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Simon

Os carneiros da ferrovia


Antônio Pretinho nascido e criado em Vila Murtinho, conhecia como a palma da mão toda a região do Seringal dos Clímacos. Sabia quais estradas de seringas eram mais produtivas e era capaz de, em cada estrada, afirmar qual árvore sangrava mais e o melhor látex. No entanto, nunca foi seringueiro,  mas adquiriu esse conhecimento em virtude de ter acompanhado várias vezes o amigo Moacir e outros seringueiros  na extração da seringa desde muito jovem. Sua especialidade era apanhar castanha nos meses que ia de dezembro ao fim de janeiro. Nessa época, todos os homens do lugar se embrenhavam nas matas em busca de tão preciosa amêndoa, pois era dinheiro certo. Saul Bennesby, dono de uma fábrica de processamento da semente em Guajará Mirim, comprava qualquer quantidade encontrada pelos castanheiros. Nessa época, as mulheres casadas e mocinhas andavam todas de sapato novo, cabelo amarrado com fitinhas e bonitas roupas de chita coloridas e alongadas. Os rapazes usam vulcabrás e calça de tergal. Não faltava no bolso dinheiro, um pente daqueles redondos e um pote de brilhantina. As crianças comiam tortillas todos os dias e não faltava no pitisqueiro das casas, pacotes de leite em  pó que eram armazenados em grandes quantidades para quando o tempo de bonança acabasse.

A fartura não era só de comida e nem de roupas novas e coloridas, a dona do bordel do lugar já se antecipava, aos meses da colheita, e mandava buscar em Porto Velho, Guajará Mirim e em Rio Branco, as vezes vinham até de Manaus, prostitutas jovens e sedosas para dar conta do rebuliço que tomaria conta do puteiro. Em cada esquina do pequeno povoado, abria-se uma nova bodega, com montanhas de garrafas de cachaça empilhadas pelo recinto para matar a  sede que se multiplicava nesses meses. A maioria dos malandros, desocupados, espertalhões e quengas da região montava acampamento às margens do Rio Madeira à cata de algum proveito. Eram comuns as intrigas e pelejas de todo tipo. Nos finais de semana, o coveiro do povoado não tinha descanso, pois teria que trabalhar dobrado para conseguir enterrar tantos mortos, vítimas de peixeiradas no peito, nas costas ou nas regiões dos rins. Raramente alguém era enterrado vítima de tiro, quando isso acontecia, o pobre infeliz era partido em dois, por uma saraivada de chumbo calibre dezesseis. Geralmente, os cartuchos eram carregados artesanalmente e entre os chumbos era alojada uma palanqueta mortal, destinada à uma anta, onça ou veado e que naquela ocasião desintegrava a carcaça do moribundo com a força do impacto de um raio na copa de uma castanheira.

O Sargento João Paz, também era delegado e intendente do lugar, dispunha de um pequeno número de policiais para dar conta de tanta confusão, dentre esses, destacavam-se dois, Dego e o Valdemar, bons de briga,  de puteiro e de cachaça. O delegado era uma figura respeitada e chegou à região vindo do Rio Grande do Norte. Adquiriu respeito dos moradores do lugar, devido seu senso de justiça, seu corpanzil e sua risada que se parecia com o barulho da cachoeira do Rio Madeira na época da cheia.Ninguém ousava lhe desacatar, pois o castigo era certo e em público. Numa ocasião fez um meliante dar várias voltas pelo povoado com uma bacia na cabeça cheia de carne de porco e gritando;” eu sou ladrão de porco, eu sou ladrão de porco”. O infeliz fora flagrado  roubando um capado que pertencia ao  Chico Pinto, amigo íntimo do delegado e um dos líderes da comunidade, embora também fosse chegado numa boa briga e num assanhado rabo de saia.

Ocorre que num desses frenéticos fins de semana, Antonio Pretinho e alguns amigos resolveram ir para uma festa nas cercanias da Colônia Agrícola do Iata, distante de Vila Murtinho uns vinte quilômetros. Era um festejo em homenagem à padroeira do lugar e na ocasião acorriam pessoas de todas as circunvizinhanças para jogar o bingo, comer galinha assada e dançar até o sol raiar ao som do triângulo, do pandeiro e da sanfona. O grupo saíra de Vila Murtinho após o almoço do sábado. Montados numa cegonha, Antônio e um irmão, na época jovens e fortes,  seguiam no comando da cegonha, esperavam chegar ao local antes do entardecer, a tempo de procurar um garapé pra tomarem banho, trocar de roupa e chegarem no salão ao som dos primeiros acordes da sanfona.

Nesse embalo, dançaram até quase o entardecer do domingo, após tanta folia, cansados e alguns ainda bêbados, resolveram voltar para Vila Murtinho, entendendo que na manhã seguinte todos deveriam estar prontos para colher castanha. Subiram na cegonha e começaram a remar rumo ao descanso. Era necessário remar forte e sem titubear, pois a noite já se avizinhava e no escuro era desaconselhável andar na ferrovia. Seguiram em silêncio e compenetrados, ouvia-se somente o ranger das rodas nos trilhos, o pio do inhambu na capoeira e de vez enquanto o roncar da suçuarana no pé da serra do ouro. A respiração do grupo que no início era quase inaudível, com o passar do tempo foi ficando ofegante, e ouvia-se um o outro lançar sobre os trilhos golfadas de vômitos com o cheiro acre de cachaça misturada com gordura de galinha caipira. Ninguém dava uma palavra, parecia que todos já esperavam o que estava por acontecer.

