Quinta-feira, 26 de maio de 2016 - 16h35
Eu era criança em Porto Velho; era uma cidade acanhada de ruas estreitas ladeadas por um capinzal, e todos se conheciam. O capim de Porto Velho marcou minha infância, pois trazia na ponta uma pequena flor arroxeada que, ao menor toque, se fechava; então a gente brincava: “Maria, fecha a porta que teu pai morreu”! A maioria das casas era de madeira e, nos bairros mais distantes, eram feitas de barro e cobertas de palha. Quem morava em casa de alvenaria era considerado rico, os poucos que tinham carro, então, muito ricos!
Acordava-se bem cedo àquela época; os homens costumavam ir ao mercado diariamente, isso antes do trabalho; ali, falavam sobre a política local, em pequenas rodas de amigos, enquanto tomavam o café da manhã e compravam alguma coisa para levar pra casa, a fim de que a esposa preparasse o almoço; enfim, era uma vida sem pressa nenhuma.
Estudávamos eu e minhas irmãs no Grupo Escolar Barão do Solimões e morávamos na Rua Afonso Pena; vestidinhas de azul e branco, nós as três crianças, disputávamos, ao longo da caminhada até a escola, ladear nossa mãe que ali dava aulas: ora, eram três crianças, e minha mãe só possuía dois braços, alguém, portanto, teria que caminhar ou à frente ou atrás do trio; a conversa de nossa mãe era tão animada que gerava essa disputa entre as irmãs para ficar mais próxima possível dela e de sua alegria.
Assim, saíamos bem cedo, e havia uma espécie de neblina no ar, este era frio nas primeiras horas da manhã, afinal, vivíamos uma época sem poluição e sem agressões ao meio-ambiente.
Todo dia, quando saíamos da escola, havia alguém limpando, do outro lado da rua, o prédio da Maçonaria: imponente, aquela suntuosa edificação era um mistério que, na minha cabeça cheia de caraminholas e imaginação, precisava ser desvendado. Por mais que a gente tentasse, não dava para ver o que havia ali dentro, a não ser rapidamente quando o zelador abria e fechava a porta.
Um dia, a porta se manteve mais tempo aberta do que o usual e vimos, eu e mais duas ou três crianças da vizinhança que também estudavam no Barão do Solimões, algo inesquecível e traumático para nossa pouca idade: um esqueleto!
De pé, num canto do grande salão encerado, havia mesmo um esqueleto, e não era apenas isso: além do horror de contemplarmos a ossada completa, cabeça, tronco e membros (como a gente aprendia na escola), aquele esqueleto era especial e tenebroso, pois estava vestido ou ornado, não sei, com uma grande capa azul- real; sobre a capa, uma espécie de bordados em dourado.
Meu Deus! Emoção demais para nossa pouca idade! Assim que nos viu, o zelador tratou de fechar a porta e nos mandar para casa com voz áspera.
Os dias passaram, e eu já estava até meio esquecida do esqueleto. Até que aconteceu o pior: certa manhã, encontrava-me sozinha indo para escola; a neblina estava densa e o ar mais frio do que de costume, não havia uma viva alma na rua. De repente, percebo um farfalhar de seda: no meio da densa neblina, avisto o esqueleto da Maçonaria, com sua capa de seda azul e dourada, a esperar-me na curva do caminho; senti o sangue gelar em cada veia do corpo. Acordei aos gritos, com meu pai sentado em minha cama, tentando acalmar-me e dizendo que tudo não passara de um pesadelo. Até hoje me recordo do esqueleto da velha Maçonaria...
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