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Gente de Opinião

Hugo Evangelista

DE ASSOMBRAÇÕES E FANTASMAS



Hugo Evangelista da Silva*

Em recente entrevista, que teve lugar num dos suntuosos salões do Palácio da Alvorada onde se alega aparecer fantasmas, a Suprema Mandatária disse, às gargalhadas, que “não temia assombração por obra do pai, que nunca permitiu que ela ouvisse histórias do gênero”, ao que acrescentou: "Eu tive a sorte de ter tido um pai que proibia ficar mostrando estes contos – ‘mula sem cabeça’ – para nós", disse a presidente. Descobri, na leitura, a razão de meus tantos temores: aos tempos de minha infância, à falta da televisão e de outros entretenimentos em nossa cidade, era comum aos meus pais ficarem às primeiras horas da noite “contando histórias” que versavam em sua maioria, sobre assombrações ou coisas do gênero. Descobri daí a gênese dos meus “traumas”.

Ao contar suas histórias assegurava meu pai, com muita irreverência e desmedido bom humor, que os animais também tinham alma, no que passamos a acreditar piamente.  Pois bem. Ainda aos tempos de minha infância ganhei um presente muito especial de meu tio: um cachorro. Chegando em casa com o animal, fui convencido de que era necessário “batizá-lo” e meu pai – em mais uma de suas irreverências – deu-lhe o nome de “discrente” (com “i” mesmo), conquanto alegasse que o animal com esse nome haveria de desacreditar eventuais temores na pronta defesa de nosso lar. Depois o cachorro passou a desfrutar das regalias do nosso convívio e, por isso, foi sendo conhecido por nossos parentes mais chegados que, com regularidade, nos visitavam. A todos soava estranho o nome do animal e sempre sorriam quando nós declinávamos o nome do “nosso melhor amigo”. A exceção ficava por conta de uma tia – a tia Esmeralda – que por não conseguir memorizar o nome do cachorro chamava-o “desassombrado”.

Depois de muitos anos de convivência – para nossa tristeza – o cachorro adoeceu e, dias depois, morreu. A dor foi imensa. Mesmo assim providenciamos ao “discrente” um funeral para cachorro nenhum botar defeito.  Sepultamos o “de cujus” numa cova aberta por meu pai, no fundo do quintal e, salvo engano, chegamos até a acender algumas velas para iluminar sua “alma”. Nos dias imediatos à sua “passagem” evitamos sair à noite ao quintal, principalmente se fosse noites plenas de escuridão. O temor era que, num instante, pudesse aparecer o espectro do falecido animal. Certa noite, meu irmão mais novo precisou ir a “privada” que ficava, também, ao fundo do quintal e à pouca distância da “sepultura” do “discrente”. Não demorou muito e vi o menino de olhos esbugalhados e em verdadeiro pânico, adentrando a cozinha de nossa casa. Estava todo “engraxado”! Perguntei-lhe o que tinha acontecido e ele respondeu: “Acho que vi a alma do finado “discrente!” Ficamos um tanto amedrontados e eu, incontinenti, aconselhei a meu irmão que rezasse um pai nosso e três ave-marias a bem da alma do morto. Ele, sem questionar, o fez!

Trago aqui, em oportuna hora, outra história de “assombração” muito engraçada, acontecida àqueles mesmos idos tempos: Existiu ali no Bairro Baixa da União uma padaria cujo proprietário, sempre às primeiras horas da manhã, despachava várias pessoas – os chamados “padeiros” – com balaios às cabeças a vender o seu pão. Era comum ouvir-se ainda à noite escura os vendedores gritando: “padeiro!”. Era a senha para que as gentes madrugadoras abrissem a janela de suas casas para comprar o pão ainda quentinho. Àquele mesmo tempo o Bairro do Mocambo era o reduto mais boêmio da cidade, onde se achavam várias casas para aonde afluíam os notívagos locais à busca de diversões e de prazeres. Dentre as frequentadoras que por ali pontuavam havia uma moça de boas feições, que por ter nascida com lábios leporinos, tinha uma voz fanhosa e, por isso, era conhecida por Fon-Fon. De repente foi vista por um “arigó” recém-chegado à cidade que resolveu namorá-la, mas pouco tempo depois se desinteressou da dama e desistiu do “affair”.  Sobraram à moça enorme desilusão e incontida dor!

Certa noite, não suportando a falta do amado, a mulher resolveu afogar suas mágoas na bebida, o que se prolongaria até alta madrugada quando, embriagada, foi aconselhada por algumas amigas a ir-se para sua casa que ficava também no Bairro Baixa da União, cujo percurso mais curto exigia-lhe passar por dentro do cemitério então desguarnecido do muro que hoje o delimita. No meio do caminho resolveu-se por sentar em alguma catacumba e ali adormeceu. Acordou com o grito do padeiro que atendia ao bairro do Mocambo e que, por conveniência, resolvera encurtar o caminho passando por dentro do cemitério. Deixou o rapaz aproximar-se e, com voz pausada e fanhosa, pediu: “Padeiro me dá um pão!” O rapaz, sem avistar a moça e sem distinguir a origem da voz, enregelou-se, soltou o balaio, e começou a correr. Em meio à fuga ainda encontrou forças para gritar: “Quem pode mais do que Deus?” A mulher ao compreender a confusão do moço, respondeu: “A tua mãe, f.d.p!”.


* Advogado e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara.

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