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Vinício Carrilho

O mérito dos cínicos - Por Vinício Martinez


 
Pode-se dizer que a alienação – quando nos despregamos da realidade – leva ao discurso da meritocracia. Contudo, pela história social do país, no curso da aristocracia branca, defender a meritocracia soa como cinismo. Os denominados, antigamente, de “sociopatas” (termo hoje desqualificado pela ciência social) tinham entraves comuns: indiferença, incapacidade de se ver no Outro, alucinação de grandeza.

Num país em que pobres e negros são dizimados pelo aparato policial, forças milicianas, traficantes e justiceiros, imaginar que se possa esperar, cobrar e certificar esses mesmos sujeitos pelo suposto mérito que deveriam alcançar é, no mínimo, cinismo. Na linguagem moderna, essa fuga da realidade foi designada por “esquizofrenia capitalista”.

Este tipo de “esquizofrenia” – que chamei de cinismo – é uma doença, sem dúvida. Porém, ao contrário do tipo comum, não se resolve com remédios ou tratamento psiquiátrico. A não ser que toda a população – abatida pelo cinismo – fosse tratada.

Como não é possível agir desse modo, poder-se-ia recomendar uma “educação politizada” e formadora de consciência e não acéfala, como se propõe em projetos de Educação sem Partido. É mais fácil, aos cínicos, condenar a Sociologia e a Filosofia (pela denúncia que promovem) do que encetar mudanças sociais relevantes.

Sem contar que é ridículo – pela epistemologia e pelo bom senso – imaginar que se eduque alguém sem tomar partido, até porque seria uma postura de inatividade; é preciso cada vez mais tomar partido contra a miséria social, o desemprego de milhões de pessoas economicamente ativas, o desprezo global pelos direitos fundamentais.

O cinismo é o mesmo sentimento que se aplaca sobre todos que compartilham a corrupção; da corrupção institucional e política, ao famigerado jeitinho brasileiro de quem burla a lei ao parar em vagas reservadas para idosos e deficientes físicos.

Os piores, no entanto, seguem sendo os mesmos: os abastados que cobram a dita meritocracia e se locupletam abertamente com sonegação e evasão de divisas. Esses recursos, em suma, serviriam à educação e à saúde (todas as políticas públicas) destinadas aos famélicos de quem se cobra, cinicamente, a produção meritocrática.

Um jurista alemão, Peter Häberle, chama-nos a atenção – desde os anos 1980 – para a necessidade urgentíssima de formar um adensamento cultural, notadamente em defesa dos direitos fundamentais constantes na Constituição Política.

Em Textos Clássicos na Vida das Constituições, Häberle fala de uma “interpretação mediante acréscimo mental” e “acontecimento no plano do texto”. Diria aqui: de “acontecimento moral no contexto”. Mais ainda, para que o cínico pudesse se ver no ridículo de suas ideias e, com esse passo fundo, tomasse o partido da realidade.

Pois bem, se antes até da década de 1980 já se denominava de Constituição Política é porque se tomava partido na direção legal e legítima do Estado e da Sociedade. Realmente, só em tempos fascistas pode-se imaginar “não-tomar partido” diante do descalabro moral-social e, ainda assim, requisitar meritocracia aos soterrados no submundo da indigência humana.

Por fim, se cabe um desafio: que se discurse sobre meritocracia àqueles que já perderam seu nome. De tão esquecidos pelos meritórios ganhos capitalistas dos sonegadores contumazes, já subtraíram seus nomes da memória individual e coletiva. Mas que, na ironia do bom humor, terão guardado uma boa gargalhada...

Há assuntos difíceis de se (d)escrever, mas o cinismo é um dos piores. Até o café fica num amargo quase insuportável. O açúcar não resolve! Porque o cinismo é a trave nos olhos do capitalismo em estágio de barbárie. Aliás, chega de por pimenta na miséria alheia. Não há doce algum embaixo da ponte. O resto, como disse, é cinismo. Ponto.


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)

Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/CECH

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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