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FESTA JOANINA - Por Frei Betto



Frei Betto

Hoje é dia de São João. Teremos a noite mais longa do ano com direito a fogueira, balões, bandeirinhas coloridas, fogos de artifício, sanfona, quadrilha, quentão, pipoca e paçoca. E danças de mãos entrelaçadas, casais a se trançarem em volteios na roda, a mescla de uma roça marcada pelo ritmo afrancesado. E saber que o outro existe para que ninguém mais repita o lamento de Fernando Pessoa pela boca de Alberto Caeiro:

“Noite de S. João para além do muro do meu quintal. / Do lado de cá, eu sem noite de S. João. / Porque há S. João onde o festejam. / Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite, / Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos, / E um grito casual de quem não sabe que eu existo.”

Somente o outro permite que eu exista. Somos seres sociais e a vida é um jogo de alteridades. Talvez isso explique a dificuldade de nossa memória guardar os traços exatos de nosso rosto. A menos que o espelho o reflita. É o olhar do outro que molda a minha identidade. É o meu olhar que enternece ou entristece o outro. Assim como a luz divina transpareceu em Jesus aos olhos de João.

Qual João? Há dois no Evangelho. O primo de Jesus e o discípulo dileto, autor do quarto evangelho, o mais poético e teológico de todos.

Jesus, segundo a tradição, teria nascido em 25 de dezembro. Lucas registra que Maria, ao visitar a prima Isabel para anunciar-lhe o início de sua gravidez, a encontrou também grávida, e com ela permaneceu três meses. O que levou a Igreja a comemorar o nascimento de João, filho de Isabel e do sacerdote Zacarias, a 24 de junho, seis meses antes de Jesus.

João não quis seguir a carreira sacerdotal do pai. Preferiu a de monge na comunidade puritana de Qmran, junto ao Mar Morto. Não se adaptou. Tornou-se pregador ambulante às margens do rio Jordão. Em torno dele se formou uma comunidade de discípulos, entre os quais Jesus, que por ele foi batizado. Daí o epíteto de Batista acrescido ao nome de João.

Enquanto os essênios dividiam o mundo entre puros e impuros, João optou pela óptica bíblica do conflito entre justos e injustos. Sua espiritualidade deitava raízes na ética e na justiça social. A seus batizandos aconselhava partilhar os bens, jamais explorar o próximo, não praticar extorsão nem proferir falsas acusações. Jesus abraçou a via espiritual testemunhada por seu primo.

João ousou denunciar a falta de ética do governador da Galileia, Herodes Antipas, que por isso mandou prendê-lo. Não pretendia, contudo, decretar-lhe a morte, pois conhecia seu prestígio popular. Porém, Salomé, filha de Herodíades, mulher de Antipas, pediu de presente ao governador a cabeça de João em uma bandeja. No que foi atendida.

Ao assassinato de João seguiu-se o início da militância de Jesus. Seus dois primeiros discípulos, os irmãos André e Simão Pedro, haviam participado da comunidade dos seguidores de João. Mais tarde, Jesus também seria assassinado pelo conluio entre dois poderes políticos, por anunciar, dentro do reino de Cesar, outro reino, o de Deus, baseado em dois paradigmas: na relação pessoal, o amor; na social, a partilha de bens.

O outro João registra, no prólogo de seu evangelho, que o primeiro João “não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”. Jesus era a luz.

João e Jesus são luzes que brilham nas trevas, assim como as chamas da fogueira quebram o negrume da noite e nos aquecem o coração. Celebrar esta festa joanina, em junho ou julho, é abraçar uma espiritualidade que desafia as trevas atuais e projeta a luz da esperança em tempos tão sombrios.

Como João, somos chamados a ser testemunhas da luz. Quando me perguntam se, nessa conjuntura brasileira, vejo luz no fim do túnel, respondo que, infelizmente, roubaram também o túnel. Mas não a luz. Como proclama José Régio em Cântico negro, “Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / Sei que não vou por aí!” E na busca de horizontes me agarro a esta convicção: há que guardar o pessimismo para dias melhores!

 

Frei Betto é escritor, autor de “Ofício de escrever” (Rocco), entre outros livros.


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