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CHUTANDO O BALDE

CHUTANDO O BALDE: ESPERANDO JANOT


CHUTANDO O BALDE: ESPERANDO JANOT - Gente de Opinião


ESPERANDO JANOT 

 

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William Haverly Martins
 

Talvez pela sonoridade das palavras, lembrando a pronúncia francesa, quando ouvia no noticiário que os políticos, os senadores da república em especial, estavam apreensivos com a lista do Procurador Geral da República, Janot, sempre me vinha à mente a peça mais espetacular do chamado Teatro do Absurdo, Esperando Godot, de Samuel Beckett. E, pela sonoridade, deixei-me possuir de significados, comparações e imaginações inevitáveis.

Há uma significativa diferença entre Janot e Godot, o primeiro todos conhecem, mas o segundo nunca apareceu para dizer quem era.Indagado sobre o significado de Godot, o autor disse: "Se soubesse teria dito na peça". 

A peça de 1952 é frequentemente apontada como uma das maiores obras da dramaturgia moderna. Sua estrutura é quase minimalista: dois atos, quatro personagens principais, desta vez, com minha interpretação – senadores, deputados, empresários e o povo −, eum cenário simples: ruas e salas de Brasília.

Beckett: Numa estrada rural, Vladimir e Estragon aguardam a chegada de Godot, embora desconheçam sua identidade e até mesmo o motivo pelo qual esperam tão ilustre indivíduo.

Brasília: Nos corredores do congresso, senadores representados por um velho vestido de fraque e cartola, onde se lê senado, o ator que representa os deputados traja um belo terno preto e carrega uma maleta tipo 007, presa por algemas ao pulso, onde está escrito câmara; ambos aguardam a divulgação da lista de Janot, apreensivos, exatamente porque conhecem a identidade do autor e o motivo pelo qual esperam a palavra de tão ilustre figura, na contramão da famosa e conhecida Lista de Shindler. Esta salvava da morte certa nos campos de concentração da Segunda Grande Guerra; aquela, pode levar à prisão, aniquilar politicamente.

Sem nada melhor para fazer, conversam. Mas o diálogo é tão absurdo quanto a espera. Os dois repetem frases incoerentes, falam ao mesmo tempo, interrompem-se, criam desentendimentos para, no minuto seguinte, mudar completamente de tema.

O único acontecimento digno de nota é a aparição dos outros dois personagens: Lucky, que carrega uma pesada mala e não a larga um só minuto, e Pozzo. A presença dos dois entretém Vladimir e Estragon, mas a tensão é retomada com a breve interferência de uma quinta figura. É um garoto mensageiro que lhes vem avisar que Godot se atrasará, mas que no dia seguinte chegará sem falta, o amanhã fica cada vez mais distante, como a esperança na visão de Nietsche: uma tremenda sacanagem do presente, inventada para aureolar o futuro incerto dos humanos. 

Senadores e deputados conversam pelos corredores do congresso, o cenário é o mesmo, eles se posicionam à espera de Janot. Depois de um tempo, os senadores resolvem jogar o jogo da vida, ignorando Janot, e declarando inocência aos inúmeros representantes invisíveis da mídia, debochando do conteúdo da lista de Janot. Quando o menino/futuro aparece para anunciar a chegada de Janot, é recebido com uma tremenda gargalhada de indiferença.

Começa novo ato e a cena é retomada. Novamente Vladimir e Estragon. Os dois iniciam longo diálogo, só interrompido quando da entrada de Pozzo e Lucky. Lucky continua carregando a pesada mala da qual não se separa um só instante e agora traz Pozzo, amarrado a uma corda. O segundo ato desenvolve a mesma dinâmica. O cenário é o mesmo, apenas a árvore está um pouco diferente, com algumas folhas. Estragon e Vladimir iniciam sua jornada à espera de Godot. O foco da ação se direciona para Pozzo e Lucky. Pozzo está cego e Lucky mudo. Após a partida destes, aparece novamente o garoto anunciando que Godot não virá, talvez amanhã. Desesperançados, os dois ilustres personagens não creem mais na vinda.O diálogo final, que encerra o ato e a peça é o seguinte:

Vladimir:Então, devemos partir? (Alors, on y va?) (Well, shall we go?)

Estragon: Sim, vamos. (allons-y.) (Yes, let's go.)

Eles não se movem. (Ils ne bougent pas.) (They do not move.)

Janot, por conta da expectativa, instigou jogadas patéticas, engraçadas, líricas, fazendo com que os personagens caminhassem por uma linha tênue sem saber ao certo se representavam ou se vivenciavam suas experiências. Estagnação e mobilidade, paralisia e criatividade, outras dualidades, para além das intersecções, construídas tão bem na magnífica obra teatral de Beckett a partir dos duplos, das dualidades através de paradoxos. Como a vida.

Na minha versão moderna para o teatro do absurdo, um senhor de calça jeans, chapéu de palha, vestindo uma camisa de malha branca com a inscrição “povo”, aparece sendo puxado por uma corda no pescoço, pelo outro de terno de linho branco, o que carrega uma mala preta de couro, presumivelmente recheada de dólares, representando “os empresários”. Os dois assumem novo lugar no cenário, se entreolham, sentam e esperam, mudos, à frente de uma TV, a lista de Janot.

Depois de um tempo, Janot em 3D desce da TV e entrega a lista a um espectro de velha, cega e tonta, que insiste em arrastar uma espada e uma balança pelas ruas de Brasília. Tudo termina como começou: numa atmosfera de medo e futuro incerto. Como alegoria desse tempo obscuro, Esperando Godot já teria sido uma grande realização, mas esperando Janot, uma expectativa deprimente.

Esperando Janot, por conta do Teatro do Absurdo que vivemos, embora apareça, é como a espera por aquele que nunca chega da peça do irlandês, representando também uma fábula sobre o ser humano, em eterna expectativa pelo entendimento esquivo, adquirindo assim significados ainda mais amplos.

Antes da cortina baixar, Janot olha nos olhos do povo, o envolve com o braço esquerdo e diz baixinho: também desejo uma nova república, mas não tenho forças. Dito isso, abaixa o rosto, abraça o sujeito de terno branco, com o braço direito, e todos permanecem estáticos. À distância, a velha tonta os observa, também imóvel, mas exalando sinais de fumaça branca, feito comunicação de indígenas americanos, ou anúncio de um novo papa.

Godot recebeu da crítica nomes como Deus, liberdade, morte e esperança. A versão de Godot que conhecemos diz que ele partiu em 1985, sem anunciar o retorno para um terceiro e necessário ato: reorganização da república, nova constituição/parlamentarista, fim das pirotecnias, diminuição drástica dos partidos políticos e um chute no traseiro da inoperância, da incompetência e da corrupção.

Janot, ah o Janot! Saiu atrás da velha tonta, pensando em parceria para uma letra de rock:  O País do Absurdo.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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