Mesmo com todo o esforço despendido pelo grupo, a noite os alcançou faltando um terço da viagem, e ainda teriam que atravessar a ponte do Igarapé Laje, comprida, estreita e que servia de moradia para dezenas de maribondos que carregavam na sua parte traseira um ferrão muito parecido com os espetos do cão, descrito,  nas homilias dominicais, pelo Padre do lugar.  Para a alegria do grupo, a travessia fora calma e silenciosa e os moradores da ponte já quedavam adormecidos e acalentados pelas substâncias tranqulizantes do mel vespertino. Agora, a chegada era iminente, faltavam dois quilômetros e já se ouvia o murmurar tênue de um fim de tarde de domingo no povoado e o som do sino da matriz chamando os “pecadores da castanha” para o purgamento divino. Esses sons familiares causaram no grupo uma espécie de assanhamento, um menos cansado até ensaiou uma ida ao bordel para tomar a saideira, ideia contestada pelo grupo. De repente, a cegonha já não estava mais sobre os trilhos da ferrovia, passou a andar sobre o lombo de uma horda de carneiros, cabras e cabritos que tinham escolhido o quentura dos dormentes para se abrigarem  do frio da madrugada.

Na escuridão, o pouco que se via eram sombras humanas e de ovinos que pareciam voar sobre os trilhos, a cegonha descarrilou e se enveredou capoeira a dentro indo parar a uns cinquenta metros do local do acidente, atolada numa poça de lama.Ouvia como que uma sinfonia desafinada de berros, lamúrias, lamentos e xingamentos, misturando-se ao sangue, lãs, pedaços de carne humana e vômitos dos infelizes que estendidos no capim à beira da ferrovia esperavam a morte chegar. Aos poucos, os menos feridos foram se levantando e ajudando os que mal se mexiam e somente gemiam a dor dos mutilados de guerra. Antônio Pretinho teve sorte, pois estava sentado na parte dianteira da cegonha e teve tempo de, mesmo na penumbra, avistar a comitiva de animais dormindo nos trilhos, e como um gato jogou-se para a lateral da cegonha e saiu rolando ribanceira  abaixo, ainda teve tempo de gritar para a comitiva:  Cuidado! É o fim do mundo! Valei-me Santa Terezinha! Mas foi em vão,os pobres e infelizes não tiveram tempo para saltar do transporte, e um a um foram misturando-se aos borbotões a carneiros, pedras e tiriricas.

Passado o entrevero, os menos feridos ainda tiveram forças para recolocarem a cegonha nos trilhos e assim remarem com destino à única farmácia do local que por ironia do destino era de propriedade de um boticário conhecido por Carneiro. Ao chegarem à farmácia, pareciam sobreviventes de guerra, a visão era dantesca. Rapidamente a notícia se espalhou pelo povoado, e uma multidão marchou em fila para ver os estropiados dos trilhos, até o padre, preocupado com as coisas lá do céu, solicitou um aparte divino, encerrou a missa e liderando uma comitiva de beatas, bêbados e putas marchou com destino à botica do carneiro. O Delegado, recebeu a notícia por um filho seu que estava pescando às margens do Ambrósio e viu a multidão se aglomerando e rapidamente colocou seus apetrechos no embornal e foi contar ao pai que uma confusão se instalara no povoado. Ao chegar ao local, o Padre com sua costumeira ladainha já encomendava algumas almas para o descanso eterno. As beatas insistiam veementemente que tudo o que acontecera era castigo, onde já se vira! Um bando de desocupados na esbórnia e ainda pedem o consolo divino! O delegado disse ao Padre que agora o problema não era mais com as coisas do céu,e precisava levar os menos machucados para a delegacia a fim de poder esclarecer em detalhes “ O que diabos teria acontecido com esse magote de negros!”- Bradava o delegado.  As beatas ao ouvirem as palavras do delegado, cobriram ainda mais a cabeça com o véu, com medo que o cão coxo também estivesse no recinto.

Ao tempo em que outra comitiva marchava para a delegacia, o delegado mandou seus cupinchas averiguar quem era o dono dos animais que costumeiramente dormiam nos trilhos da ferrovia. Antônio Pretinho ao chegar à delegacia, relatou ao delegado o que conseguia recordar do ocorrido, haja vista, o fato ter acontecido na escuridão, dificultava o relato dos pormenores. Nesse ínterim, chegaram os cupinchas  do delegado esbaforidos, parecendo égua estropiada, com a informação que o delegado tanto desejava, os carneiros que provocaram o acidente pertenciam ao Raimundo Nonato, vulgo “Pombão” - Com os diachos! E por que já não trouxeram o homem, seus serviçais de merda? Valdemar, o menos subserviente, falou que o vulgo Pombão, dono dos carneiros, morrera no acidente, as rodas da cegonha passaram sobre seu peito, e neste momento quedava-se inerte sobre os trilhos, o pobre homem também tinha o infeliz costume de dormir na quenturinha dos dormentes e de seus carneiros.

Autor: Simon O. dos Santos – Mestre em Ciências da Linguagem e membro da Academia Guajaramirense de Letras AGL / Emails – [email protected]e [email protected]

“ Sou um Amazônida, Filho da Ferrovia”.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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