse tratado o rio era compartilhado entre o Brasil e a Bolívia até seu ponto médio. Contudo, apesar de já ser totalmente brasileiro, configurava-se em parte como um rio boliviano, por sua importância para o comércio internacional dessa parte da Bolívia, pelos capitais empregados por empresários bolivianos nesse rio e pela enorme população de trabalhadores bolivianos que para cá vieram picar a seringa.

É fato que o rio era percorrido por uma infinidade de empresários do Beni, que se dirigiam a Manaus para comprar produtos para os seus seringais ou fazendas: ferramentas, armas, tecidos; ou vender produtos agrícolas no próprio rio Madeira ou exportar sua borracha. É sabido que a economia da borracha necessita de abastecer o seringal de produtos comprados fora, porque quase nada produz além da seringa, inclusive alimentos. Assim, uma parte do abastecimento de gêneros para os seringais do rio Madeira vinha das fazendas do Departamento do Beni (criado nos anos de 1890). Os maiores empresários da borracha a atuarem no rio Madeira eram bolivianos, a saber: Santos Mercado, Ignácio Arauz, Pastor Oyola e a família Suárez, liderada pelo empresário Nicolas Suarez, era dona de um conglomerado que dominava a produção de borracha desde o seringal até sua venda nas praças estrangeiras. Configurava-se como o mais importante grupo econômico vinculado à produção de borracha em toda a Amazônia Brasileira. Exemplo de seu empreendedorismo foi a criação de Cachuela Esperanza. É importante mencionar também que as cidades de Guajará Mirim e Guayaramerim surgiram nesse período.

Quanto aos seringueiros, eram recrutados em grande quantidade na Bolívia para trabalharem nos estabelecimentos extrativos do rio Madeira. A transferência de mão de obra do Beni para o Madeira foi tão grande que o governo de La Paz proibiu a prática, para não despovoar de trabalhadores os estabelecimentos agrícolas daquele departamento. No mesmo decreto o governo boliviano abre apenas uma exceção, a captação de trabalhadores para o setor de navegação, onde esses trabalhadores eram utilizados para remar as enormes ubás que transportavam as mercadorias e para carregá-las nas passagens das cachoeiras.
 

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Remeiros bolivianos encontram os índios caripunas no Madeira. Fonte: Keller, 1875, p. 144.

 A mãe, se é que podemos dizer assim, do estado de Rondônia, a ferrovia Madeira-Mamoré, foi construída por exigência do governo boliviano aposta ao tratado de Petrópolis em 1903. A ferrovia tornaria mais fácil o transporte de mercadorias bolivianas pelo rio Madeira. Já desde o tratado de 1867 os aspiravam bolivianos por uma estrada que contornasse o trecho encachoeirado daquele rio. Esses fatos comprovam a influência boliviana no rio Madeira durante o século XIX. Inúmeros autores mencionam o fenômeno: Álvaro Maia (MAIA, 1956), que afirmou ser a língua e moeda boliviana corrente naquele rio durante do ciclo da borracha, até inúmeros viajantes: o general João Severiano da Fonseca (FONSECA, 1986), os engenheiros austríacos Joseph e Franz Keller (KELLER, 1875), o engenheiro norte americano Neville Craig (CRAIG, 1947), apenas para citar poucos que recorreram o rio Madeira na época. Essa foi a época em que se consolidou a convivência fronteiriça nessa região, depois de uma longa história de tentativas.

