Sexta-feira, 19 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Hugo Evangelista

Eu, sambista!



Hugo Evangelista da Silva*

A história tantas vezes dita pelos compositores do genial “Samba de Orly” dando conta da participação do, também genial, poeta Vinicius de Moraes na composição dessa obra-prima é de toda singular. Conto-lhes: O encontro que incluiu o poeta na autoria da composição aconteceu quando o samba já estava pronto. Assim, apresentaram-lhe a letra da música e com ela o pedido de que ele – Vinicius – acrescentasse ali mais algum verso. O “poetinha” tomou do papel, leu os versos já escritos, e em seguida propôs a substituição do verso que dizia: “Pede perdão pela duração dessa temporada ... “ sugerindo ao seu lugar o verso que acabara de compor: “Pede perdão pela omissão um tanto forçada ... “ ao que os compositores – Chico e Toquinho – aquiesceram. Refeita a letra, encaminharam o samba ao crivo do censor de plantão, conquanto estivéssemos em tempos de exceção, que ao ler seus versos decidiu-se por “censurar” justamente a frase substituta do poeta, voltando o samba ao status quo anterior. Detalhe: A participação de Vinicius na composição do samba, entretanto, restou mantida por seus colegas!

Guardadas as devidas proporções, ouso dizer que a mim aconteceu algo similar!

Digo-lhes: Faz algum tempo, ocorreu-me encontrar num fim de tarde um dos mais produtivos sambistas do bairro – Santa Bárbara – que por seus reconhecidos méritos, integra em posição privilegiada a ala de compositores de nossa Escola – minha queridíssima ASFALTÃO – e transita com inigualável desenvoltura em meio as demais co-irmãs de nossa cidade, sendo, por isso, convidado ocasionalmente a compor seus sambas de enredo. Nos momentos de folga, nosso sambista, instala-se na acolhedora calçada do “bar do CALIXTO”, onde possui cadeira cativa, e, aproveitando-se do frescor da brisa soprada morro acima a partir do nosso rio madeira, entre uma prosa e outra ou um gole e outro, encontra a inspiração que lhe falte à composição de seus sambas. Refiro-me ao singular Mávilo Melo!

Naquele encontro, cumpridas as formalidades que recomendam sua boa educação, convidou-me a sentar-me à mesa e mostrou-me a sinopse que lhe fora passada por uma Escola de Samba com o pedido de que ele compusesse o samba de enredo que, naquele ano, haveria de embalar o desfile da Escola na “avenida”. Li o documento em rápidas vistas e ao concluir a leitura, perguntei-lhe: “Vais fazer o samba?” Ele respondeu-me: “Está quase pronto!” Em seguida, tomou de alguns papeis que, em tintas ainda frescas, guardavam os versos que ditariam o samba encomendado, e pediu-me: “Faça suas considerações!

Confesso: Fui tomado de grande surpresa, eis que jamais tivesse vislumbrado em mim quaisquer atributos de sambista e, já estava a ponto de recusar a empreitada, quando então meu dileto compositor, do alto de sua apurada sensibilidade e arguta perspicácia, observou: “Por favor, não me evites o pedido! Sei que vc tem conhecimentos de causa para agregar mais qualidades a este samba!”. Aquiesci e iniciei, então, uma re-leitura da sinopse, para, em seguida, ocupar-me com mais vagar dos versos do samba. Concluídas as tarefas, fiz alguns comentários e sugeri a inclusão de mais algumas linhas a fim de dar o merecido destaque a alguns de nossos deliciosos pratos típicos – o enredo da Escola ocupava-se do centenário de nosso município – ao que o sambista, anuindo às minhas considerações, as anotou com o devido cuidado.

Passaram-se mais alguns dias e, em outro fim de tarde – avistei – lá estava o compositor na mesma calçada do “bar do Calixto”, ocupando a mesma mesa, rabiscando – quem sabe? – mais alguns versos que moldariam o seu próximo samba. Quando, ao avistar-me, sinalizou a mim para que me aproximasse, e assim o fiz. Conversamos trivialidades e, de repente, mostrando-me uma folha de papel, disse-me: “Aqui está o nosso samba! Veja se agora está do seu agrado!” Essa a maior surpresa! Questionei aquele “nosso” porquanto não divisasse razões para pegar carona no primoroso trabalho do sambista à conta de singelos comentários, feitos mais em razão da admiração e do apreço que devoto ao nobre amigo do que pelas eventuais qualidades de compositor, que reconheço não as possuir. O sambista, a justificar sua atitude, falou-me àquele instante da história que envolve os compositores do “samba do avião”, a qual já a conhecia. E, assim, convenceu-me mais uma vez a envolver-me em seu samba e, eu, por absoluta generosidade do compositor, acabei por tornar-me “sambista de um samba só”!

É possível que em outras oportunidades atreva-me eu novamente a “viajar” como o Mávilo Melo, a seu convite, na composição de outros sambas. E, embora sendo certo que a comunidade não ganhe, com a minha participação, um grande letrista, resta-me, contudo, uma indiscutível certeza: “Ganhei eu um parceiro de peso”. Literalmente!     

* Advogado, escritor e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara. e-mail: [email protected]     

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSexta-feira, 19 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

‘SEU’ CALIXTO – UM MODESTO TESTEMUNHO - Por  Hugo Evangelista

‘SEU’ CALIXTO – UM MODESTO TESTEMUNHO - Por Hugo Evangelista

‘SEU’ CALIXTO – UM MODESTO TESTEMUNHO Hugo Evangelista da Silva* O“bar do CALIXTO” é resultado da determinação conjunta de seus proprietários, o Sr. F

COISA DE ESCREVINHADOR

COISA DE ESCREVINHADOR

  Hugo Evangelista da Silva* “Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra! Cada pesso

O 'bar' da DEUSA

O 'bar' da DEUSA

  Hugo Evangelista da Silva*   O bar SERENO ou “bar da Deusa”, como popularmente chamado, era um misto de residência, de bar, de estância para muitas

Uma Questão de Interpretação!

Uma Questão de Interpretação!

  Hugo Evangelista da Silva*   Assisti, faz alguns dias, uma cena tão inusitada quanto hilária! Acabava de sair de um café com tapioca – o que faço pe

Gente de Opinião Sexta-feira, 19 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)