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Matias Mendes

ACIDENTE DO CATALINA: L’Histoire d’un Héros Oublié


A história de um herói esquecido começa exatamente ao crepúsculo de um dia de fevereiro do ano de 1968. Trata-se do acidente aviatório acontecido naquele ano durante o vôo de um hidroavião Catalina entre o Forte do Príncipe da Beira e Guajará-Mirim. Depois de uma dramática luta contra a avaria da aeronave que pilotava, o Tenente-Aviador Lauro literalmente arvorissou sobre as copas de frondosas castanheiras na região do Alto Ouro Preto, a escassos cinco minutos de vôo para a cabeceira da pista de Guajará-Mirim, que na época se localizava entre o Posto Nogueira e a atual (agora demolida) Rodoviária.

A bordo do avião, segundo os números da lista de embarque, havia cinco tripulantes (dois oficiais e três sargentos) e trinta e oito, entre os quais Maria Edna Azevedo e sua filha pequena Maria das Graças e Maria Adelaide da Cruz e sua filha menor Mariene (provavelmente da Cruz).  Depois de trinta e nove anos, o atual Coronel-Aviador R-1 Jadir Campos, um dos tripulantes da aeronave acidentada, que reside atualmente em Recife, resolveu localizar as duas crianças, as filhas de Maria Edna Azevedo e Maria Adelaide da Cruz, cujos paradeiros são desconhecidos até o momento por todos que têm conhecimentos sobre o acidente. Entre os passageiros sobreviventes também estava um jovem recruta do Exército, com dezenove anos de idade, de nome Francisco Martins do Nascimento, conhecido pelo apelido de Leão em razão da farta cabeleira que usava antes de ingressar no Exército. Tal apelido lhe foi atribuído pelo cabo Erasmo Júlio, que na época militava como líder dos jovens esportistas do Forte do Príncipe. Anos mais tarde, já servindo em Guajará-Mirim e corpulento, ele (o Leão) ficaria conhecido pela alcunha de Martinzão, sendo como tal conhecido até hoje.

A estrela do herói Francisco Martins do Nascimento começou a brilhar minutos antes do acidente. Acomodado num dos bancos, ele notou que o soldado Canuto, um dos passageiros de Guajará-Mirim, que viajava de pé, fazia esgares de dor a cada vácuo do avião. Solidário com o companheiro, Leão ofereceu-lhe o lugar onde estava sentado, pois Canuto estava em recuperação de um ferimento a bala na perna. Canuto acomodou-se no banco e Leão ficou de pé. Canuto morreu prensado por ferragens do avião no lugar onde Leão estivera sentado. Segundo o depoimento de Leão, o corpo de Canuto foi o único que ele não conseguiu retirar dos destroços, permanecendo entre as ferragens até que o pessoal do Parasar (Grupo de Salvamento) chegou ao local do sinistro três dias depois.

O detalhe que chama mais a atenção para o comportamento heróico do soldado Francisco Martins do Nascimento durante a tragédia é que ele era um moço urbano, não tinha experiência de floresta, havia crescido em Porto Velho e chegara ao Forte do Príncipe da Beira como profissional da construção civil. No Forte, ele não mudou seus hábitos urbanos, não costumava caçar nem pescar, gostava mesmo era de jogar futebol e dançar yê-yê-yê. Também já era casado ao chegar ao Forte do Príncipe, tinha esposa e pelo menos um casal de filhos na época. No entanto, após a queda da aeronave, como se fosse possuído por uma força superior, ao perceber que era um dos raros sobreviventes em perfeitas condições físicas, ele assumiu desde o primeiro momento as ações de salvamento dos feridos presos entre as ferragens. Retirou dos destroços do avião todos os feridos e os três mortos que conseguiu remover. Só não conseguiu retirar o corpo do infortunado soldado Canuto. E não se limitou a apenas isto. Limpou os feridos, providenciou para eles água e castanhas e fez tudo ao seu alcance para minorar os sofrimentos dos que se encontravam gravemente acidentados. Ele não se lembra com exatidão, suas memórias do episódio são difusas (provável bloqueio psicológico defensivo para que ele não enlouquecesse diante do quadro dantesco com o qual lidou durante três longos dias), mas tudo leva a crer que não tenha dormido nada durante os três dias que permaneceu entre os mortos e feridos. Dos poucos resquícios mais claros de lembranças que ele consegue rememorar foi quando um homem do Parasar dos que primeiro desceram no local, certamente notando o seu estado de exaustão, chegou perto dele e disse: “Guerreiro, você já fez tudo o que podia, agora é conosco. Você pode descansar. Você precisa de alguma coisa?” A esta pergunta ele apenas respondeu sucintamente que estava com fome. Tudo leva a crer que ele não tenha comido nada durante os três dias, embora tenha providenciado para que os outros comessem.

Ao receber a comida das mãos do homem do Parasar, ele lembra que se sentou num tronco caído e começou a comer sofregamente aquela refeição. Em determinado momento, ao olhar para o lado, percebeu que estava a poucos centímetros do cadáver do soldado que ele havia resgatado dos destroços e que se encontrava em estado algo avançado de putrefação. Mas ele afirma não haver sentido odor algum, era como se o seu sentido do olfato estivesse inteiramente empanado, certamente uma outra forma de defesa psicológica para que ele suportasse estoicamente durante aqueles três dias os odores  desagradáveis dos ferimentos já infeccionados dos acidentados.

Esta é a história sem retoques do herói esquecido do acidente com o Catalina em 1968, acidente do qual, conforme foi relatado em matéria anterior, eu me safei de forma algo miraculosa. Como a História não contempla o condicional SE, no meu caso não se pode aventar o que poderia ter acontecido comigo. No entanto, Francisco Martins do Nascimento esteve no cenário da tragédia e foi um dos atores principais do salvamento de muitos, conquanto nada disso tenha sido devidamente assentado na sua folha de serviço militar, certamente por um lapso da burocracia da época, lapso que começou a ser corrigido já no ano de 2006, quando o então  Coronel Tupinambá Dantas da Silva, filho e irmão de duas sobreviventes, envidou pessoalmente esforços no sentido de que o herói esquecido do acidente com o Catalina fosse reconhecido pelos altos escalões do Exército e distinguido com a Medalha do Pacificador, que certamente ele ainda receberá algum dia, bem como a revisão dos assentamentos da sua folha de serviço militar, resgate mais que justo da história de vida de um legítimo herói neste nosso País onde dispomos de tão poucos deles...  Embora alguns afirmem que triste do país que precisa de heróis, é muito mais correto afirmar que triste do país que não dispõe de heróis para cultuar e para tomá-los como exemplo de vida correta...  

                                                                                                               
Fonte: MATIAS MENDES  -  matiasmendespvh@gmail.com
Membro fundador da Academia de Letras de Rondônia.
Membro correspondente da Academia Taguatinguense de Letras.
Membro correspondente da Academia Paulistana da História.
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes Mater.
Membro do Instituto Histórico Geografico de Rondônia

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