É através dessa história que podemos compreender os aspectos da cultura que nos unem. Desde os intercâmbios fronteiriços no século XVIII até hoje. Temos uma história comum, esta História está registrada em livros como: Historia de Guayaramerin de Carlos Lopes Vaca (VACA, 1985), e na minha própria obra História Regional (Rondônia) em co-autoria com o professor Marco Teixeira (TEIXEIRA & FONSECA, 2005). Temos uma temática literária também comum, expressa em memórias ou romances, cito para ilustrar Siringa, de Juan B. Coimbra (COIMBRA, 1989) e A Selva de Ferreira de Castro (CASTRO, 1967). Além disso temos línguas em comum nos nossos territórios: o tupi, o pano, o aruaque somente para mencionar algumas, faladas pelos nossos indígenas. Enfim, uma gama muito grande dos aspectos da cultura foram forjados nesses intercâmbios que vão da culinária, a saltenha e o massaco são pratos bolivianos reinterpretados pelos brasileiros, à influência do rádio e televisão brasileiros no lado boliviano. Estão todas essas manifestações esperando por maiores estudos e pesquisas. Devo ainda citar a expressão máxima de nossa cultura comum, a religião, manfestada grandiosamente pela Festa do Divino no rio Guaporé. Finalmente, espero ter demonstrado que uma história e a comunidade de certos aspectos culturais nos unem e, espero, o evento que hoje participamos seja um elemento de fortalecimento dessa comunidade. Obrigado a todos.

 

Fontes de Consulta.

ABREU, J. Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.

BLOCH, Marc. Introdução à História. 4 ed. Lisboa. Europa América, sem data.

CASTRO, Ferreira de. A selva. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1967.

COIMBRA, Juan B. Siringa: memorias de un colonizador del Beni. La Paz: Juventud, 1989.

CRAIG, Neville B. Estrada de Ferro Madeira Mamoré: história trágica de uma expedição. São Paulo: Nacional, 1947.

D’Orbigny, Alcide. Descripción geografica, histórica y estadística de Bolívia. Santa Cruz. Empresa Londívas, 1992.

FONSECA, Dante Ribeiro da. Estudos de História da Amazônia. Porto Velho: Maia, 2007.

FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil (1875-1878). 2 vols. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1986.

KELLER, Franz. The Amazon and Madeira river: sketches and descriptions from the note-book of an explorer. New edition with sixty-eight illustrations on wood. Philadelphia: J. B. Lippincott & Co., 1875.

LOPEZ, Said Zeitum. Amazonia boliviana: introduccion al estudio de la tematica norteamazonica. 1. ed. La Paz: Visión, 1991.

MAIA, Álvaro. Gente dos Seringais. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1956.

MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: rio Guaporé século XVIII. Petrópolis: Vozes, 1989.

MESA. José de; GISBERT, Tereza; GISBERT, Carlos D. Mesa. Historia de Bolivia. La Paz: Editorial Gisbert, 2008.

PINTO, Emanuel Pontes. Aventura e pioneirismo: a viagem precursora de Manuel Félix de Lima pelo rio Guaporé em 1742. In: Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba. no. 12, 1997.

PINTO, Emanuel Pontes. Território Federal do Guaporé: fator de integração da fronteira ocidental do Brasil. Rio de Janeiro: VIAMAN, 2003.

SOUTHEY, Robert. História do Brasil. 5ª ed. 3 vols. São Paulo. Ed. Melhoramentos, 1977.

TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues & Dante Ribeiro da Fonseca. História regional (Rondônia). Porto Velho: Rondoniana, 1998.

VACA, Carlos Lopes. Historia de GuayaramerÍn. 2. ed. GuayaramerÍn: Tres Hermanos, 2008.

VACA, Carlos Lopes. Siringa: Imperio y decadencia. GuayaramerÍn: Tres Hermanos, 2005.

VOLPATO, Luíza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil,1719-1819. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL/ Minc-Pró Memória, 1987.

 



[1]Diretor do Departamento de História e Arqueologia e vice diretor do Núcleo de Ciências Humanas da Fundação Universidade Federal de Rondônia. Vice presidente da Academia de Letras de Rondônia (Acler). Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Ciências pela Universidade Federal do Pará. Oficial da Ordem do Mérito Marechal Rondon do Governo do Estado de Rondônia. Autor de diversas obras, destacando-se: História Regional (Rondônia) em co-autoria com o professor Marco A. D. Teixeira, Estudos de História da Amazônia, Rondônia sua História e sua gente.

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